O ovo de Marina




Por Saul Leblon
Na Carta Maior

Abstraia a voz, o rosto, a identidade.
Agora leia o que dizem sobre a economia do país os candidatos Marina Silva e
Aécio Neves, ademais de seus assessores oficiais e aqueles mais informais, mas
não menos infatigáveis a mourejar no jornalismo isento...
A semelhança com o linguajar das missões do FMI, ou com a ênfase imperativa dos
atuais comitês interventores da Troika na Europa não é mera coincidência.
É o espírito do tempo.
De um tempo em que paira uma chantagem permanente sobre governos, estados ,
nações, projetos de desenvolvimento.
Um tempo em que a mobilidade de capitais estreitou a tal ponto a voz da
soberania que –não raro- a urna fala, mas não comanda.
Paraísos fiscais marmorizaram-se em um quarto poder da República, para onde
fatias da riqueza se dirigem sempre que contrariadas e na verdade antes mesmo
que se possa tentá-lo.

Um tempo em que é preciso gerar desenvolvimento sem dispor da capacidade de
programação do investimento público e privado condizente.
Um tempo, portanto, em que todo capital é capital estrangeiro.
E que o interesse local não faz mais sentido a quem detém o poder de exigir uma
convergência trabalhista baseada no piso mundial de direitos e no teto global da
produtividade.
Uma China sem o Estado chinês; uma carga fiscal de Ruanda, com a eficiência
suíça.
Essa, a agenda dos endinheirados nas eleições presidenciais de 2014.
É o espírito do tempo excretado diuturnamente pela emissão conservadora.
Cobra-se das nações que convivam com a incerteza como o peixe com a água.
Ainda que a incerteza dificulte a respiração hoje, e impeça a visão do amanhã.
Não importa: a incerteza é o plâncton dos cardumes especulativos.
Governos, povos e nações precisam de chão firme. Previsibilidade para erguer uma
hidrelétrica. Estabilidade para educar um filho. Regulação, fundos públicos para
realizar um ciclo de investimento.
Os magos da arbitragem desdenham: respira-se melhor debaixo do oceano da
incerteza.
Precifica-se hoje o poder coercitivo adicional de uma subida das taxas de juros
norte-americanas, capaz de ampliar a margem de manobra dos capitais voláteis.
Perdigueiros do glorioso jornalismo de economia farejam diariamente o cheiro da
virada no ar –se não for hoje, de amanhã não passa, uivam colunas desfrutáveis.
Quem dá mais? É dessa pergunta que vive a especulação.
Na crítica cerrada ao ‘intervencionismo da Dilma’, por ter abandonado as ‘reformas
amigáveis’, parte-se do princípio de que os anos de 2007/2008 nunca existiram no
calendário das grandes crises do capitalismo mundial.
O photoshop na história permite descartar perguntas incômodas.
Uma resume as demais.
Onde estaria o Brasil hoje se a sua condução no colapso neoliberal dobrasse a
aposta no veneno –com a mesma formulação e posologia preconizadas agora pelos
presidenciáveis que levam plateias banqueiras ao delírio plutocrático?
A omissão desses detalhes distorce um debate eleitoral cujo pano de fundo é o
passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.
Marretadas demolidoras golpeiam dia e noite a confiança erigida ao longo de uma
década na construção negociada de uma democracia social no país.
A mensagem é nada sutil: ‘afrontar o mainstream leva ao caos’.
Um caos condensado no ingresso ‘voluntarista’ de 20 milhões de ex-miseráveis no
mercado e na ascensão de 40 milhões na pirâmide de renda.
O que fazer com esse aluvião humano?
Devolvê-lo ao lugar de onde veio para desobstruir as artérias do mercado e o país
poder andar.
Esse, o substrato da agenda conservadora no debate eleitoral da transição
brasileira: o ajuste ‘inevitável’ que o intervencionismo da Dilma se recusa a fazer.
Ou o ministro da Fazenda, Guido Mantega, não informou nesta 2ª feira que o
