Barack Obama, Estado Islâmico e guerra sem fim
3/10/2014, [*] Flynt Leverett e Hillary Mann Leverett, Information Clearing House
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
POSTADO POR CASTOR FILHO
Barack Obama |
O presidente Obama continua – pelo menos por enquanto – a resistir contra o envio de grande número de soldados dos EUA para combater no solo o Estado Islâmico, mas os componentes militares da estratégia anti-Estado Islâmico que ele traçou novamente estão comprometendo os EUA no modelo de guerra sem fim no Oriente Médio criado depois do 11/9. No fim, essa abordagem só pode aumentar o dano que já causou à posição estratégica dos EUA, gravemente abalada no Oriente Médio pelas malsucedidas aventuras militares em que o país meteu-se depois de 11/9/2001.
13 anos depois do fato, as elites políticas e os encastelados no governo dos EUA ainda não conseguiram perceber exatamente a lógica estratégica que motivou os ataques do 11/9 contra os EUA. Claro que a al-Qaeda também tinha interesse em atacar a economia dos EUA e em castigar o povo norte-americano. Mas Osama bin Laden sabia que os efeitos de movimentos naquela direção teriam efeitos apenas temporários e, assim, de valor estratégico limitado; nunca teve ilusões de que os ataques conseguiriam destruir o “modo de viver norte-americano”.
O real objetivo dos ataques do 11/9 foi desencadear reação excessiva dos EUA: levar Washington a lançar campanhas militares prolongadas contra terras muçulmanas. Essas campanhas galvanizariam o sentimento popular contra os EUA em todo o mundo muçulmano, mobilizariam os públicos em todo o Oriente Médio contra governos regionais (como o que reina na Arábia Saudita, terra natal de bin Laden) que cooperem politicamente e militarmente com os EUA, e mobilizariam as populações a favor de combatentes jihadistas que resistem contra a dominação pelos EUA. Com olhos no futuro, o líder da al-Qaeda soube antecipar que a reação local viria, contra a reação excessiva dos EUA a uma provocação, e que aquela reação local a uma provocação terrorista acabaria por minar realmente os fundamentos regionais da capacidade de os EUA deslocarem força militar massiva para o Oriente Médio; e que forçaria os EUA a desengajar-se da região e voltar para casa.
Vistas as coisas por essa perspectiva, os EUA caíram com espantosa pressa, nesses planos de bin Laden. As invasões norte-americanas pós-9/11 cum campanhas para mudança forçada de regimes no Afeganistão, Iraque e Líbia foram fracassos estratégicos que deixaram os EUA ainda mais fracos que antes – em termos da sua capacidade para alcançar objetivos definidos no Oriente Médio, da posição econômica e como principal superpotência mundial.
O resultado mais importante do fracasso de todas essas campanhas, foi que mataram, esquartejaram e evisceraram o que a maioria da população que vive no Oriente Médio ainda percebia como legitimidade dos objetivos dos EUA naquela região. Resultado disso, a “guerra ao terror” que os EUA autodeclararam garantiu que a ameaça que o extremismo jihadista violento impunha aos interesses dos EUA se ampliasse, em termos de base local; se complicasse muito e se tornasse mais perigosa, hoje, do que foi há 13 anos.
Fazendo sempre a mesma coisa...
Agora, em resposta ao crescimento dramático do Estado Islâmico, o governo Obama já quer outra vez meter-se pela via já gasta e colossalmente autodestruidora das reações estratégicas excessivas. A estratégia do governo para lidar com o Estado Islâmico é perfeito caso exemplar, do que Einstein (mas é definição apócrifa) definiu como “insanidade” – “repetir sempre a mesma coisa, outra vez, outra vez, outra vez, e sempre esperando resultado diferente”. Porque absolutamente não há base racional para supor que os EUA obterão resultado diferente – e pressuposto melhor! – dessa vez.
Isso torna a campanha militar de 2014 contra o Estado Islâmico exemplo perfeito da “guerra idiota” à qual, ainda candidato em 2008, Obama prometeu aos eleitores nos EUA que se oporia.
