Aficha caiu
Saul Leblon
postado em: 28/09/2014
Nenhuma frase resume de forma tão incisiva o cavalo de pau
ocorrido na política
brasileira nos últimos 20 dias –a forma como ele se deu, a
intensidade do
confronto que o desencadeou e os seus desdobramentos para o
futuro-- quanto o
desabafo da presidenta Dilma Rousseff na última 6ª feira.
Em entrevista a um grupo de blogueiros, ‘sujos,
ideológicos’, como a eles se refere
o higienismo isento, a candidata explicitou assim o divisor
que marcará o seu
possível segundo mandato: ‘Terei um embate (político) mais
sistemático; não serei
mais tão bem comportada; me levaram para um outro caminho,
que não era o que
eu queria’.
Nenhuma liderança responsável escolhe o caminho do embate
sistemático como
sua primeira opção.
Um chefe de Estado tem obrigação de esgotar as linhas de
menor resistência na
consecução de seus compromissos.
A rotina de confrontos carente de uma correlação de forças
pertinente, não raro
imobiliza a sociedade, asfixia a economia, prejudica, em
primeiro lugar, os mais
pobres.
A história de Dilma não autoriza ninguém a caracterizá-la
como uma mulher
desprovida de coragem pessoal e política.
São essas referências que adicionam abrangência superlativa
ao desabafo da
presidenta e candidata.
Mais que isso.
Sua assertiva ecoa um sentimento coletivo no campo
progressista. Inclua-se aí o
estado de espírito da ala majoritária do PT, da qual faz
parte a principal liderança
política do partido e do país: Lula.
Em três mandatos presidenciais sucessivos predominou nesses
protagonistas a
determinação de restringir o confronto direto com os
interesses conservadores na
faixa de segurança permitida por uma correlação de forças
adversa.
O marcador mais significativa dessa adversidade é a própria
abrangência da
coalizão de governo. O que antes parecia uma contingência
administrável –ainda
que a um custo político cada vez mais asfixiante— evidenciou
nestas eleições os
contornos de um ciclo esgotado.
Três fatores convergiram para essa condensação:
1) o desespero conservador com possibilidade de um quarto
ciclo presidencial fora
do poder –o que poderá significar a morte do PSDB;
2) a redução da margem de manobra na economia, após seis
anos de crise
mundial, gerando insatisfação e rupturas – entre as quais
alinham-se as
manifestações de junho do ano passado, e
3) o surgimento de uma candidatura competitiva, capaz de
reabrir as portas do
poder ao conservadorismo – e a um revival extremado do
modelo neoliberal dos
anos 90.
No final de agosto esse conjunto formava um aluvião
anti-Dilma.
Era tão denso que expoentes do colunismo conservador
ejaculavam precocemente
a derrota irreversível do ‘lulopetismo’.
O catalisador do êxtase, a candidata Marina Silva, chegou a
abrir 10 pontos de
vantagem, então, nas enquetes de 2º turno do Datafolha.
O resto é sabido (leia ‘Uma semana para não esquecer’; nesta
pág)
O sinal de alarme ensejou no PT o fulminante arremate de uma
inquietação
disseminada, mas que aguardava o safanão de uma crise para
emergir .
Em um encontro de balanço da campanha em São Paulo, dia 5,
coube a Lula
sintetizar a lição da qual tampouco não se eximia:
‘Nós ficamos economicistas; não nos faltam obras, mas
política’, diagnosticou para
prescrever o antídoto: ‘Temos que demarcar o campo de classe
dessa disputa: é
preciso levar a política à propaganda’.
A partir de então a essência radicalmente neoliberal
embutida no programa de
Marina Silva passou a ser floculada do espumoso caudal de
242 páginas.
O extrato dessa depuração tem sido exposto à luz do sol em
uma narrativa
pedagógica, determinada a tipificar um a um seus riscos
históricos, estratégicos e
sociais.
Pertence à mesma mutação em curso o desabafo feito pela
Presidenta Dilma na
entrevista aos blogueiros, na 6ª feira passada.
Dilma passou a dar nomes aos bois.
Porém, mais que isso.
