Um getulista

Autor: Fernando Brito
getulio
Até boa parte da minha minha juventude, só conheci um getulista.
Meu avô, o pintor de paredes José Nogueira, que sabia o suficiente para escrever o nome e para me ensinar lições de respeito e decência.
Talvez os getulistas fossem tão poucos, na minha visão de menino e rapazote porque eu não os podia ver no seu silêncio.
Afinal, eu nascera quatro anos de sua morte e não posso recordar dela, ao contrário do dobrar de muitos sinos da morte de João XXIII ou do espanto de todos com o assassinato de Kennedy, que meio século não me apagaram.

É que antes do meus seis anos, veio o golpe militar e, ao corpo sepultado uma década antes, veio o enterro do nome na cova das bocas.
Com a mãe e pai professores, aliás, fui “subindo” de subúrbio, do Valqueire para o Méier e lacerdistas conheci vários, inclusive uma vizinha chatérrima que todos chamavam de “Primeira Dama da Vila Kennedy”, porque se ufanava de que o marido detinha  um cargo de administrador do conjunto habitacional, longínquo, para onde foram removidos os pobres das favelas da Zona Sul do Rio.
Só eles falavam, com aqueles conceitos miúdos, parecendo bem arranjados, e sem as palavras difíceis que os poderosos falavam na televisão em preto e branco: “o comunismo apátrida, que de maneira solerte e soez”…
Meu avô ficava quieto, não dizia uma palavra.
Só uma vez ouvi ele xingar, entre os dentes, quando passou Carlos Lacerda para inaugurar uma avenida e ele me levava, garoto, pela mão: “corvo filho da puta”.
Nunca antes e nem depois ouvi um palavrão da boca do “seu”  Zé Nogueira, até sua morte, em 1986. Nem mesmo quando, no final da vida, passou a beber um pouco mais, desrespeitando a regra que me ensinara: “se você beber antes das seis em dia de semana ou antes do meio dia no domingo (sábado era dia de trabalho, também), preste atenção porque está com problemas com a bebida”.
Uma vez ou outra a política entrava em casa, ou porque meu pai tinha uns amigos “esquisitos” dos tempos de faculdade que foram parar lá em casa depois do golpe, para logo ganharem o mundo, seja porque minha mãe resmungava de meu avô tê-la obrigado a copiar panfletos, que sua própria letra não se prestava à tarefa.
No resto, não se falava e não se achava nada, porque – dizia um chiste macabro, “o último que achou ainda não acharam”.
Mesmo na militância de esquerda clandestina e até com Brizola, na redemocratização de 82, getulismo era um conceito que passava longe de mim.
Isso era coisa daqueles “velhinhos”  - velhinhos, veja só, Brizola  voltou do exílio  com meses menos de idade do que tenho agora – e não dos jovens.
Até que um dia, numa conversa com amigos, um deles, médico e filho de um operário têxtil, solta a frase que paralisou o grupo: “nós somos netos de Getúlio Vargas!”
E diante do silêncio geral, completou: nossos pais nos colocaram nas escolas públicas do Getúlio, que eles não tiveram e  no  mundo de direitos que não tinham.
Lembrei-me da pequena placa de metal, já com as beiradas cobertas pelas pinturas, na Escola Técnica onde estudei, a Celso Suckow da Fonseca, que dizia ter sido o prédio concluído para ali funcionar a Escola Técnica Nacional, em 1942.
Era um semi-internato, para filhos de operários, já então convertida em concorridíssima escola de classe média, com um “vestibular” difícil de passar e cujo resultado, publicado no velho Jornal dos Sports, minha avó deixou-me de herança.
Sair dos cortiços, as cabeças de porco, ter uma boa casa do Iapi, levar a filha à Escola Normal para ser professora, mesmo que à custa do pedal da Singer com que minha avó, costurando, completava o orçamento doméstico.
Ele era um cidadão, era um homem com direito ao trabalho, ao salário,  a comer, a educar os filhos. Direito a sonhar, mesmo não sabendo expressar isso em palavras.
Foi isso que o fez getulista.
Vieram-me à cabeça as tolices, a “concessão”, o “direito sem lutas”.
Uma pinóia!
Acordar às três horas de manhã, tomar o primeiro trem para a Central, uma lotação para Botafogo e de lá, da oficina, para as paredes do freguês, isso é sem luta? Isso é para fracos e dóceis?
Deste dia em diante compreendi, de verdade, porque meu avô era getulista e o que Getúlio Vargas foi para os brasileiros pobres.
Tudo o que havia lido, todos os conceitos elitistas que havia absorvido  - ou até me recusado a absorver, quando me filiei ao trabalhismo e aguentei estoicamente a petezada falando  em “pai dos pobres e mãe dos ricos” , e “peleguismo”, e “carta del lavoro” – tudo ficou miúdo, tudo ficou pequeno.
Não eram livros ou frases bem arrumadas, pintadas no papel, eram vidas.
Era o que eu próprio era e sou.
Getúlio Dornelles Vargas não foi  nada e foi muito.
A história é descrita pelos livros, não escrita por eles.
E pessoas ora são uma coisa, ora outra. Raras vezes conseguem conservar a consistência através dos tempos.
Foi o que o povo fez dele e ainda faz, nas profundezas de uma memória da qual nem eu mesmo suspeitava haver em mim.
A dor pública que, como reproduziu aqui o Miguel, descreve o Janio de Freitas, não era pelo corpo morto de um homem, era por um pedaço do próprio peito ferido em cada um de milhões de homens e mulheres, de brasileiros.
Um pedaço que não morre, porque quando arrancam, rebrota tal e qual o fígado de Prometeu, que não era uma fatalidade, mas uma atitude. O que os deuses do Olimpo consideravam um castigo, era o gesto de enfrentamento.
Porque os homens envelhecem e morrem, mas o povo é imortal, ainda que à custa de sofrer com os abutres cotidianos.
É por isso que não posso ser diferente do que foi, na essência, o meu avô e entre meus filhos haverá um igual.
A história humana não é um jardim florido, desenhado a traços inteligentes por pessoas de elevado saber.
Ela é torta, sinuosa, cheia de voltas e abismos.
Muitas vezes feia, feia, feia.
E sempre linda.

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