Breno Altman: Isolamento não é prova de inconformismo
No início dessa semana, um importante dirigente do PSOL, Juliano Medeiros, deu-se ao trabalho de responder nota que eu havia recentemente escrito, acerca do caráter marginal de agremiações políticas que buscam se situar à esquerda do PT. Seu artigo atende pelo título “Resposta a Breno Altman: por uma esquerda inconformista”.
Por Breno Altman*
A questão proposta em meu texto era simples e o encabeçava: “Por que a ultraesquerda brasileira é residual?”. Não houve qualquer intenção ofensiva na pergunta enunciada. A história está repleta, afinal, de pequenos grupos que lograram rapidamente plantar frondosas alternativas de poder.
Não é o que ocorre, no entanto, com os agrupamentos mencionados em meu breve artigo. O desempenho eleitoral do PSOL, PSTU, PCB e PCO, tudo junto e misturado, dificilmente chegará a 2% nas eleições presidenciais. A curva de resultados, após atingir seu pico em 2006, é declinante e beira a inanição. Tampouco sua influência nos movimentos sociais e nas lutas populares é relevante, com a exceção de alguns segmentos minoritários.
Essa constatação foi feita apenas para fazer jus a um clássico axioma: a prática é o critério da verdade. Maus resultados, depois de um longo período, deveriam obrigar à revisão de orientações adotadas. Outra opção é sobreviver como pequenas seitas, senhoras da luz e da razão, mas cujas ideias supostamente corretas jamais são capazes de servir como amálgama para uma força social expressiva.
Medeiros labuta para explicar, em sua resposta, a existência de diferentes concepções entre as correntes citadas. Aceitemos que suas explanações sejam certeiras e apropriadas. Todos estes grupos, ainda assim, têm em comum, mesmo com distintas matizes, a mesma caracterização sobre o Partido dos Trabalhadores: o maior instrumento político que o proletariado brasileiro logrou forjar teria se passado, de malas e bagagens, para o campo da burguesia.
Tal conclusão é seminal para a atuação de legendas pretensamente situadas à esquerda da esquerda. Ela nasce da compreensão de que o governo petista configurou-se em comitê gestor a serviço das companhias capitalistas e, portanto, no principal inimigo a ser combatido. No curso dessa transição, teria arrastado o próprio partido para a posição de apêndice político das classes dominantes.
O dirigente do PSOL ensaia certo cuidado em sua análise, mas em termos que ressaltam seu ponto de partida. Ao se referir à presumida posição do PT como fiador de um “pacto conservador”, Medeiros indaga e responde a si próprio: “Isso é o mesmo que dizer que o PT e os demais partidos burgueses seriam farinha do mesmo saco? Evidente que não.” O fato é que, ao determinar diferenças táticas no tratamento de diferentes partidos, o psolista reafirma o eventual transformismo de classe operado pelo PT, agora vicejando ao lado dos “demais partidos burgueses”.
Este padrão de raciocínio não é novo. Trata-se de comparar a trajetória petista a de partidos sociais-democratas europeus que, nascidos no movimento operário, acabaram por se alinhar a suas respectivas burguesias nacionais durante a Guerra Fria. Foram ainda mais longe: com o colapso da União Soviética, aprofundaram sua submissão à hegemonia norte-americana, ao capital financeiro, à doutrina neoliberal e a excrecências como o chauvinismo.
Pode-se argumentar, com razoável comprovação nos fatos e narrativas, que o PT veio a se converter em um partido reformista, a partir de sua estratégia de aproximação do poder pela via institucional. Eventualmente alguns de seus quadros tenham saltado o alambrado. Mas não há qualquer fundamento na realidade para se afirmar que tenha reproduzido o curso social-democrata europeu, o da passagem para outro campo de classe, ou que esteja próximo de fazê-lo, ainda que o risco esteja sempre presente em um partido que opera por dentro do Estado.
As medidas e políticas adotadas desde 2003, ainda que possam ser consideradas débeis e insuficientes, tiveram caráter de resistência ao modelo rentista herdado dos governos anteriores e emulado de projetos animados pelos países centrais do capitalismo. Ao lado de outras experiências latino-americanas, mais ou menos radicais, o PT impulsionou programa na contramão do ciclo histórico aberto nos anos oitenta.
A aplicação de políticas distributivistas promoveu a maior e mais prolongada onda de crescimento de renda e emprego entre os trabalhadores desde os anos quarenta. A inclusão social se transformou na principal ferramenta para ampliação do mercado interno de massas como força propulsora do desenvolvimento, apoiada também por iniciativas que ampliaram direitos de acesso à moradia e à educação.
