Vargas suicidado



Antonio Lassance

Em 24 de agosto de 1954, um tiro disparado contra o peito do presidente Getúlio
Vargas tiraria sua vida e incendiaria o país.
Vargas havia se suicidado.
Sua Carta Testamento lançava sobre os adversários a culpa pelo lance fatídico e de
espetacular dramaticidade.
"Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o
povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida" - dizia a Carta.
A mensagem foi lida em voz alta no Palácio do Catete e, depois, em todos os
cantos do país. Publicada nos jornais e narrada pelo rádio, martelava a cabeça dos
brasileiros com a acusação de que um crime havia sido cometido.
Vargas se colocava como vítima de um crime contra o País.

Um crime que jamais deveria ser esquecido. Por isso, na Carta, as palavras de
quem se julgava "no caminho da eternidade", saindo da vida "para entrar na
História”.
Até hoje, o suicídio traz uma certeza incontestável. Ele representou, se não a
única, pelo menos a mais poderosa arma de Vargas contra aqueles que o haviam
cercado e queriam sua cabeça.
O presidente tomou a decisão de puxar o gatilho assim que recebeu sinais claros
de que seria derrubado.
As Forças Armadas estavam completamente amotinadas. A Força Aérea, a mais
agressiva contra Vargas, finalmente convencera o Exército a depor o presidente. Os
ministros militares já haviam assumido o papel de carcereiros contra o chefe de
Estado.
Com o suicídio, a oposição teve que esconder-se para não apanhar do povo nas
ruas.
Antonio Lassance
Vargas suicidado
A morte de Vargas seria decisiva para projetar o trabalhismo, o PTB e a liderança
de João Goulart.
O golpismo teria que aguardar mais uma década para uma nova tentativa - dessa
vez, exitosa.
Tratado como criminoso, Vargas temia ser preso
Mesmo os melhores biógrafos de Vargas prestam pouca atenção para um aspecto
fundamental desse suicídio.
Existe uma grande distância entre uma pretensão - derrotar os adversários - e a
atitude de cometer o suicídio.
Vargas já havia sido deposto quase uma década antes, em 1945. Certamente,
também em 1945 ele gostaria de derrotar seus adversários, mas nem por isso tirou
a própria vida naquele momento.
A diferença entre os dois episódios é dada pelo contexto histórico da crise de 1954,
diante da qual Vargas vislumbrou um desfecho ainda mais dramático que a
deposição e mais tétrico que a morte.
Vargas temia que o tratamento que recebia - de criminoso, de chefe de uma
quadrilha, de responsável por um mar de lama - o levasse ao constrangimento do
julgamento e mesmo à prisão, assim como ao encarceramento de alguns de seus
familiares, como o irmão, Lutero Vargas, acusado - de modo infundado - de ser o
mandante do atentado na Rua Toneleros, no Rio de Janeiro, em 5 de agosto de
1954.
Como se sabe, membros da guarda pessoal, sem o conhecimento do presidente,
arquitetaram eliminar o arquirrival de Vargas, Carlos Lacerda - "O Corvo", a
metralhadora giratória que desferia os golpes mais raivosos contra o governo.
Tentar assassinar Lacerda era, certamente, uma atitude primária, uma solução
criminosa desprovida de qualquer tino político - algo que nunca combinaria com a
astúcia de Vargas.
O atentado foi frustrado. Lacerda saiu vivo da Rua Toneleros. O pistoleiro acabou
matando um major da Aeronáutica, Rubens Florentino Vaz.
O tiro no pé de Lacerda acabaria por atingir o peito de Vargas.
Lacerda tornou-se vítima e símbolo maior da oposição ao governo.
A Aeronáutica sentiu-se agredida diretamente e mobilizou-se para vingar a morte
do major a todo custo. Em pouco tempo, os nomes dos membros da guarda
pessoal, ligados ao atentado, apareceram.
Algo soa familiar?
A opinião pública foi atiçada contra Vargas por uma imprensa que o incriminava
com uma simples suspeita: algo como a tentativa de assassinar Lacerda não
poderia ter sido feito sem o conhecimento prévio e absoluto do presidente.
Ele deveria ser, sem sombra de dúvida, o chefe de quadrilha, o cabeça do bando de
corruptos que estava levando a República a afundar em um mar de lama.
Afinal, tudo o que acontece no Palácio é do conhecimento, da responsabilidade e
da má fé do presidente da República.
Algo soa familiar?
Para derrubar um presidente, basta uma forte suspeita, uma firme disposição da
oposição em fabricar acusações e um enredo incriminatório vendido como notícia.
O afastamento de Vargas era defendido pela UDN como uma medida de caráter
"jurídico", nas palavras do udenista Afonso Arinos.
Vargas sabia que, ao contrário de 1945, não sairia do Palácio do Catete para um
novo exílio em São Borja. A fúria contra si e seus familiares pretendia ir mais
longe, para trancafiá-los por tempo suficiente para que não pudessem retornar ao
poder.
O estigma que nele vestiriam seria o mais pesado possível, de preferência para
que sua atividade política fosse sempre associada a práticas criminosas.
De novo, algo soa familiar?
Se não se pode vencê-lo, prenda-o.
O suicídio absolveu o presidente de todas as acusações.
Vargas morreu em 24 de agosto de 1954. O golpismo de seus adversários, não.

(*) Antonio Lassance é cientista político.

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