Anunciou que num eventual novo governo, essa dimensão do
embate político,
mitigada pela prioridade administrativa da gestão, passará a
desfrutar de espaço
nobre.
Pode-se argumentar que se trata apenas de um arroubo
dirigido a plateia
receptiva.
E que tudo voltará a ser como sempre --na verdade, muito
pior-- caso as urnas de
outubro concedam um quarto mandato presidencial ao PT.
Afinal, a fatalidade de um ‘arrocho doloroso’, ganhe quem
ganhar, é o novo bordão
do jogral do Brasil aos cacos.
É assim que o conservadorismo se calça, diante da eventual
vitória do PT, tentando
desde reduzi-lo a um frango desossado da Sadia, que só se
equilibra espetado em
interditos e ajustes incontornáveis.
Ou não será isso que o editorial do Financial Times adianta
neste sábado?
Referência dos mercados internacionais –e das pautas
nacionais, ao lado da
Economist, o diário londrino afirma que a redução em curso
na liquidez mundial,
por conta da proximidade da elevação dos juros nos EUA,
exigirá ‘uma quase
inevitável’ e ‘dolorosa correção em países como Brasil,
Turquia e África do Sul’.
Por ‘dolorosa’, entenda-se: choque de juros, arrocho fiscal,
redução do poder de
compra das famílias assalariadas, privatizações
(‘flexibilizar o pré-sal’) etc
Sim, a agenda da frente única do conservadorismo que
assessores de Marina e
Aécio tem vocalizado às platéias extasiadas de banqueiros e
com a qual se
pretende depenar o PT num eventual segundo turno em outubro.
A receita vendida pelo conservadorismo talvez fosse
inevitável, de fato, se o
desabafo de Dilma e de Lula nestas eleições significasse
apenas um ponto fora da
curva.
Um rompante, e não a trajetória final da ficha que acelerou
sua aterrisagem no
discernimento do partido nos últimos anos.
O acelerador dessa curva tem um motor turbinado.
Seu combustível é o ponto de exaustão atingido pelas
relações entre o partido,
seus dirigentes e a mídia conservadora.
Marmorizada de ódio político e desrespeito pedestre, a
guerra fria cabocla contra o
PT ensejou uma experiência de acuamento até certo ponto nova
na existência do
partido - ainda que virulenta para saturar um ciclo.
Círculos dirigentes e militantes mais antigos não
experimentaram nada parecido
antes. Nem mesmo na sua origem, nos anos 70/80, quando
operários do ABC se
colocaram frontalmente contra o regime militar, em desafio
aberto ao poder
armado e empresarial.
Sedimentou-se ali, ao contrário, com base em uma
cumplicidade que parecia ampla
e sólida, a suposição de que haveria da parte da imprensa se
não apoio, ao menos
respeito com o avanço da luta dos trabalhadores.
Mais que isso: tolerância com a criação de um partido
próprio, de recorte socialista
ecumênico.
Ancorada na intensidade histórica de uma fase alegre dos
consensos democráticos,
criou-se assim uma jurisprudência petista.
A mediação com o conjunto da sociedade, embora marcada pela
má vontade de
chefias e donos de jornais, estava sendo feita a contento
pelos meios de
comunicação.
Até o 2º governo Lula, o PT nunca incluíra entre as suas
prioridades efetivas a d
regularizar o sistema de comunicação existente para torná-lo
mais plural.
Do mesmo modo, nenhum dirigente histórico deu ao projeto de
construção de uma
mídia própria, a prioridade política, financeira e
mobilizadora devotada, por
exemplo, a uma campanha eleitoral.
A proximidade com os jornalistas - muitos dos quais
renunciariam a cargos e
carreiras para se engajar na construção do partido e nas
campanhas eleitorais dos
tempos pioneiros- cevou ilusões.
O trânsito fácil com a imprensa sugeria haver espaço a
ocupar na caixa de
ressonância da grande indústria de notícias.
Um consenso algo ingênuo, algo acomodato exergava uma margem
de manobra
nas redações; a cota de tolerância não se esgotara.
A derrota para Collor em 1989, quando a Globo manipulou a
edição do debate
decisivo da campanha, e deu quase dois minutos adicionais ao
'caçador de marajá'
no Jornal Nacional, abalou essa inércia.