O Estado vem recuperando papel regulador e protagonismo econômico, com a expansão dos investimentos públicos e o fortalecimento dos bancos estatais. Outras empresas sob controle governamental também tiveram suas atividades alavancadas, a começar pela Petrobrás, cuja musculatura foi tonificada após a descoberta do pré-sal e a substituição do regime de concessão pelo de partilha.
Essas reformas, no fundamental, não alteraram as estruturas da economia e do poder político, mas representam alternativa programática distinta daquela defendida pelos núcleos dirigentes da burguesia interna e seus sócios internacionais. Não é à toa a guerra permanente dos meios tradicionais de comunicação, efetivos partidos das classes dominantes, contra os governos de Lula e Dilma.
A adaptação de determinadas corporações ao predomínio da agenda petista não anula sua oposição de classe. O capital, como sabe qualquer curioso pelos assuntos da história, busca acomodação, se possível, até a processos revolucionários. Quanto mais a uma situação instável, no quadro de um governo de coalizão, sem maioria parlamentar de esquerda, com as velhas instituições praticamente intactas, na qual são vastos os espaços para a disputa entre diversos projetos e interesses.
Ainda que limitadas, na essência, à realocação de recursos orçamentários e ao redirecionamento de fundos públicos, as mudanças implementadas pelas administrações petistas se contrapõem à lógica rentista e aos primados neoliberais, em movimento inverso ao da social-democracia europeia.
Medeiros até chega a considerar estes fatos como “ganhos reais”. Mas logo emenda que “não comprovam qualquer compromisso em si”. Do bolso de seu colete saca uma espantosa tese para tentar argumentar exatamente o contrário, que esses “ganhos reais” são um sinal de capitulação do PT: “aumentar a renda e expandir gastos públicos são instrumentos utilizados pela burguesia sempre que as condições conjunturais permitem.”
A afirmação reflete ilusão escandalosa. Quer dizer que há vontade patronal natural para “aumentar renda e expandir gastos públicos”, cujo obstáculo seriam apenas “condições conjunturais”? Em qual momento da história a burguesia aceitou aumentar a renda dos trabalhadores sem que fosse por poderosa pressão do movimento operário, interna ou internacional, através de lutas sindicais ou governos de caráter popular?
Mas o pior aspecto de sua peroração fantasiosa diz respeito ao desconhecimento do mundo no qual vivemos depois do colapso da União Soviética. Todos os países capitalistas, nos últimos quase 25 anos, sob governos conservadores ou sociais-democratas, padeceram com a redução dos salários reais dos trabalhadores e a diminuição dos gastos públicos com programas sociais. As únicas exceções foram nações governadas por partidos de esquerda, de oposição ao neoliberalismo, como é o caso do Brasil no período petista.
Trata-se de estelionato político da pior qualidade reconhecer “ganhos reais”, mas classifica-los como normais aos interesses da burguesia ou triviais em um cenário internacional ainda dominado pela hegemonia unipolar do imperialismo norte-americano.
A banalização das conquistas, para enquadrá-las na teoria da suposta domesticação petista, da qual o PSOL e seus parceiros parecem depender para respirar, acaba confluindo para a seguinte conclusão: “este também é um governo da direita, ou ao menos de parte dela”.
Obviamente esta afirmação vem acompanhada da crítica à política de alianças, tanto no campo econômico quanto institucional. Medeiros não se deu ao respeito de citar, como caberia a um quadro responsável, a contradição fundamental decorrente da eleição de um presidente de esquerda sem maioria parlamentar. Qual a alternativa para uma situação como essa, a propósito, além da negociação com setores e partidos da burguesia que, se descolando da fração dirigente do neoliberalismo, aceitassem respaldar um programa mínimo e progressista de governo? Afinal, não foi assim que se obtiveram os tais “ganhos reais” reconhecidos até pelo açodado crítico?
Não passa de charlatanismo caracterizar o atual governo, por sua natureza de coalizão, como “da direita” ou de parte dela. Basta analisar seu rumo, com alguma honestidade, para reconhecer que o princípio reitor foi a construção de um modelo econômico-social que se choca com a fórmula propugnada pelo capital financeiro desde o Consenso de Washington.
Outra coisa é questionar seu ritmo e profundidade, ou identifica-lo como um “reformismo fraco”, repetindo André Singer, que fica aquém das possibilidades políticas reais e debilita a disputa pela hegemonia no Estado e na sociedade. Uma posição é considerar este governo inimigo, outra é carimba-lo como insuficiente ou recuado.
A história está cheia de exemplos como uma ou outra destas conclusões sobre governos frentistas levam a distintas estratégias.