O presidente Obama pode declarar quantas vezes quiser que o Estado Islâmico não é islâmico – mas fato é que o movimento inicia sua luta contra os EUA com extraordinário nível de apoio das populações sunitas muçulmanas. Em julho de 2014 – quer dizer, antes de os EUA começarem a atual campanha de ataques aéreos contra alvos do Estado Islâmico no Iraque – pesquisa distribuída pelo jornal pan-árabe Al Hayat (que pertence aos sauditas) mostrou que 92% dos sauditas entendiam que o Estado Islâmico “está conforme os valores do Islã e da lei islâmica”. Na Jordânia e no Kuwait, postados do Estado Islâmicos pela empresa Facebook receberam dezenas de milhares de “curtir” em apenas poucas horas; postados pela empresa Twitter e outras empresas de mídias sociais sugerem que há considerável reserva de apoio popular ao Estado Islâmico entre jordanianos, kuwaitianos, sauditas e outras populações árabes. Arábia Saudita e Jordânia geraram grandes contingentes de jovens adultos, que abandonaram os países natais para se alistarem ao lado do Estado Islâmico, que arrasta guerreiros para o que consideram guerra santa, em todo o mundo sunita.
Nessas condições, a ação militar dos EUA contra o Estado Islâmico só jogará, mais uma vez, a favor da grande estratégia dos jihadistas: arrastar “cruzados” (o ocidente, corporificado, para eles, nos EUA) e “infiéis” (xiitas) para a batalha pressuposta santa dos sunitas – o que fará condensar-se o apoio que o Estado Islâmico recebe em todo o mundo sunita.
Longe de conter as provocações do Estado Islâmico, os ataques aéreos dos EUA só incentivarão o grupo a mais e maiores provocações. O movimento não executou nenhum dos jornalistas norte-americanos que já tinha como reféns (por bem mais de um ano, em alguns casos), senão depois que os EUA começaram os bombardeios em agosto. Naquele mês, o Estado Islâmico degolou o jornalista James Foley para atrair atenção mundial, o que conseguiu amplamente, com a publicação de um vídeo por YouTube. O grupo dizia ao mundo que, se as forças militares dos EUA continuassem com os bombardeios, outro prisioneiro seria executado, Steven Sotloff. Claro que o bombardeio continuou; no início de setembro, como ameaçara fazer, o Estado Islâmico degolou Sotloff e, outra vez, atraiu audiência mundial com divulgação de novo vídeo.
Execuções de James Foley (E) e Steven Sotloff |
As terríveis execuções dispararam muita indignação entre as elites e geraram apoio suficiente na opinião pública nos EUA para que o governo Obama pudesse ampliar a ação militar dos EUA contra o Estado Islâmico. Mas uma das consequências mais altamente previsíveis de os EUA não terem apenas ampliado a campanha de ataques aéreos contra o Estado Islâmico no Iraque, mas de a terem expandido também para a Síria (como o presidente Obama parece decidido a fazer) será mais e mais provocações como a degola de Foley e Sotloff.
De fato, o Estado Islâmico só faz dar andamento à estratégia da qual bin Laden foi pioneiro há 13 anos: provocar Washington para que escale as operações militares dos EUA no Iraque e Síria. Ação militar sustentada dos EUA contra o Estado Islâmico, ainda que fique confinada ao que Obama chama de “campanha sistemática de ataques aéreos contra aqueles terroristas” – com certeza contribuirá para dar mais prestígio ao Estado Islâmico aos olhos do povo e ampliar a resistência contra os continuados esforços dos EUA para dominar o mundo muçulmano. Não apenas fará aumentar o já considerável apoio popular ao Estado Islâmico no mundo muçulmano; também minará ainda mais a posição estratégica dos EUA no Oriente Médio, já tão enfraquecida.
…outra vez, outra vez, outra vez
Assim também a ideia de Obama de dar “apoio em solo às forças que estão combatendo aqueles terroristas” porá os EUA na posição surreal de pretender combater a ameaça dos combatentes jihadistas, pagando, armando e treinando... mais combatentes jihadistas.
A ideia é que haveria alguma oposição síria moderada com suficiente potencial militar e – mais importante – com apoio popular dentro da Síria suficiente para derrubar o governo do presidente Assad não passa de mito. Pretender, além do mais, que esses oposicionistas moderados míticos poderiam enfrentar e derrotar o Estado Islâmico, isso, já beira a mentira e a desonestidade flagrantes ou é sintoma de perigoso descolamento da realidade.
