Caros senhores signatários do 'Manifesto à nação brasileira´



Esta é uma carta escrita por uma historiadora, nascida no início da década de
1980, e que dedicou os últimos doze anos ao estudo da ditadura civil-militar
brasileira. Embora não tenha vivido “integralmente este período” – o que me daria
uma pretensa legitimidade enquanto testemunha – as credenciais de historiadora
permitem que eu contraponha a memória dos senhores sobre a ditadura – porque
não ousaria chamar seu pronunciamento de história – a partir de alguns
questionamentos comuns a um pesquisador, ou parafraseando Brecht, a um
operário que lê.

Não me prolongarei em relação à tortura. Frente às evidências empíricas –
documentais e testemunhais – de seu emprego como prática sistemática pela
ditadura, de seu ensinamento em cursos de interrogatório (assumido anteriormente
por generais que assinam esse manifesto), as teses de “casos pontuais” ou
“excessos” carecem de legitimidade. A tortura foi regra, e não exceção durante o
regime discricionário. E, se foram casos que não contavam com a aprovação da alta
oficialidade, por que não foram investigados e os responsáveis punidos no
momento em que as denúncias ocorriam? A impunidade também foi um erro, assim
como os desaparecidos políticos?
Me deterei, um pouco mais, na tentativa de lhes explicar a ineficácia
argumentativa da “teoria dos dois lados”, ou “teoria dos dois demônios”, como
ficou conhecida a tentativa de equiparação entre os crimes cometidos pelo Estado
e os oriundos da violência revolucionária das organizações guerrilheiras. Os
senhores realmente acreditam que o Estado e seu aparato de informações e
repressão pode ser comparado a ações de guerra revolucionária?
Em meus estudos, aprendi que, enquanto cidadã, eu posso delinquir – e,
possivelmente, serei julgada e condenada pelos meus atos (a não ser que seja
agraciada por uma lei de anistia, como a de 1979). No entanto, o Estado, cuja
função última é garantir minha integridade e segurança, deve utilizar os recursos
jurídicos existentes para pautar suas ações – e não cometer crimes, como o
sequestro, a tortura, a morte e o desaparecimento. Mesmo que seus “inimigos”
desejassem regimes socialistas e comunistas, e aos senhores lhes competia a
defesa do “Estado brasileiro de organizações que desejavam implantar regimes
espúrios em nosso país” ainda assim lhes cabia a exceção, a morte, o
desaparecimento?
Questiono-os mais uma vez, quanto aos “erros” cometidos: houve investigação,
processo e condenação – algumas vezes, à prisão perpétua e à morte – de
integrantes da esquerda armada; e os senhores, generais? Responderam aos seus
“erros”? Será que os “dois lados” não valem, também, para a responsabilização
penal? Afinal de contas, se os senhores assumem que foram anistiados – em bom
juridiquês, isentos de punibilidade – isso não significa que os senhores admitem
terem cometido crimes? – sim, por que como anistiar um crime que não existiu?
Existe a possibilidade de comparar o tribunal penal militar ao qual foram
submetidos os “subversivos” a uma comissão que não possui prerrogativas
punitivas, apenas de averiguação de fatos, de uma “verdade histórica”? E, por falar
em “verdade histórica”, para encerrar esse tópico, talvez seja importante lembrar
que o trabalhismo, eixo da política de João Goulart, presidente à época do golpe
civil-militar, está muito longe de uma ameaça comunista e/ou de subversão. Então,
quem deu o primeiro passo? E, mesmo que houvesse guerrilha antes de 31 de
março de 1964, existia a necessidade de uma quebra da ordem constitucional e
supressão da democracia?
Caros senhores, em que pese as críticas que podem ser feitas ao trabalho da
Comissão Nacional da Verdade, se não há avanços em suas investigações é
porque, em parte, não há colaboração dos senhores. Se existe tanto orgulho e
regozijo dos 21 anos de ditadura, por que se calar diante das convocações da
comissão? Não seria a possibilidade dos senhores manifestarem sua opinião, como
em um legítimo regime democrático? Ainda sobre a comissão, creio que falte
maiores informações para os senhores, mas não há pagamento de nenhuma
indenização por dito órgão – apenas pela Comissão sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos e pela Comissão de Anistia. Tal “bolsa ditadura” se trata de uma medida
compensatória pela dificuldade ou impossibilidade de reparar as sequelas da
tortura, os traumas do desaparecimento, e a ausência gerada pela morte. “Bolsa
ditadura”, paga com o erário público, o mesmo que mantém as voluptuosas
aposentadorias que os senhores recebem por cumprirem os ditames “do Exército de
Caxias”.
Quanto ao pedido de desculpas, talvez não lhes compita, mas sim à presidenta,
comandante-em-chefe das Forças Armadas e representante do Estado brasileiro,
que espero que assuma um compromisso ético e moral que não permita se
orgulhar de um passado ditatorial, responsável por sequelas individuais e coletivas
que impregnam a democracia. Os senhores podem manifestar-se individualmente,
se assim desejarem e se os destinatários desse ato assim o quiserem, pois
acredito que eles querem muito mais; nem desculpa, nem perdão: mas justiça!
(*) Caroline Silveira Bauer é professora de História Contemporânea na Universidade
Federal de Pelotas. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul e pela
Universitat de Barcelona, é autora do livro "Brasil e Argentina: ditaduras,
desaparecimentos e políticas de memória".


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