Manifesto de um desinformado



Rodrigo Alves Teixeira (*)

O pronunciamento do ex-presidente FHC, de que o eleitor do PT não vota no
partido por ser pobre, mas por ser desinformado, além de ser desrespeitoso para
com os mais de 43 milhões de eleitores que votaram em Dilma Rousseff, revela um
tipo de preconceito extremamente pernicioso e perigoso para a democracia. E é
mais grave que tenha vindo de um sociólogo, ex-professor da USP e ex-presidente
da República. O intuito deste texto é mostrar porque a visão de que o eleitor do PT
é desinformado é falsa, preconceituosa e perigosa para a democracia.
Uma visão falsa e preconceituosa

FHC não explicou bem o que entende por eleitores “desinformados”, o que dá
margem a diversas interpretações. Em sua fala, ele se refere aos desinformados
como aqueles que estão nos “grotões”, distantes dos centros urbanos. Ora,
considerando as capitais dos Estados, Dilma teve 7,85 milhões de votos, muito
próximo dos 8,65 milhões de Aécio, o que tornaria a afirmação falsa por este
critério.
O presidente Lula fez uma livre interpretação de que FHC estaria insinuando que os
nordestinos são desinformados, dada a vitória da Dilma em quase todos os
estados da região. FHC se defendeu em vídeo divulgado nas redes sociais, dizendo
que Lula teria mentido, pois ele nunca se referiu aos nordestinos. Mas o fato é que
a interpretação de Lula é legítima, pois se FHC não falou diretamente em
nordestinos, basta apenas usar a lógica para deduzir que a maioria dos nordestinos
seria “desinformada”, já que Dilma teve uma vitória esmagadora na região.
Considerando-se a votação pelos Estados, entretanto, há que se qualificar a
afirmação de Lula: os eleitores da maioria dos estados da região norte e do Rio de
Janeiro, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais também engrossaram o caldo dos
desinformados, já que Dilma venceu em todos.
Essa semana me deparei com outra maneira de interpretar o que seriam os
“desinformados”, divulgada pelos próprios eleitores de Aécio. Circula nas redes
sociais um gráfico que “prova” estaticamente a tese de FHC. O gráfico mostra a
escolaridade média dos eleitores em cada estado da federação, medida em anos
de estudo, e a votação da presidenta Dilma no primeiro turno, medida em
porcentagem, indicando alta correlação negativa entre estas duas variáveis. O
gráfico pressupõe que “informado” é aquele que possui mais anos de estudo.
Ora, está longe de ser óbvio que informação, especialmente se estivermos
tratando de escolher governantes, se resume a anos de escolaridade. Entre as
maneiras de o eleitor se informar para escolher seus governantes, destaco duas:
as informações que recebe pelos meios de comunicação (TV, jornais e revistas,
rádio, internet, etc.) a respeito da situação geral do País e a própria percepção
imediata do eleitor a respeito de suas condições de vida e as expectativas a
respeito de seu futuro pessoal: seu emprego, sua renda, a situação de sua
empresa, os bens privados e serviços públicos a que tem acesso, etc.
Recentemente, estas duas fontes de informação se descolaram fortemente. Se
tomarmos o Índice Nacional de Confiança do Consumidor (INEC/CNI), a partir de
meados de 2013, o índice de confiança na evolução geral da economia
(influenciado pelos meios de comunicação) se torna sistematicamente mais
pessimista que as expectativas do consumidor sobre sua situação individual,
refletida por exemplo na intenção de compra de bens de maior valor.
Pesquisa recente do Ibope, publicada em agosto, encontrou um resultado parecido:
76% dos eleitores diziam estar satisfeitos com a vida que levam e 43% avaliaram
sua situação econômica como ótima ou boa. Mas, indagados sobre a situação geral
da economia, a maioria a considerava ruim ou péssima.
Olhando para os empresários, o Índice de Confiança do Empresário Industrial (ICEI)
da Confederação Nacional da Indústria (CNI) revela que, a partir de meados de
2013, a expectativa dos empresários sobre a evolução da economia brasileira em
geral se tornou sistematicamente mais pessimista que a avaliação que fazem da
sua própria empresa.
Por que esta disparidade tão grande, a partir de meados de 2013, entre estas duas
percepções, a da situação individual e a geral? A resposta é simples: desde
meados de 2013, em particular a partir das manifestações de junho, a grande
mídia tem atacado sistematicamente o governo federal, criando um falso clima de
pessimismo e difundindo a ideia de que haveria uma situação caótica no plano
econômico que não se reflete na realidade individual dos brasileiros. Além, é claro,
da divulgação seletiva das denúncias de corrupção, em que a grande mídia logrou
construir a falsa imagem, perante parte do eleitorado, de que o PT seria o partido
mais corrupto.
Com estas observações, apresento uma interpretação diferente daquela de FHC: o
PT não tem o voto dos desinformados, mas sim o voto daqueles para os quais o
