O crime do silêncio
O Tribunal Russell reuniu esta semana, no dia 24, em Bruxelas para uma sessão extraordinária em resultado da guerra em Gaza. É por demais evidente que foram cometidos crimes de guerra em Gaza, crimes contra a humanidade, crimes que nos deveriam envergonhar a todos.
"Desejo a todos vós, a cada um de vós, o vosso próprio motivo de indignação". As palavras que escrevi são de Stéphane Hessel, que nasceu alemão e morreu francês, sobreviveu a um campo de concentração. Hessel foi o promotor e patrono do Tribunal Russell para a Palestina, o mesmo Tribunal que se apresenta assim: "Pudesse este Tribunal prevenir o crime do silêncio".
O Tribunal Russell reuniu esta semana, no dia 24, em Bruxelas para uma sessão extraordinária em resultado da guerra em Gaza. O júri - composto por John Dugard, Miguel Angel Estrella, Christianne Hessel, Richard Falk, Ronnie Kasrils, Paul Laverty, Ken Loach, Michael Mansfield, Radhia Nasraoui, Vandana Shiva, Ahdaf Soueif e Roger Waters - ouviu testemunhos longos e comoventes durante um dia inteiro. As testemunhas incluíram jornalistas (um americano, um inglês, um israelita e um palestiniano), médicos, ativistas, especialistas em direito, especialistas em conflitos. Imagens, sons, relatos dos dias de horror que se viveram em Gaza no Verão passado. Houve duas testemunhas que não puderam ser ouvidas. O governo de Israel não as deixou sair. O júri ouviu e deliberou, assim como ouvimos todos/as os/as que assistimos à sessão do Tribunal. Indignação, muita indignação, e um nó no peito que teima em não desfazer-se. É por demais evidente que foram cometidos crimes de guerra em Gaza, crimes contra a humanidade, crimes que nos deveriam envergonhar a todos. Os relatos acrescentaram indignação à indignação já existente e trouxeram informação excessiva, coisas que gostaria de nunca ter escutado.
No dia seguinte, o júri deslocou-se ao Parlamento Europeu. Foram-nos entregues 12 páginas de deliberações. Diria eu, doze páginas de reivindicações básicas de quem entende que crimes como estes não podem continuar a ser praticados e de que estes crimes não podem ficar impunes. O silêncio sobre eles é também uma forma de perpetuá-los. A conivência com eles faz de nós cúmplices deste massacre.
Falar em nome de quem não tem voz na Palestina traz sempre um rol de pressões e de ameaças. Quebrar o silêncio tem custos. A ocupação a que estão sujeitos os territórios palestinianos é tacitamente aceite pela comunidade internacional, assim como se multiplicam as narrativas de que defender o direito do povo palestiniano ao seu território, à paz, à dignidade é sinónimo de anti-semitismo ou de apoio ao Hamas. É assim simples e linear: defender os direitos mais básicos de um povo classifica-se sumariamente de "atividade terrorista". Precisamente porque não sou anti-semita, não poderei calar as atrocidades de Israel. Precisamente porque não apoio o Hamas, não poderei deixar de falar por aqueles que não têm voz.
Quando divulguei a iniciativa de trazer o Tribunal Russell para a Palestina ao Parlamento Europeu recebi por atacado dezenas de mensagens, comentários e e-mails com um conteúdo muito claro: "Quero dizer-lhe que a senhora já consta do Tribunal Divino e a sua sentença será o Inferno "; "A senhora anda a defender um povo em nome de um Deus menor"; "É impossível lutar contra os propósitos de Deus. Todos quantos o fizeram deram-se mal, muito mal mesmo. Espero que você não seja a próxima a cair nessa desgraça e maldição, pois Deus promete amaldiçoar todos quantos amaldiçoam Israel". Mensagens em nome de um Deus que amaldiçoa, de um Deus que não trata todos por igual, de um Deus vingativo, de um Deus que, seguramente, não fará parte do imaginário da maioria daqueles que acreditam em Deus.
Quebrar o silêncio, impedir que a impunidade continue, defender um povo aprisionado e martirizado em Gaza é defender que a dignidade e os direitos humanos devem ser condições básicas de existência de qualquer pessoa. Como na história de Roger Waters, quando o neto dizia ao avô: "avô estão a matar muitas crianças". O avô respondeu: "não, não estão a matar crianças". E o neto retorquiu: "não é aqui avô, é ali".
Artigo publicado no jornal “As Beiras” em 27 de setembro de 2014
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