O MIR chileno não participava do governo da Unidade Popular, durante a presidência de Salvador Allende. Classificava-o como reformista, indisposto a conduzir rupturas que julgava indispensáveis. Buscava, no limite de suas forças, mobilizar setores do povo e da juventude para radicalizar as medidas palacianas e reivindicar mudanças mais profundas. Mas diante de qualquer ataque da direita, cerrava fileiras com a UP e formava nos primeiros batalhões em sua defesa. Marchava separado, mas golpeava junto.
O grupo Bandeira Vermelha, na Venezuela, poucos meses após a eleição do presidente Hugo Chávez, passou a considera-lo um braço populista do Fundo Monetário Internacional, destinado a reorganizar o Estado burguês em crise. Passou a defini-lo, portanto, como um inimigo a ser abatido. Seus militantes, aplicando essa linha, estavam ombro-a-ombro com os golpistas de 2002, a ocupar provisoriamente o Palácio de Miraflores. Estabeleceram, desde então, aliança implícita com a oposição de direita, pois partilham o mesmo objetivo tático, qual seja, derrubar o governo de Nicolás Maduro, como antes o de Chávez.
Os fatos não deixam quaisquer dúvidas que, até o presente, com raros momentos de bom senso, o pensamento majoritariamente assumido pelo PSOL aproxima-se mais da variante venezuelana que da chilena. A diferença é que, retoricamente, também bate nos partidos da direita, mas efetivamente movimenta-se pela lógica de considerar o governo petista seu inimigo principal.
Basta relembrar o comportamento durante a crise de 2005 e a AP 470. Ou no curso da operação conservadora contra a Petrobrás. Ou nas campanhas presidenciais de Heloísa Helena e Plínio de Arruda Sampaio. Ou a facilidade com que filiados importantes – como a própria ex-senadora alagoana e o senador Randolfo Rodrigues, entre outros – já anunciam apoio à candidatura de Marina Silva para o segundo turno da corrida presidencial.
O grande problema da linha adotada pelo PSOL e companhia, no entanto, é a existência de um abismo entre a caracterização do governo como “da direita” e a potente mudança positiva da situação dos trabalhadores. O “inconformismo” receitado por Medeiros esbarra no apoio de massas ao processo liderado pelo PT. Ainda que existam insatisfações concretas, especialmente nos últimos anos, os pobres da cidade e do campo não reconhecem, em sua experiência concreta, a identificação do governo petista como traidor ou patronal. Pelo simples fato que essa afirmação não se sustenta sobre a história dos últimos doze anos, refletindo apenas uma análise sectária e inócua.
Medeiros parece não dar muita bola para isso. Diante da sustentação popular ao governo petista, recorda que assim também se portava “a maioria dos trabalhadores que viviam sob o fascismo da Itália dos anos 20”. Vamos saltar seu desconhecimento sobre qual era a base social dos fascistas, que jamais conseguiram maioria entre operários e camponeses sem-terra. Ainda que adesão social não seja definidora sobre o caráter progressista ou não de um determinado partido, isolamento tampouco é prova de inconformismo eficaz, a serviço da boa causa socialista.
A incorreta apreciação sobre o significado contemporâneo do PT e seu governo, além de estimular tendência à reclusão em um gueto político, propicia certa dinâmica mercadológica: vale tudo para tentar o desgaste do partido que ocupa o espaço social supostamente dedicado à autodenominada “esquerda inconformista”, incluindo exacerbar os piores preconceitos de setores médios naturalmente antipetistas.
A ineficácia desta postura, no entanto, parece que ainda não incomoda seus autores, mesmo que os dividendos correspondentes sejam recolhidos por correntes reacionárias que celebram a possibilidade de encontrar ajuda objetiva de agrupamentos estranhos ao seu campo político-ideológico. Apropriam-se da produtividade denuncista da ultraesquerda, sugando mais um pouco de seu potencial de inserção autônoma na luta de classes.
Ainda que esta situação residual da ultraesquerda não a condene, por si só, ao desaparecimento, deveria ser suficiente para levar seus melhores dirigentes e agremiações a repensar opções que conduziram ao raquitismo, mesmo com o importante espaço à esquerda aberto pelo gradualismo petista. A preferência por atitude de rejeição, em prejuízo à hipótese de defesa e radicalização das mudanças, parece tornar inepto o acionar dos que se imaginam o último biscoito do pacote revolucionário.
Estas escolhas serão colocadas em xeque, mais uma vez, no segundo turno das eleições presidenciais de 2014. Qual será a orientação do PSOL, por exemplo? Marchando separado, golpear junto com o PT para derrotar a restauração neoliberal representada por Marina e Aécio? Ou lavar as mãos porque, conforme reza sua bem-sucedida cartilha, são todos farinha do mesmo saco e da mesma classe?
Breno Altman* é jornalista e diretor do site Opera Mundi.
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