Saul Leblon: O ministério da correlação de forças
Saul Leblon
na Carta Maior
A presidenta Dilma fará de seu novo ministério uma
trincheira de competência
técnica, mas também um instrumento de ação política para
abortar cercos e
superar flancos revelados antes e depois das urnas.
O PT, partidos aliados e movimentos sociais naturalmente
serão contemplados: foi
deles a responsabilidade pela candidatura vitoriosa em
outubro.
Mas o setor empresarial também será incorporado.
A concessão de um governante vitorioso é uma lâmina de dois
gumes.
Um deles fatia um pedaço do seu mandato para o mercado; o
outro fatia um
pedaço do mercado que os inconsoláveis pelotões do
revanchismo querem perfilar
na ordem unida do terceiro turno contra Dilma.
Quem serão os anfíbios nessa composição?
Aqueles com os quais é possível dialogar porque tem um grau
de compreensão
mais amplo do significado de um processo de desenvolvimento.
Ou seja, enxergam em um mercado interno pujante, com
empregos, salários e
direitos sociais a contrapartida indissociável de vendas,
lucros e investimentos.
Um exemplo aleatório?
Luiza Trajano –dona da rede Magazine Luiza, a maior do
Brasil.
Em janeiro deste ano a empresária soterrou em estatísticas
um gabola
representante da secessão conservadora em debate na Globo
News. ‘Poupe-me
Luiza’, grunhiu o rapaz, Diogo Mainardi, já nas cordas,
quase exangue, depois que
a empresária ainda pediu seu email para entupi-lo com mais
informações opostas
à ignorância exclamativa do interlocutor sobre a situação
econômica do país.
Quando outros integrantes da mesa balbuciaram o risco de
‘bolhas’ em socorro ao
nocauteado, a convidada ainda retrucou: “Como é possível
falar em bolha? Nós
precisaremos construir 23 milhões de moradias nos próximos
anos do Minha Casa
Minha Vida para que a população atinja um nível habitacional
próximo ao dos
países desenvolvidos. Como se pode falar em bolha? São 23
milhões de casas para
23 milhões de pessoas. (Gente) que mora hoje com o sogro, a
sogra ou pagando
400 reais de aluguel por um cômodo. (Em habitação) não se
pode esquecer que
nós tivemos três décadas perdidas (como bolha?)’
Não foi necessário contar até dez: o telespectador atestou o
nocaute técnico com
fraturas espalhadas por toda a credibilidade da bancada do
Brasil aos cacos.
Exemplos como os de Luiza Trajano ou o do aventado Luiz
Trabuco Cappi –
presidente de banco que pensa como a empresária, não por
benemerência, mas de
olho no avanço do crédito no país, podem ser acomodados em
um governo de
composição acossado pelo terceiro turno golpista, associado
aos rentistas que
preferem lucrar sem produzir.
Acercar-se de anteparos não antagônicos à construção de um
desenvolvimento
convergente é o que qualquer governante progressista sempre
fez e fará, após
renhida batalha eleitoral.
A pretensão conservadora de isolar Dilma em uma Guantánamo
institucional, e
impedi-la de governar, não é uma miragem.
As operações de assalto estão explícitas nas manchetes
ressentidas das horas que
correm, nos perdigotos expelidos de colunas sulfurosas e na
rejeição da Câmara ao
projeto que institui conselhos populares --organismos
consultivos para o
aperfeiçoamento dos programas sociais do governo.
São sinais do tipo: às favas as urnas!
Reverter a escalada dos liberais que não se libertam jamais
da UDN embutida nas
veias, não se resolve com um ministério puro sangue.
É mais difícil que isso.
E é dessa dificuldade que deveriam cuidar prioritariamente o
PT e os movimentos
sociais.
Em vez de serem desmobilizados os recursos, as lideranças,
as caravanas e as
estruturas de coordenação destinadas à vitória nas urnas
–como sempre se fez--
chegou a hora de fincar um divisor de águas.
Voltar às bases; organizar a sociedade; reatar o diálogo no
campo da esquerda.
Para fazer diferente do que a frente única do
conservadorismo apregoa para o
Brasil nesse momento não basta lutar por nomes no ministério
do novo governo.
Quanto vale um general sem exércitos?
O ministério mais importante hoje é aquele capaz de
coordenar as linhas de
passagem para um novo ciclo econômico repactuando metas,
concessões, prazos,
avanços e salvaguardas com o conjunto das forças sociais.
Esse ministério não fica em Brasília. Seu endereço:
metabolismo do movimento
social brasileiro, sem número, sem sede, sem articulação
intersetorial, sem mídia
abrangente, sem canais com a opinião pública, sem...
Se o campo progressista não dispõe de força sequer para
aprovar conselhos
populares de natureza consultiva, que chance existe de
vingar uma regulação da
mídia, prevista aliás desde a Constituição de 1988 e nunca
posta em prática? (Leia
a análise de Venício Lima; nesta pág).
Mais que isso.
Quem adiciona coerência à macroeconomia do desenvolvimento é
correlação de
forças da sociedade em cada época.
O colapso neoliberal trouxe para o colo do governo uma crise
da qual a Nação é
vítima e não sócia; as forças progressistas são adversárias,
não coautoras.
O nome da crise não é PT, não é Petrobrás, não é
intervencionismo.
O nome da crise é a desenfreada ferocidade com que capitais
especulativos
impuseram um padrão global de taxa de retorno irreproduzível
na economia sem
níveis asiáticos de exploração da mão de obra.
