Arminio Fraga, por uma questão de Justiça, ou a legitimação do grande capital

Desde o século 19 o grande capital passou a se articular internacionalmente. Através do Banco da Inglaterra criou a primeira estrutura de coordenação global das economias nacionais.
Na ponta institucional, o Banco da Inglaterra comandava a política de juros, sendo acompanhado por bancos centrais de outros países europeus. A academia inglesa despejava pelo mundo os portadores da seminova ciência da economia, levando para seus países princípios como o padrão ouro (o BC só poderia emitir moeda se tivesse lastro em ouro), a liberdade ampla dos capitais e a obrigação de pagar suas dívidas. O cobrador das dívidas soberanas era a Real Armada Britânica.

Nesse ambiente favorável, pululavam os banqueiros britânicos, associados a banqueiros dos diversos países, administrando os recursos do grande capital internacional e local. Foi assim com a associação de banqueiros londrinos com o Ministro da Fazenda Rui Barbosa e seu Daniel Dantas, o Conselheiro Mayrink.
Esse comunidade financista se prolongou no tempo, com suas regras e valores, diferentes obviamente dos valores de militantes sociais, de socialdemocratas ou esquerdistas.
Mas, assim como em outros ambientes, há uma escala de valores que separa os estadistas dos chamados piranhas financeiros.
Por estadista entenda-se o capitalista que acredita, de fato, em um mundo desenhado pelo grande capital, que seria o condutor dos destinos da humanidade, trabalhando por legitimá-lo de diversas maneiras: atuando de forma responsável nas políticas públicas, participando da reestruturação de setores, investindo na filantropia, dando um significado aos seus negócios que ajudaria a legitimar e perpetuar essa hegemonia.
O símbolo máxima desse estadista é J.P.Morgan, o banqueiro que teve papel decisivo na superação da crise de 1929, ajudando no financiamento de países e combatendo a falta de limites dos piranhas financeiros. Ao mesmo tempo, foi o banqueiro que expandiu os horizontes dos bancos de investimento, estimulando reestruturações de companhias, fusões, incorporações.
Outro estadista foi Nelson Rockefeller e suas investidas para "civilizar" a América Latina. Naqueles tempos de pós-New Deal, Rockefeller foi dos primeiros representantes do grande capital a tentar contrapor ao terrível colonialismo britânico o "soft power", a criação de condições para o desenvolvimento das nações atrasadas.
No Brasil, a figura máxima desse modelo foi Walther Moreira Salles. Mais recentemente - mas sem a dimensão pública e política de Moreira Salles - Jorge Paulo Lemann, o controlador da Ambev.
Lemann iniciou sua capitalização como piranha financeiro. Administrava fundos partidários de Marcelo Alencar, tinha acesso a informações privilegiadas - como a abortada decisão do Banco Central de Gustavo Franco de recomprar títulos da dívida pública brasileira -, era ousado até o limite da imprudência, como atestam suas primeiras quebras.
Aos poucos, foi amadurecendo e desenvolvendo aspectos legitimadores do seu negócio, tornando-se a liderança do grande capital brasileiro, desenvolvendo uma cultura de gestão e meritocracia que passou a ser imitada por outros financistas.
Na campanha eleitoral de 2002, Lemann teve papel relevante para emplacar economistas que representassem sua visão de mundo. Coube a ele trazer ao Brasil o economista José Alexandre Scheinkman, prestigiado economista brasileiro do Departamento de Economia da Universidade de Chicago e repetir o mesmo modelo de influência política que o país conhece desde o nascimento da República.
Primeiro, a mídia alimentou a lenda Scheinkman, até então conhecido apenas nos círculos acadêmicos. Com a reputação consolidada, Scheinkman passou a indicar "gênios" brasileiros para o candidato Ciro Gomes.
O principal deles foi Marcos Lisboa - que, acolhido por Antônio Pallocci, tornou-se peça importante nas microrreformas empreendidas.
O fator Armínio Fraga
Os economistas do Real nunca foram vistos como peças ideológicas do grande capital. Eram meros ganhadores de dinheiro. Apesar da engenhosidade do Real, sua atuação sempre foi típica das piranhas financeiras, na jogada da apreciação do Real, logo na partida do plano, nas privatizações, na manutenção do câmbio fixo e das taxas de juros escandalosas, até jogadas mais rasteiras com CC5 em Foz de Iguaçu e as tentativas de manipulação de títulos da dívida externa, pouco antes da crise da Rússia.
Em fins de 1998 a economia estava em frangalhos, nas contas fiscais, no front externo, com o maior aumento da dívida pública da história, sem contrapartida de ativos – no regime militar, pelo menos até a crise de 1982, ao aumento da dívida houve a contrapartida de ativos públicos. Quebrado, o país recorreu ao FMI.
A ida ao FMI foi outro escândalo. O Ministro Pedro Malan levantou um empréstimo ponte de US$ 14,8 bilhões, que serviu exclusivamente para facilitar a saída do capital externo do país. Um mês depois, o câmbio explodiu e o país teve que conviver por meses com a escassez de financiamento externo, com a estabilidade econômica por um fio.
Os abusos cometidos, o desarranjo ocorrido na economia promoveram uma imensa perda de legitimidade do modelo econômico adotado por FHC. E o risco – na visão dos banqueiros internacionais – da esquerdização, a ascensão de um líder sindical de esquerda, com toda a fantasia criada sobre o boliviarismo de Lula.
Foi nesse quadro que Armínio Fraga deixou o cargo ambicionado de homem de confiança de George Soros e assumiu o Banco Central. Até então, havia ganhado dinheiro operando em mercados sofisticados, ao contrário de seus colegas do Real, que enriqueceram valendo-se da manipulação de políticas públicas.
À frente do BC, seu trabalho foi o de implementar ferramentas modernas de gestão monetária – o sistema de metas inflacionários (cuja sofisticação e malefícios já descrevi várias vezes aqui), a marcação a mercado, o SBP (Sistema Brasileiro de Pagamentos) e a estabilização do câmbio.
Cometeu erros graves em 2002, sim, já relatados aqui. Especialmente a decisão desastrosa de vender hedge cambial amarrado com LFTs – o principal fator para o pânico que se instalou na economia, conforme relatei na época.
Mas atuou responsavelmente na transição, fazendo o meio campo com Wall Street e facilitando a aceitação do governo Lula pelo establishment financeiro.
PS - A propósito de estadistas: Walther Moreira Salles sempre teve enorme admiração por pessoas que, mesmo professando ideias contrárias, tinham a dimensão do Estado, como Luiz Carlos Prestes e, naquele início dos anos 90, o Vicentinho da Câmara Setorial da Indústria Automobilística.

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