Para ter alguma mínima chance de efetivamente lidar com o Estado Islâmico, Washington precisa, antes, reconhecer que as premissas de sua política para a Síria são erradas – que Assad teria perdido o apoio da maioria dos sírios; e que poderia ser derrubado por oposicionistas apoiados por estrangeiros. Teria também de reconhecer que pôr fim à insurgência anti-Assad é essencial para minar a base do Estado Islâmico no nordeste da Síria. Grupos da oposição síria que um dia foram seculares e moderados já estão hoje quase completamente infiltrados por militantes islamistas.
A Casa Branca está, para dizer o mínimo dançando sob o fogo de notícias de que elementos de um dos grupos supostamente “moderados” e seculares da oposição síria ao qual o governo Obama quer agora entregar centenas de milhões de dólares em mais ajuda militar e financeira vendeu Steven Sotloff aos militantes do Estado Islâmico que depois o executariam. Essas notícias chamam a atenção para um grande problema da estratégia de Obama: a principal coisa que acontecerá, se se aumentar o apoio dos EUA a oposicionistas sírios “moderados”, é que se abrirão mais canais pelos quais o Estado Islâmico poderá obter do Ocidente ainda mais armas e equipamentos militares do que já tem.
Jihadistas do Estado Islâmico no deserto do Iraque |
O que falta: uma verdadeira estratégia regional
Quando se veem as premissas erradas sobre as quais o governo Obama apoia sua política para a Síria, vê-se outra contradição debilitante que há no coração da estratégia declarada para deter e, na sequência, desmantelar o Estado Islâmico. Essa contradição brota da distância que separa a retórica dos EUA sobre uma estratégia regional para enfrentar o Estado Islâmico e o que a diplomacia regional dos EUA está realmente fazendo.
É claro que tem de haver uma estratégia regional para lidar com o Estado Islâmico. Obama e seus principais assessores só fazem dizer e repetir que tem de haver. Mas a noção deles do que seja uma estratégia regional só considera regimes sunitas autoritários não representativos, que dependem de Washington para a própria segurança – a saber, Arábia Saudita, os demais membros do Conselho de Cooperação do Golfo, Egito e Jordânia. Esses governos, ao prover vários tipos de apoio aos militantes sunitas no Iraque e na Síria, facilitaram, na verdade, a extraordinária ascensão do Estado Islâmico. Não há como esse tipo de “estratégia regional” vir a contribuir significativamente para deter e, na sequência, desmantelar o Estado Islâmico.
Uma verdadeira estratégia regional contra o Estado Islâmico teria necessariamente de incluir Rússia, Irã e o governo de Assad na Síria – em posições de destaque. Porque esses são atores essenciais em qualquer esforço sério para enfrentar e superar o desafio multifacetado que o Estado Islâmico está impondo. Mesmo assim, altos funcionários do governo Obama descartaram a ideia de trabalhar com os governos do Irã ou da Síria, e o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, reclama que o diálogo de Washington com Moscou sobre o Estado Islâmico – se puder ser mesmo chamado “diálogo” – é muito mais pro formaque substantivo.
A estratégia de Obama para o Estado Islâmico é calamitoso testemunho do pouco que o governo Obama fez – ou que, no segundo mandato, pretende ainda fazer – para desafiar as ortodoxias da política exterior contra as quais Obama construiu sua campanha eleitoral e motivo pelo qual foi eleito para o primeiro mandato. Mostra também o muito que vários governos norte-americanos fizeram ou deixaram fazer na direção de enfraquecer e desmoralizar a posição dos EUA, em duas décadas e meia, desde que os EUA saíram da Guerra Fria como o estado mais poderoso em toda a história.
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[*] Flynt Leverett e Hillary Mann Leverett são autores de Going to Tehran: America Must Accept the Islamic Republic of Iran (New York: Metropolitan, 2013), que acaba de sair em brochura, com novo pósfácio. Ambos tiveram carreiras importantes no governo dos EUA, antes de abandonarem os cargos que tinham no Conselho de Segurança Nacional, em março de 2003, por não concordarem com a política para o Oriente Médio e a “guerra ao terror”. Atualmente Flynt Leverett é professor da Escola de Assuntos Internacionais da Pennsylvania State University e professor convidado da Escola de Estudos Internacionais da Universidade de Pequim, China. Hillary Mann Leverett é conferencista da American University em Washington e professora visitante da Universidade de Pequim, China.
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