O nome da crise é a ausência de instituições internacionais
com poder de
coordenação sobre essas matilhas –e de contrapartidas locais
de contenção na
forma de controles efetivos sobre os fluxos de
capitais.
É tudo isso que subtrai o chão firme de governos
progressistas nas diferentes
latitudes econômicas.
No Brasil com uma agravante, como mostram os acontecimentos
nas horas que
urgem.
O cerco conservador derrotado nas urnas sentiu o cheiro das
feridas abertas no
adversário. E decidiu emendar um terceiro turno de golpismo
paraguaio, corroendo
a vontade das urnas por dentro das instituições.
Nas páginas de economia martela-se a contrapartida
macroeconômica do putsch
branco: o dirigismo (leia-se o pré-sal) e a gastança fiscal
(leia-se o salário mínimo
e os programas sociais) são incompatíveis com a necessária
redução do juro para a
retomada do investimento.
Em miúdos: para voltar a crescer o país precisa de algo que
o governo reeleito é
incapaz de propiciar, a menos que se renda
incondicionalmente ao programa
derrotado.
Um xeque-mate?
Não, pelo pequeno detalhe de que as urnas não sufragaram o
que seria a pá de cal
no projeto de construção de uma democracia social no Brasil.
Ao contrário, dobraram a aposta no caminho.
Não iludidas, não anestesiadas pela propaganda petista, como
se dizia antes.
Mas amadurecidas após 12 anos e três sufrágios presidenciais
na mesma direção, a
ponto de 54,5 milhões resistirem à avalanche de
criminalização e demonização do
partido portador desse projeto.
É isso que impede o destape final do aluvião de arrocho
armazenado no dique do
conservadorismo.
Não é café pequeno, portanto, o confronto em marcha batida
no país.
Tampouco é negligenciável o fato de que a negociação do
quarto ciclo de governo
progressista se dá sob a determinação de uma realidade
mundial pior que a
vigente em 2002, 2006 e mesmo em 2010.
A tese de que o Brasil é uma ilha de crise petista cercada
de prosperidade
neoliberal por todos os lados --da qual inadvertidamente o
‘intervencionismo
apartou o país’, faz parte da fabulação criada para engessar
o novo governo.
O desempenho das exportações, por exemplo, tem sido decepcionante
urbi et orbi.
Da Alemanha de Merkel, aos EUA de Obama. E a Organização
Mundial do Comércio
(OMC) prevê que o oxigênio externo ficará ainda mais
rarefeito.
A expansão prevista para o comércio mundial em 2015 recuou
de 5,3% para 4%,
sujeita a novos recortes; bancos brasileiros já trabalham
com 3%, para menos.
A ideia genial dos armínios globais de arrochar o consumo
interno e deslocar a
oferta de cada economia para a demanda do vizinho colidiu
com as leis da física.
Na medida em que todos pularam de cabeça no cocho alheio, a
busca da ração
transformou-se em anemia coletiva.
Nesse ambiente entupido de produção sem demanda, com elevada
capacidade
ociosa na indústria, o mercado popular criado no Brasil nos
últimos 10 anos (53
milhões de pessoas, que formam a 16ª economia do mundo, com
credenciais para
o G 20) representa um trunfo inestimável. Mas a moeda
valorizada há duas
décadas fragiliza essa conquista, transformando-a em um
aspirador de
importações, com os efeitos depressivos na produção, no
emprego e no
investimento industrial.
Reverter esse flanco é crucial.
Não tanto para redimir as exportações, pelas razões expostas
acima. Mas para
preservar principal usina de produtividade da economia, sem
a qual não haverá
excedente econômico a negociar em uma sociedade que reclama
novos saltos de
qualidade de vida, renda e direitos.
A defesa da industrialização, portanto, é indissociável do
projeto vitorioso nas
urnas de outubro, que pressupõe a repactuação de uma matriz
de crescimento
ordenada pela justiça social.
Não será um processo isento de algum sacrifício programado,
alerte-se. Negociado
democraticamente, porém, disporá de salvaguardas associadas
a um calendário de
ganhos progressivos.
A composição do novo ministério da Presidenta Dilma é um
pedaço dessa
negociação.
Mas é só uma das múltiplas rodadas que vão se estender pelos
próximos quatro
anos, com uma peculiaridade: e Karl Marx redivivo sucedesse
ao keynesiano Guido
Mantega pouco espaço teria para colocar em prática suas
convicções, diante da
correlação de forças interna e internacional.
Modificá-las implica organizar a sociedade para que o
resultado da urna se traduza
em um poder efetivo de pressão nos embates à vista.
O estiolamento dessa referência organizada nos últimos anos
talvez explique um
pedaço significativo dos 48 milhões de votos obtidos pelo
conservadorismo na
disputa presidencial.
O ciclo progressista iniciado em 2003 libertou 60 milhões de
brasileiros da
calcificação social .
Supunha-se que isso teria mudado a geografia política do
país de forma irreversível
nos marcos da legalidade. A quase derrota eleitoral em
diferentes momentos da
disputa presidencial de 2014 mostrou que essa mutação
ademais de inconclusa no
campo social é volátil na sua inexistente organização
política.
O que mais o PT tem a dizer a esse universo que ascendeu ao
consumo e,
sobretudo, como pretende que ele assuma o comando efetivo de
seu destino rumo
a uma cidadania plena?
Esse é o ministério que o campo progressista precisa ocupar
com infatigável
determinação no mais breve espaço de tempo: o ministério da
mudança na
correlação de forças e da hegemonia histórica na sociedade
brasileira.
As urnas lhe deram quatro anos para isso.
Se falhar de novo, dificilmente haverá uma chance tão cedo
outra vez.
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