Após 22 anos do massacre do Carandiru contexto para novo extermínio continua
Sistema prisional e políticas de segurança pública atuam na mesma linha que permitiu ao estado matar 111 pessoas. Perfil dos assassinados indica que maioria era de presos provisórios
O perfil dos 111 mortos no massacre do Carandiru é muito semelhante ao da população carcerária atual |
por Ponte*
Há 22 anos, no dia 2 de outubro, na Casa de Detenção de São Paulo, ocorria a maior violação de direitos humanos de cidadãos sob custódia do Estado do mundo. Não há situação semelhante em todo o planeta. Mas nos presídios do Brasil, contextos idênticos e agravados fazem com que abusos de direitos aconteçam com frequência.
São episódios que não chamam a atenção para a responsabilização do Estado. Para as autoridades, parece ser mais fácil e vendável atuar no sentido da militarização, prometendo reforços de atitudes repressivas, do que na correção das deficiências crônicas de ordens sociais e institucionais.
O perfil dos presos do Carandiru que foram mortos no Massacre – ao contrário do que se supõe – mostra a maioria com idade inferior a 30 anos, baixa escolaridade, detida por crimes de natureza patrimonial. Cerca de 80% não tinham sido condenados, eram, portanto, presos provisórios, que ocupavam o superlotado Pavilhão 9. Esse quadro continua ativo, como mostra esta reportagem daPonte.
Foram mortes sem pena. A maioria sequer havia sido condenada.
Naquele sábado, tentou-se esconder o que era impossível de ficar invisível: os corpos foram empilhados pelos presos sobreviventes em locais isolados do complexo penitenciário. Quiseram ocultar os executados para que nada influenciasse o resultado das eleições municipais de outubro, que ocorreriam no dia seguinte. A sociedade civil, naquele momento, teve impressão de que a ação policial tinha sido proporcional à demandada para reprimenda da desordem instalada. O verdadeiro número de mortos fora noticiado apenas 15 minutos antes do fechamento das urnas, no dia 3 de outubro, mais de 24 horas depois das execuções.
Mas, para além do já tão repisado debate acerca da adequação e proporcionalidade da ação da Polícia Militar naquela data, queremos chamar atenção para o fato de que o Massacre do Carandiru não foi – aliás, não é – um evento isolado, algo como uma situação excepcional que escapou ao controle dos envolvidos, e sim uma fotografia instantânea de uma prática habitual na história nacional, que desde os primórdios combina exclusão com violência.
Prática tem origem etimológica no termo “práxis”, e pode ser semanticamente definido como o agir humano pautado pela aplicação de regras e princípios. Partindo dessa problematização do conceito, afirmamos que a prática de massacrar determinados segmentos sociais no Brasil apoia-se no princípio que estabelece a divisão da sociedade em duas categorias distintas de cidadão: o nós, “cidadãos de bem”, e os outros, “criminosos”, historicamente submetidos a um processo de desumanização que permite excluir e exterminar. Como é prática significa que é também habitual, o que revela mais do que uma reiteração temporal e remete a um estilo de vida, que se alicerça em costumes e valores coletivamente compartilhados, de forma consciente ou não.
O perfil dos 111 mortos no Massacre do Carandiru se assemelha ao perfil da atual população carcerária: conforme dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o total de pessoas presas é superior a 700.000 (somando encarcerados com pessoas que cumprem pena em regime domiciliar), sendo a terceira maior população prisional do mundo. É mais que o dobro do que comporta o sistema penitenciário. De acordo com informações do InfoPen (MJ), pouco mais de 1% dos presos possuem nível de instrução acima do ensino médio; o trabalho é garantido a aproximadamente 21% dos presos; somente 9% estudam; nove crimes são responsáveis por 94% dos aprisionamentos; crimes contra o patrimônio e tráfico de entorpecentes são responsáveis por encarcerar 75% dos presos; 40% da população encarcerada é composta por pessoas sem condenação definitiva.
*Maíra Cardoso Zapater e Maria Rosa Franca Roque, especial para Ponte
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