4 de Setembro de 1969: A ação mais ousada contra a ditadura militar


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O sequestro foi executado por integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), no RJ; Em troca, os militantes exigiram a libertação de 15 presos políticos e a leitura de manifesto em rede de TV e rádio contra o governo
04/09/2014
Por Fernando do Valle,
O rapto do embaixador estadunidense Charles Elbrick foi, sem dúvida, a ação mais ousada dos opositores a ditadura militar. Entre os muitos atos contra a ditadura, o sequestro do principal representante do país que deu suporte ao golpe surpreendeu os militares e repercutiu em todo o mundo.

O sequestro foi executado por integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) no dia 4 de setembro de 1969, na cidade do Rio de Janeiro. Em troca, os militantes exigiram a libertação de 15 presos políticos e a leitura de manifesto em rede de TV e rádio contra o governo.
O militante Cid Benjamin, que participou do sequestro, recorda, em seu livro recém-lançado Gracias a la vida, memórias de um militante, que a ideia veio por acaso:
“eu estava com Franklin Martins [também militante e ex-ministro da Comunicação Social no governo Lula] na rua Marques quando passou o carro do embaixador, devidamente ornamentado com uma bandeirinha dos Estados Unidos de cada lado do capô. A falta de cuidado nos chamou a atenção. Meses antes, o embaixador norte-americano na Guatemala fora metralhado por guerrilheiros urbanos. Ao ver seu colega no Brasil circular de forma tão despreocupada, não passou pela nossa cabeça um atentado contra sua vida, mas capturá-lo como moeda de troca por Vladimir Palmeira [que estava preso há 11 meses]” (trecho do livro de Cid Benjamin)”
Os movimentos armados contra a ditadura militar atravessavam um momento difícil: a edição do AI-5, em dezembro de 1968, que endureceu a repressão, e uma série de prisões havia desestruturado a guerrilha contra o regime. As lideranças do MR-8 e alguns dirigentes da ALN (parte da direção não apoiou o sequestro) acreditavam que a libertação dos presos demonstraria à opinião pública a força da oposição.
O carro diplomático (um Cadilac preto) que transportava Elbrick foi rendido pelos militantes que usaram uma Kombi na ação. O motorista do embaixador foi deixado nas proximidades e Elbrick foi levado para uma casa no bairro de Santa Teresa.
“O cativeiro do embaixador norte-americano foi descoberto ainda durante o sequestro e muitos dos que entravam ou saíam da casa tinham sido fotografados. Como vários de nós éramos fichados na polícia, por termos sido presos no Congresso da UNE de Ibiúna, em outubro de 1968, ou por termos tido papel de destaque nas manifestações estudantis contra a ditadura, não foi difícil nossa identificação.” (trecho do livro de Cid Benjamin)
Segundo Cid Benjamin, o embaixador falava português, pois já tinha servido em Portugal e não era um defensor da política do governo norte-americano, que apoiava ditaduras de direita na América Latina.
“Sem que Elbrick percebesse, chegamos a gravar conversas nas quais ele elogiava o trabalho de dom Helder Câmara e se dizia contrário à censura à imprensa e à tortura de presos políticos.”(trecho do livro de Cid Benjamin)
Exigências atendidas e a reação dos militares linha-dura
O sequestro durou quatro dias e entre os presos políticos que foram libertados e embarcaram rumo ao México estava o lendário comunista Gregório Bezerra (PCB), o líder sindical José Ibrahim, Onofre Pinto, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), os líderes estudantis Luís Travassos e José Dirceu, o jornalista Flávio Tavares, dentre outros.
Após sua libertação, Elbrick chegou a declarar ao jornal Última Hora de 8 de setembro, de 1969: “fui muito bem tratado. Eles até me deram charutos e lavaram a minha camisa”. Os militares não gostaram da entrevista do embaixador e ele foi substituído pelos Estados Unidos poucas semanas depois.
Flávio Tavares lançou o livro Memórias do Esquecimento em 1999 (uma edição ampliada saiu em 2005 pela Editora Record), em que ele narra o sequestro e sua trajetória de luta contra o regime. Tavares declarou em 2005 ao Estadão: “O livro foi a minha catarse ou minha salvação e libertação interior… só enfrentando a memória pude vencer os fantasmas e viver em paz”.
No início da década de 60, Tavares trabalhou como comentarista político do jornal Última Hora, de Samuel Wainer, quando cobriu eventos como a Conferência da Orgnização dos Estados Americanos, em Punta del Leste, Uruguai, em 1961. Lá, ele conheceu Ernesto Che Guevara, que era o delegado de Cuba. Sobre essa experiência, Tavares escreveu Meus 13 dias com Che Guevara, lançado no ano passado. Há cerca de um mês, Tavares também lançou O Golpe de 64, em que foca a participação dos Estados Unidos no golpe contra o presidente João Goulart.