Mas não construiu uma novo diagnóstico político, forte o
suficiente para renovar a
agenda em relação ao poder midiático.
A liderança de massa de Lula atingiu seu auge e reverberou
no país durante os oito
anos que esteve à frente de um governo exitoso no plano
social e econômico.
O prestígio esmagador dentro e fora do Brasil empalideceu o cerco
midiático diante
da obrigatoriedade de se conceder espaço e voz ao
Presidente.
O conjunto coagulou o debate petista sobre o papel da
comunicação na construção
de uma democracia social em um dos países mais desiguais do
planeta.
Parecia desnecessário diante dos êxitos econômicos
sucessivos que calavam uns e
aciavam outros.
Nesse idílio escaparia a Lula e aos dirigentes petistas a
brutal transformação em
marcha no interior da mídia e na própria composição das
redações.
Ao longo de duas década de polarização entre a agenda
afuniladora do
neoliberalismo e a da implantação de um Estado social tardio
no país, o jornalismo
brasileiro sofreria uma mudança qualitativa de pauta e
estrutura.
A tentativa de impeachment de Lula em 2005, já no ciclo da
chamada crise do
'mensalão' - que culminaria em 12 de novembro de 2013 com a
condenação dos
dirigentes José Dirceu e Genoíno à prisão - sacudiu a
inércia petista com força
pela primeira vez.
O espaço de tolerância acalentado ainda por emissários
autonomeados, que
traziam recados dos donos de jornais e revistas sobre o
preço a pagar por uma
trégua na escalada golpista, perdeu eco na cúpula do
governo.
Lula, a contrapelo dos punhos de renda do petismo, recorreu
então ao movimento
sindical.
A palavra 'golpe ' foi entronizada no discurso da
resistência - para horror dos que
teimavam em buscar um acordo com o dispositivo midiático
conservador.
Numa quadra de clamorosa falência do projeto neoliberal, o
tridente udenista da
corrupção e a demonização da esquerda como sujeito histórico
degenerado, pôs-se
a campo ainda como mais força, a partir de então.
Tornou-se a pauta-jogral de um dispositivo midiático
reestruturado para esse fim.
Qual?
Fazer do segundo mandato de Lula a evidência de que essa
dissonância histórica
não seria mais tolerada na democracia tutelada pelo poder do
dinheiro.
Instalou-se um termidor antipetista nas redações.
A ilusão na mídia como ambiente democrático permissivo à
formação da
consciência crítica e progressista da sociedade deixou de
existir.
A percepção dessa ruptura e os desdobramentos políticos que
ela acarreta
cristalizaram-se no linchamento midiático que orientou as
togas inebriadas pelos
holofotes, na Ação Penal 470.
O que Dilma está dizendo agora, portanto, não é um acidente
de percurso.
Está sedimentado nas estocadas de uma espiral virulenta que
, como ela mesma
diz, ‘me levaram para um outro caminho, que não era o que eu
queria’
A ficha da crispação conservadora caiu definitivamente nesta
campanha de 2014.
O PT e sua propaganda redescobriram que não se faz política
sem definir o
adversário, dizer o que ele representa, por que precisa ser
derrotado, as perdas e
danos de se entregar o país de volta ao poder conservador.
Por enquanto isso é feito na janela que o horário eleitoral
abriu ao partido em meio
ao monólogo conservador que dá aos dois minutos de Marina
uma extensão de
horas.
Mas e depois que ela se fechar outra vez?
‘Vou fazer a regulação econômica da mídia’, sacramentou
Dilma na entrevista da 6ª
feira aos blogs ‘sujos e ideológicos.
Isso não é pouco.
Não apenas pelo efeito esclarecedor que exerce na opinião
pública, hipnotizada
pelo jogral do Brasil aos cacos.
O que Dilma está vocalizando é uma agenda, não uma medida
solteira.
Se socialismo é levar a democracia às suas últimas
consequências, a pluralidade da
informação que isso requer não pode ser confundida com a
disseminação de
tabletas e celulares de última geração entre os brasileiros.
