A ascensão do doleiro

Como Alberto Youssef escapou de várias investigações e virou o rei da propina
Alberto Youssef
Alberto Youssef é objeto de investigação desde 2003, junto com Enivaldo Quadrado e o deputado José Janene
Mais do que a discordância com a publicidade imposta aos depoimentos dos réus de processos relacionados à Operação Lava Jato, o motivo do alvoroço e das críticas ao juiz Sérgio Moro é o personagem central da investigação: Alberto Youssef.
É o conhecimento armazenado pelo doleiro ao longo de décadas no mercado de câmbio ilegal que o transformou em pesadelo dos maiores empresários e políticos para os quais prestava serviços até sua prisão, em março. Nesse cenário, os artigos publicados com críticas à delação premiada, os ataques contra a publicidade imposta aos processos e o pedido de bancas criminais para a OAB investigar a conduta de Moro são apenas consequências das tormentas a serem formadas com a delação de Youssef. Autobatizado de “engrenagem” do esquema responsável por movimentar 10 bilhões de reais desde 2009, o braço direito do falecido deputado José Janene, do PP, é sumidade em crimes do colarinho-branco e detentor de uma ficha corrida tão extensa como aquela de qualquer integrante das principais máfias internacionais. Desde a morte do seu mentor, em 2010, o doleiro tornou-se o principal interlocutor do Partido Progressista com as maiores empreiteiras do País, para quem, segundo seu próprio depoimento, não só lavava o numerário ilícito como também cuidava do repasse de propina para agentes públicos.
O caminho de Moro e do doleiro cruzaram-se faz tempo. O titular da 13ª Vara Criminal de Curitiba conheceu Youssef quando ele era réu em processos relacionados ao caso Banestado. De lá para cá, ao escapar de uma série de investigações, Youssef cresceu de forma exponencial, deixou de ser simples doleiro e tornou-se um arquivo vivo a amedrontar muito poderosos.
O caso das contas CC5 do banco estadual do Paraná foi o primeiro grande esquema de dólar-cabo desmontado pelas autoridades brasileiras. Após a descoberta do procurador Celso Três, o Ministério Público Federal montou uma força-tarefa para investigar como um grupo de doleiros brasileiros enviou 30 bilhões de reais ao exterior por meio da agência do banco nos Estados Unidos. Somente Youssef teria sido responsável por movimentar 831 milhões de dólares nessas contas. Flagrado pelos investigadores, Youssef aceitou uma proposta do MPF e da Polícia Federal e perante Moro homologou seu primeiro acordo de delação premiada pelo qual se comprometeu, entre outras coisas, a revelar todos os detalhes do esquema.
Além de entregar os principais doleiros do País, posteriormente presos em operações relacionadas ao Banestado, Youssef explicou o funcionamento das operações no mercado negro de dólar e mostrou como ainda na década de 1990 e início dos anos 2000 ele pertencia a um seleto grupo de “doleiros de outros doleiros”, espécie de banco clandestino. “De 1996 até 1999, por exemplo, foi uma época que existia cobertura, meia dúzia, entendeu, que dava cobertura para o mercado, não tinha mais que isso. Um era eu, a Tupi Câmbios, a Acaray, Câmbio Real, Sílvio Anspach, o Mecer do Rio, o Rui Leite e o Armando Santoni.” Com base em seus depoimentos e em documentos colhidos pelos investigadores, a força-tarefa CC5 conseguiu quebrar perto de 1,1 mil contas no exterior que resultaram na denúncia de 631 acusados por prática de crimes financeiros. Dos cerca de 30 bilhões movimentados, as autoridades conseguiram bloquear 333 milhões no Brasil e outros 34 milhões no exterior. Somam-se a isso mais 4,8 bilhões de reais oriundos de créditos tributários constituídos após a busca dos sonegadores.
Assim como na Lava Jato, as revelações de Youssef causaram furor entre políticos e empresários. Aos moldes da CPI da Petrobras, uma comissão foi instalada no Congresso com o objetivo de investigar os agentes públicos envolvidos no esquema Banestado para receber ou enviar dinheiro ao exterior. Como de praxe, além das conhecidas trocas de acusações e ataques aos investigadores, a comissão não apresentou sequer um relatório final. Em 2004, enquanto os deputados encerravam as investigações na CPI, Youssef prosseguia com sua colaboração na Justiça do Paraná. Como parte do acordo, foi condenado apenas ao semiaberto em um processo por sonegação de impostos e ficou livre das acusações referentes ao uso das contas CC5. Após a condenação, a vida seguiu para Youssef, mas não demorou muito para um escândalo nacional voltar a assombrá-lo.