O jornalista retrata em seu livro Memórias do Esquecimento como, por muito pouco, a troca dos prisioneiros políticos pelo embaixador foi impedida pelos paraquedistas ultradireitistas do Exército:
“Na tarde de nossa partida, uns 40 oficiais paraquedistas da Brigada Aeroterrestre saíram da Vila Militar, em três caminhões, para impedir que os prisioneiros entrassem na Base Aérea ou, se fosse o caso, para nos retirar de lá à força e, de imediato, executar todo o grupo. Os oficiais planejavam nos raptar, levando-nos ao centro do Rio para nos enforcar de um a um na Cinelândia, defronte ao Theatro Municipal, naquele mesmo sábado. Havia apenas uma dúvida — alguns queriam nos “metralhar”, mas a ideia da forca era dominante”. (trecho do livro de Flávio Tavares)
Felizmente, os paraquedistas enfrentaram um congestionamento devido a um jogo no Maracanã que os reteve por mais de meia hora na avenida Brasil. Os militares identificados como de linha-dura (que não aceitavam qualquer negociação com a guerrilha) chegaram à Base Aérea 20 minutos após a decolagem do avião que transportou os presos políticos ao México.
A guerrilha contra o regime realizou mais três sequestros de diplomatas estrangeiros em 1970: o cônsul japonês Nobuo Okushi, o embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben e o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher também foram capturados como método de pressão ao regime militar.
O documentário Hércules 56 e a história de Jonas
Realizado em 2006 pelo diretor Sílvio Da-Rin, o documentário Hércules 56 relata o sequestro do embaixador. Para isso, o diretor reuniu alguns participantes da ação em uma verdadeira mesa-redonda. O nome do filme se refere ao modelo e à matrícula do avião militar que transportou para o exílio os presos políticos.
Trecho do manifesto lido nas rádios e TVs:
“O senhor Burke Elbrick representa em nosso país os interesses do imperialismo, que, aliados aos grandes patrões, aos grandes fazendeiros e aos grandes banqueiros nacionais, mantêm o regime de opressão e exploração.
Os interesses desses consórcios de se enriquecerem cada vez mais criaram e mantêm o arrocho salarial, a estrutura agrária injusta e a repressão institucionalizada. Portanto, o rapto do embaixador é uma advertência clara de que o povo brasileiro não lhes dará descanso e a todo momento fará desabar sobre o eles o peso de sua luta. Saibam todos que esta é uma luta sem tréguas, uma luta longa e dura, que não termina com a troca de um ou outro general no poder, mas que só acaba com o fim do regime dos grandes exploradores e com a constituição de um governo que liberte os trabalhadores de todo o país da situação em que se encontram.”
Em 1979, o jornalista Fernando Gabeira, que participou do sequestro publicou seu livro O que é isso companheiro?, que virou filme em 1997 pelas mãos do diretor Bruno Barreto. Os companheiros de Gabeira criticaram o filme, principalmente a maneira que retratou o líder da ação, Virgilio Gomes da Silva (codinome Jonas) interpretado pelo ator Matheus Nachtergaele, como sectário e desequilibrado. No filme, Jonas está sempre agitado e fuma sem parar. Detalhe: ele nunca fumou.
Outra crítica ao filme refere-se ao protagonismo de Gabeira no sequestro. Ele atuou como coadjuvante na ação e não foi ele quem escreveu o conhecido manifesto contra o regime, como aparece no filme. Quem redigiu o texto foi Franklin Martins.
O militante Virgilio Gomes da Silva chegou a São Paulo aos 18 anos, em 1954, de carona em um caminhão de carnes. Ele deixou de vez a vida na roça do Rio Grande do Norte, onde morava com a família e conseguiu emprego na indústria química no bairro de São Miguel Paulista. Em 1957 entrou no PCB. No ano do sequestro, 1969, Virgilio era o número 2 na hierarquia da ALN (o número 1 era Carlos Marighella).
Jonas foi preso pouco tempo depois do sequestro, no dia 29 de setembro, na casa do jornalista Antonio Carlos Fon, na rua Duque de Caxias, em São Paulo. O livro “De retirante a guerrilheiro” revela detalhes inéditos dos últimos momentos de Jonas na prisão. “Ele passou por uma sessão de 12 horas de tortura, com choques e afogamento. No fim, ainda guardou água na boca para cuspir na cara do torturador”, conta a autora, Edileusa Lima, no perfil de Virgílio no site da Comissão da Verdade Rubens Paiva da Assembleia Legislativa de São Paulo. Virgilio Gomes da Silva foi assassinado a chutes, pontapés e pauladas.
Em 2004, graças a uma investigação jornalística do repórter Mário Magalhães (autor da biografia de Marighella), a família de Jonas descobriu e teve acesso ao laudo de sua morte. Até então considerado desaparecido político, ficou-se sabendo que ele está enterrado no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo.
FONTES USADAS: livro Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares, livro Gracias a la vida, memórias de um militante, de Cid Benjamin, site da Comissão da Verdade Rubens Paiva, Revista Fórum e o jornal O Estado de São Paulo

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