peso da percepção individual sobre suas condições de vida foi superado pelo peso
dos ataques diários da grande mídia ao governo Dilma. Assim se entende a
liderança de Aécio em São Paulo, Estado em que os eleitores são mais
influenciados pelos grandes oligopólios da comunicação. Os mesmos oligopólios
que esconderam da população paulistana a crise da água durante meses, e que na
segunda-feira, um dia após a eleição de Alckmin no primeiro turno, “descobriram” a
gravidade da crise. Os mesmos que jamais divulgam qualquer avanço dos governos
do PT, mas divulgam toda e qualquer denúncia, mesmo sem provas, contra o
partido, ao mesmo tempo em que escondem as denúncias e investigações do
mensalão do PSDB em Minas ou os episódios do “trensalão” e do cartel do metrô
em São Paulo.
Aqueles que FHC considera “informados” são, ao contrário, aqueles que têm seu
acesso à informação sistematicamente negado pela grande mídia, que seleciona de
acordo com seus interesses o que (e como) os eleitores devem saber. Daí a
urgência de uma regulação econômica da mídia, já defendida pela presidenta
Dilma, que reduza o poder de mercado dos oligopólios e oligarquias que sempre
dominaram os meios de comunicação, não para censurar qualquer posição que
seja, mas para dar voz às opiniões que hoje não encontram espaço para se
fazerem ouvidas, ampliando a democracia.
Quando consideramos a informação obtida pela via da percepção pessoal, vemos
que são os mais informados que votam em Dilma Rousseff. Por isso Aécio sofreu
dupla derrota em Minas Gerais, estado em que o eleitor o conhece bem pela sua
experiência pessoal: ficou atrás de Dilma e também viu seu candidato a
governador ser derrotado ainda no primeiro turno por Fernando Pimentel, do PT. E
por isso foi derrotado na maioria dos estados do Norte e Nordeste, onde a
população viu sua renda crescer acima da média nacional, reduzindo a histórica
desigualdade regional, e conhece bem as conquistas sociais obtidas nos últimos 12
anos. Nestes estados, a influência da grande mídia não se sobrepôs à percepção
dos eleitores sobre como sua própria condição melhorou nos governos Lula e
Dilma.
Uma visão perigosa para a democracia
A afirmação de FHC é uma tentativa de despolitizar a eleição, evitando a
polarização de classes ou a polarização entre ricos e pobres – aliás, o mesmo tipo
de despolitização que Marina Silva tentou emplacar ao dizer que “não existem
elites” – visando com isso esconder que o PT é o partido que mais trouxe avanços
para os excluídos e que, ao contrário, o modelo econômico implementado no
governo do PSDB, com altas taxas de juros e de desemprego, foi fortemente
excludente. FHC busca deslegitimar o PT como um partido que representa os mais
pobres ao afirmar que seus eleitores não votam por serem pobres, mas por serem
desinformados.
As elites, em particular as oligarquias agrárias no Brasil do século XIX e início do
século XX, tentaram ao máximo evitar o avanço da democracia, já que a
polarização eleitoral entre ricos e pobres, patrões e empregados, poderia levar à
perda de seu poder, dada sua desvantagem numérica. Afinal, numa eleição com
sufrágio universal, o voto dos excluídos vale tanto quanto o dos poderosos.
É lamentável ver que este tipo de pensamento ainda habita as mentes de muitos
brasileiros, quando vemos diversas manifestações de eleitores de Aécio nas redes
sociais, na esteira da declaração de FHC, questionando a qualidade do voto dos
mais pobres e chegando a dizer que estes não deveriam poder votar.
Guardadas as devidas proporções, já que hoje não há qualquer espaço para um
novo golpe militar, é compreensível que muitos estejam comparando a situação
atual, do ponto de vista da polarização social e dos ataques a um governo popular,
com a vivida por Getúlio Vargas pouco antes de seu suicídio, ou por Jango às
vésperas do golpe de 1964. Naquele momento a classe média lacerdista e as elites
conservadoras passaram a apoiar a ideia de um regime autoritário, uma vez que a
democracia era um perigo para seus interesses, já que a imensa maioria de pobres
seria “manipulada” pelos políticos “populistas”, que buscavam promover uma
melhor distribuição da renda e da riqueza, sendo acusados de “comunistas”.
Portanto, a infeliz afirmação de FHC, de que os eleitores do PT são desinformados,
além de ser falsa e preconceituosa, como se argumentou, é desrespeitosa,
perigosa e irresponsável. Ainda que possamos levantar a hipótese de que ele não
pense de fato desta forma (assim espero), é ainda mais lamentável que ele tenha
se prestado a esse papel com motivações puramente eleitoreiras, incentivando,
mesmo que de forma não intencional, o sentimento de ódio de classe e aos
nordestinos.
Como paulista e nordestino de pai e mãe, espero que, assim como a esperança
venceu o medo em 2002, nas eleições de 2014 ela vença também o ódio.

(*) Doutor em Economia e professor da PUC-SP, é mais um desinformado.

Comentários