Em 2005, Moro mantinha as investigações do Banestado e caminhava para tornar-se o maior especialista em crimes financeiros do País. Por sua vez, o doleiro descumpria sua parte no acordo de delação e voltava a delinquir. Por meio de uma corretora de valores, a Bonus Banval, ajudou Janene a lavar parte do dinheiro repassado por Marcos Valério de Souza ao PP. O doleiro, desta vez, teve sorte. Os investigadores do chamado “mensalão” contentaram-se em alcançar seus laranjas, os sócios Enivaldo Quadrado e Breno Fishberg. Livre de qualquer tipo de acusação, a trajetória do doleiro estava preparada para um grande salto. Em 2008, Janene começou a apresentar problemas de saúde. Sem condições para tocar os negócios do grupo político, o deputado repassou ao doleiro a responsabilidade de intermediar as negociações com as maiores empreiteiras e órgãos públicos cujo comando estava sob a tutela do Partido Progressista.
Antes somente um operador de câmbio, ao assumir o posto de Janene, Youssef transformou-se em um lobista completo: negociava com as empreiteiras a distribuição dos contratos, estruturava a engenharia financeira para escoar o dinheiro das licitações fraudadas, criava as empresas de fachada usadas nos desvios e intermediava os repasses aos políticos envolvidos. A clientela de doleiros da década de 1990 deu espaço às construtoras e a caciques políticos de diversas cores partidárias. Em 2010, a morte de Janene por complicações cardíacas sacramentou de vez o crescimento dos negócios de Youssef. Seu escritório passou a ser frequentado por políticos de diversos partidos e o caixa de suas consultorias saiu do zero para movimentar milhões em acordos com empresas contratadas por órgãos públicos espalhados por todo o Brasil. Além das licitações bilionárias da Petrobras e outras estatais, Youssef embrenhou-se em negociações com fundos de pensão e intermediava o pagamento de propina e recebimento de precatórios em governos “aliados” à viabilização de doações a campanhas políticas.
Ainda em 2008 a situação começou a mudar. Na tentativa de lavar outra parte do dinheiro amealhado por Janene no chamado “mensalão”, Youssef deu início a um empreendimento industrial em Londrina. O empresário Hermes Freitas Magnus, um dos sócios no negócio, sentiu-se enganado e denunciou as ações da dupla. Seis anos depois da primeira denúncia anônima de Magnus, em 17 de março deste ano, a Polícia Federal realizou a Lava Jato. Autorizada por Sérgio Moro, a operação descobriu que seu antigo colaborador transformara-se na peça central de uma organização criminosa com tentáculos em ministérios, estatais federais e estaduais e responsável por manter abastecidas as contas de muitos políticos.
O mais recente encontro entre o juiz e o doleiro deu-se em novo contexto. Assim como Youssef, que cresceu na hierarquia do mundo do crime desde 2004, o magistrado, por sua vez, evoluiu na Justiça Federal até transformar-se em um dos maiores especialistas em crimes financeiros. Tão logo se depararam com Youssef, Moro e os investigadores empenharam-se em pressioná-lo. Sua antiga delação foi cancelada, os antigos processos foram reativados, seus bens bloqueados, sua família acuada por seguidos mandados de busca e apreensão e seus parceiros, como o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, foram presos. Não sobrou alternativa a não ser colaborar, outra vez, com Moro.
É nesse momento que começam os ataques ao juiz. Reincidente, Youssef teve de entregar a alma para conseguir o benefício da delação premiada. Ao passo que a colaboração de 2004 serviu para ele dedurar seus concorrentes e reinar absoluto no mercado ilegal de câmbio, o novo acordo não deixa brechas para meias verdades. Caso queira a diminuição nas condenações, o doleiro terá de abrir seu arquivo particular e entregar os dirigentes das empreiteiras com os quais negociou, os políticos destinatários de propina e os pormenores nas negociações de cerca de 750 obras públicas intermediadas por ele.
O nervosismo ampara-se na possibilidade de a Lava Jato transformar-se em um novo caso Banestado ao expor as negociatas entre partidos políticos e a elite do empresariado brasileiro que há muitas décadas dita as regras na política. Assim como no Banestado, Satiagraha, Castelo de Areia e tantas outras investigações, a Justiça tem a chance de passar o Brasil a limpo.

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