governo vai usar recursos do Fundo Soberano, para cobrir a previsão de arrecadação
menor em vez de proceder ao devido arrocho fiscal?
Em tempo: o fundo foi criado por Lula em 2008, três meses após a quebra do
banco Lehman Brothers, com recursos excedentes do superávit primário de então
(da ordem de 0,5% do PIB)
Um fundo contracíclico, que engorda nas águas e cede gordura na seca.
Não para o jornal O Globo , que sapecou no dia seguinte: “Ontem, o governo
reduziu em R$ 10,5 bilhões sua previsão de receitas para este ano. Mas, em vez de
cortar (NR: onde, na saúde, por exemplo?) na mesma proporção a estimativa de
gastos, decidiu sacar R$ 3,5 bilhões do Fundo Soberano para cobrir parte da
diferença’.
Não ficou nisso a reação indignada.
Coube à doce Marina sintetizar o endosso dos presidenciáveis do peito do mercado
à estupefação da família Marinho.
Aspas para a candidata do PSB:
‘O uso dos recursos do fundo para socorrer as contas públicas é uma demonstração
clara de que o atual governo está comprometendo a estabilidade econômica de
nosso País’.
Doce Marina Silva.
A Marina de hoje é a prova viva de que não basta ter dividido um ovo solitário com
os irmãos na infância pobre.
É preciso ter a determinação de não permitir que isso se repita no país.
Requer instituições sólidas e políticas discricionárias que afrontem a lógica
responsável por levar uma penca de filhos a depender de um singelo ovo.
Mas o que propõe a doce Marina décadas depois do ovo?
Renunciar ao uso de um fundo soberano.
Renunciar ao manejo da moeda, do câmbio e do juro, em benefício de um BC
independente ‘da ingerência política’ congênita à democracia.
Renunciar à importância dos bancos públicos.
Rebaixar o pré-sal e tudo que a ele se interliga em termos de educação, saúde,
reindustrialização e soberania.
Marina engrossa o jogral obcecado em provar a ineficácia das medidas que
mudaram o padrão da política econômica herdada do ciclo liberal-tucano.
Seu ovo hoje choca a mórbida restauração de uma ordem ancorada nas ruínas de
seus próprios dogmas e promessas.
Diante da fenda exposta pela crise mais grave do capitalismo desde 1929, o que
se propõe é transformar a água em seu próprio dique.
A vítima paga a indenização ao agressor.
A prostração que atinge mesmo setores mais intelectualizados na atual campanha
vem da impotência anterior da democracia para romper o fastio com o discurso
neoliberal, e renovar a agenda da sociedade e do desenvolvimento, em meio à
crise sistêmica criada pela supremacia financeira.
Da reação a essa encruzilhada nasce um voto trincheira.
Um voto crítico, mas firme, em Dilma Rousseff nas eleições de 2014, que Carta
Maior traz a público, na manifestação de intelectuais, artistas e lideranças sociais.
Carta Maior entende que esse voto condensa um estado de espírito representativo
e um debate necessário.
Um voto firme, por não enxergar na pretendida terceira via uma alternativa ao risco
da restauração neoliberal ainda mais radicalizada e excludente, servindo-lhe,
antes, como lubrificante.
Um voto crítico, por entender que a prostração democrática atual é o produto
histórico de uma correlação de forças desfavorável urbi et orbi. Mas também de
hiatos políticos insustentáveis em um projeto mudancista.
A eleição de outubro oferece a singular oportunidade de se demonstrar que não é
necessário que seja assim.
O primeiro passo é tomá-la como um ponto de partida, que não se esgota no
calendário de outubro. E tem no avanço da democracia participativa a base de um
compromisso capaz de reciclar a prostração em engajamento; e a crítica em
mobilização propositiva para a construção de uma verdadeira democracia social no

Brasil .

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