A disjuntiva que se coloca é entre a livre formação do
discernimento político da
sociedade ou a sua subordinação a um aparato claustrofóbico
de difusão, que se
avoca o direito de enclausurar a formação da opinião pública
brasileira em pleno
século XXI.
Não se trata de uma queda de braço ideológica, tangencial à
gestão progressista
do Estado.
É um problema do desenvolvimento brasileiro.
A presidenta Dilma incorporou a chave da eficiência às
prioridades do seu governo.
Com razão: é obrigação progressista zelar pela cuidadosa
aplicação dos fundos
públicos, erigir um Estado transparente, capacitá-lo a
mobilizar recursos e
coordenar as ações da dura luta pelo desenvolvimento
soberano e justo.
Durante muito tempo, porém, errou-se ao não afrontar as
demais interorrencias
da agenda do Estado mínimo.
Entre elas a gororoba ideológica construída em torno da
lingérie mais reluzente do
conservadorismo: o fetiche da autossuficiência da gestão.
Confunde-se a opinião pública ao endossar falsas
convergências redentoras, a
exemplo do ‘fazer mais com menos’, que omite a verdadeira
luta de sabre para
dividir a fatura da crise e instaurar o passo seguinte do
desenvolvimento. Ao não
distinguir uma coisa de outra, corre-se o risco de endossar
a tese que pretende
equacionar a desordem atual com poções adicionais do veneno
que a originou.
O colapso neoliberal trouxe para o colo do governo uma crise
da qual a Nação é
vítima e não sócia; as forças progressistas são adversárias,
não co-autoras.
O nome da crise não é PT, não é gastança, não é Petrobrás,
não é desrespeito ao
tripé, como quer a constrangedora declamação de Marina
Silva.
O nome da crise é capitalismo desregulado, é supremacia
financeira, é a
desenfreada ferocidade com que os capitais fictícios exigem
um mundo plano de
fronteiras livres e desimpedidos , por onde possam transitar
à caça de fatias reais
de uma riqueza, para a qual não se dispõem a contribuir,
apenas se apropriar em
espirais de bolhas recorrentes.
A dissonância de um Brasil que se propõe a construir um
Estado de Bem-estar
social tardio, regulado e soberano, precisa ser sufocada
para que o fluxo incorpore
esse promissor naco da riqueza mundial ao seu circuito.
‘Não há alternativa’, dizia Margareth Tatcher nos anos 70.
Quarenta anos depois e uma colapso da ordem neoliberal que
se ombreia à crise
de 1929, é o que continuam a dizer Aécio, a doce Marina e a
mídia que os ancora.
É o que continua a pontificar o editorial do Financial
Times, a vaticinar ‘um arrocho
doloroso’ para o Brasil, ganhe quem ganhar as eleições do
próximo domingo.
Os desequilíbrios de fato existem. Não se incorpora 60
milhões de ex-miseráveis e
pobres ao mercado sem mexer nas placas tectônicas de uma
‘estabilidade
capitalista’ alicerçada em uma das mais desiguais estruturas
de renda do planeta.
Há duas opções: avançar dar coerência estrutural e política
à emergencia desse
novo ator, ou recuar e devolvê-lo à margem de origem. Custe o
que custar.
Será ‘doloroso’ , avisa o Financial Times,sobre aquilo que
Aécio, Marina e o
colunismo isento vendem como virtude.
Para fazer diferente não basta buscar atalhos na gestão da
macroeconomia.
A macroeconomia não é de esquerda, nem de direita.
Quem adiciona coerencia à macroeconomia do desenvolvimento é
correlação de
forças da sociedade em cada época.
Para fazer diferente do que a frente única do
conservadorismo apregoa será
necessário coordenar as linhas de passagem de um novo ciclo
histórico
repactuando metas, concessões, prazos, avanços e
salvaguardas com o conjunto
das forças sociais.
Isso requer uma mídia pluralista para que possa acontecer.
Foi essa sucessão de
contingências que fez cair, definitivamente, a ficha
histórica do PT em plena
eleição de 2014.
A consciência desse aggiornamento estratégico talvez seja
uma vitória tão
importante quanto vencer no próximo domingo. Porque só assim
será possível
honrar os compromissos com a sociedade nos próximos quatro
anos.
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