Robert Fisk: Conhecemos a crueldade deles, mas não sabemos nem quem são o ISIL
21/8/2014, [*] Robert Fisk, The Independent
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
POSTADO POR CASTOR FILHO
MIlitante do ISIL vigia soldados iraquianos sem uniforme capturados próximo a Tikrit em 14/6/2014
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Ao longo de séculos, governos disseram aos seus soldados e povo “Conhece teu Inimigo”. O problema com o “Califato” do ISIL – e não é pequeno problema para o presidente Obama, depois do assassinato do jornalista James Foley – é que nós não sabemos quem é o inimigo. Nos falam muito sobre a crueldade deles, açougueiros, que sequestram mulheres, que enterram gente viva, que são horríveis contra cristãos e iazidis e os degolamentos públicos, e só. Mesmo o líder do ISIL, Abu Bakr al-Baghdadi, nos é mostrado como combinação ensandecida do Mahdi que assassinou Gordon de Khartoum, com o assassinado Osama bin Laden e Oliver Cromwell, que fez aos civis de Drogheda o que o muçulmano e Senhor Protetor al-Baghdadi fez aos próprios inimigos.
A degola ritual de Foley é suficiente para dissuadir até o mais ousado dos jornalistas de tentar qualquer entrevista com al-Baghdadi. Nunca antes houve no Oriente Médio território tão gigantesco absolutamente inacessível para a imprensa-empresa ocidental. Somos tão completamente ignorantes de tudo que tenha a ver com esse Estado Islâmico no Iraque e Levante [ing. ISIL] – terra obscura da qual só se conhecem os vídeo gravados pelos aparelhos celulares deles mesmos – que os obamas, camerons e hammonds só podem rilhar os dentes de medo desse indizível inimigo. Reação fácil – mas que não pode durar muito tempo.
Seja como for, fato é que o ISIL sabe fazer bem feita pelo menos uma coisa: forçar Obama a encarar o seu próprio problema de reféns, a mesma charada imposta a Tony Blair quando Ken Bigley apareceu-lhe em vídeo. E agora, Obama? Vai ignorar todos os avisos, provando que não dá qualquer importância aos cidadãos individuais quando ordena operações militares – o que é absoluta verdade – ou vai virar Jimmy Carter, que se dobrava a qualquer vontade dos inimigos de vocês, vai ajoelhar-se e vai dizer ao Pentágono “Alto lá!”? A seguir resposta de Obama (21/8/2014):
Agora Obama já sabe o nome do próximo repórter norte-americano a ser degolado. Será que pisca? Piscará? Não pode piscar, não é mesmo?
Assim sendo, suspeito que a resposta que virá é o que presidentes e primeiros-ministros sempre fizeram, de melhor, no Oriente Médio: anunciarão que o assassinato de Foley mostra só o quanto o ISIL é horrível e mau – e o quanto é importantíssimo continuar a bombardear e bombardear para destruir aquela instituição amaldiçoada. Em outras palavras, vão converter a reação sádica do ISIL contra os ataques aéreos, em razão pela qual os ataques aéreos aconteceram e têm de continuar. Afinal de contas... estamos bombardeando o ISIL“porque” mataram iazidis e expulsaram cristãos e ameaçaram curdos. E o Iraque. Agora, temos nova razão para bombardear o “Califato” de al-Baghdadi.
Para os jornalistas, ontem foi dia aterrorizante. Há 30 anos, os árabes reconheciam o papel dos jornalistas como observadores equilibrados.
Com os anos passando – e jornalistas assassinados por militares dos EUA, por soldados israelenses e por rebeldes iraquianos (além de milicianos árabes), nossa vulnerabilidade aumentou muitíssimo. Quando nosso amiguinho, o marechal de campo egípcio Abdel Fattah al-Sisi encarcera jornalistas durante meses, os governos ocidentais pouco se preocupam ou afligem. Quando nossos chefes dão tão pouca importância a se vivemos ou morremos, não é surpresa que o ISIL – o ISIL, ou seja quem for – dedique-se a matar jornalistas. É verdade: jornalistas não executam árabes. Mas essa não chega a ser diferença significativa à qual o ISIL dê muita importância.
Fita amarela [1] apareceu atada a uma árvore em frente à casa da família do jornalista James Foley |
Há duas verdades que o “ocidente” terá de encarar, sobre o selvagem e simplório “Califato”:
●— esses executores de hoje começaram as respectivas carreiras – ou os que os precederam – nos assassinatos-de-televisão pela resistência anti-EUA no Iraque; e
●— por mais repugnantes que sejam as práticas deles, há centenas de milhares de muçulmanos sunitas que vivem nas terras do Califato e que NÃO FUGIRAM [maiúsculas no orig.]; os quais, para salvar a própria pele, ficaram ali. Não que sejam verdades agradáveis de ler. Se o “Califato” é tão revoltante, repugnante, horrendo, em sua brutalidade que aspira à pureza, como se explica que aquela gente – iraquianos e sírios – não tenham fugido, como fugiram seus irmãos cristãos? Será que uns poucos milhares de combatentes armados realmente conseguiriam coagir tanta gente, em território tão vasto, em pleno Oriente Médio?
Voltemos aos meses e anos imediatamente depois da invasão anglo-norte-americana de 2003. Os rebeldes ou insurgentes sentiram-se competentes para demonstrar extraordinária crueldade contra seus prisioneiros. Entregaram-me uma vez em Fallujah um vídeo de um homem sendo degolado por um grupo de encapuçados. Demorei algum tempo para perceber que se tratava, quase com certeza, de um soldado russo, e que os assassinos eram chechenos. Alguém trouxera o vídeo para Fallujah, para que os futuros carrascos da resistência aprendessem. Essa é a violência sem limites que a nossa invasão disparou naquela parte do mundo.
E muitos muçulmanos sunitas permaneceram em suas vilas e cidades e continuaram a viver ali, enquanto seus irmãos – os cidadãos do Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIL) do futuro – prosseguiram em seu trabalho repugnante. Em outras palavras, o “Califato” obviamente não parece ser tão horrendo para eles, quanto nos parece a nós. Há aí algum problema? Ou é só questão, como os norte-americanos parecem supor que seja, de as tribos sunitas – aquelas microssociedades de mil e uma utilidades, das quais nós dependemos quando as coisas dão errado – serem subornadas, ou de metermos lá algum governo mais “inclusivo” depois da partida de al-Maliki, para pôr al-Baghdadi p’rá correr? Essas são as perguntas que cabe ao “ocidente” perguntar.
Nas últimas semanas de vida, Osama bin Laden várias vezes manifestou repulsa pelo caráter sectário dos ataques “islamistas”. Ele até recebeu uma tradução, mandada do Iêmen, de artigo que escrevi no The Independent, no qual falo da al-Qaeda como “a organização mais sectária do mundo”.
O mundo mudou muito. Pelo menos, quando entrevistei bin Laden, eu em momento algum temi que ele me degolasse.
Nota dos tradutores
[1] Leia mais sobre a “fita amarela” (The Yellow Ribbon) na cultura dos EUA, em inglês.
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[*] Robert Fisk é filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial. Estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabalhou como correspondente internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por seu editor no The Times onde trabalhou até 1988 substituindo o correspondente do jornal no Oriente Médio. Mudou para o The Independent em 1989- após uma discussão com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Cobriu a guerra civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982; a guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda em 1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão.
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro mais premiado do planeta. Recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000.
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