O tribunal de exceção e suas consequências
Wanderley Guilherme dos Santos
Na Carta Maior
O embargo sobre importações de discursos de ódio foi
suspenso por ministros do
Supremo Tribunal Federal no processamento da Ação Penal 470.
Se não forem
suspeitamente destruídos, os vídeos das sessões têm
registrado ao vivo o que não
foi transcrito nos assépticos e desidratados votos por
escrito. Nem todos os
membros do STF aderiram à liberalidade em favor do mal, mas
a instituição ficará
marcada pelo período de amnésia do bom senso judicativo e em
que prevaleceram
a face congestionada e o salivar da exaltação enraivecida.
Rituais de degradação,
expressamente vedada em tribunais de estado de direito,
sucederam-se
diariamente, especialmente em relação aos réus ligados ao
Partido dos
Trabalhadores – Delúbio Soares, José Genuíno e José Dirceu,
este acusado de
chefiar uma quadrilha depois reconhecida pelo mesmo Tribunal
como inexistente.
O empresário Marcus Valério, entre os acusados não
políticos, foi retoricamente
incendiado como Judas cerca uma centena de vezes. O
julgamento da Ação Penal
470 foi o evento que plantou mais dúvidas jurídicas na
história recente: da
comprovação dos crimes imputados aos procedimentos
processuais e destes às
penas impostas. Está arquivado em atas e filmes.
Leis e julgamentos são episódios humanos que, ao contrário
das causas físicas,
não cessam de produzir efeitos, alguns deles irreversíveis,
mesmo quando
interrompidos em sua operação. Creio ser razoável atribuir a
violência
proporcionada pelas manifestações de junho de 2013, e a
instauração da cultura do
terror lecionada em universidades, a parcela não desprezível
do paradigma
estabelecido pela Ação Penal 470. A essência do exemplo é
evidente: quando as
instituições existentes não contemplam o que a alguns
aparece como apropriada
dose de justiça, passam a ser justificáveis todas as
arbitrariedades, amparadas em
uma ideologia grupal, não pública.
Por certo referências a movimentos de revolta no exterior
serviram para colorir de
modernidade os quebra-quebras internos. Primeiro foi a
evocação da primavera
árabe, obviamente equivocada, pois lá se tratava de uma
rebelião contra sistemas
ditatoriais, alias substituídos por outros do mesmo naipe.
Depois, alguns analistas
importaram os “precariados” da Espanha, Grécia e Portugal.
Todos esses países
com enormes índices de desemprego e sem perspectiva de
futuro, sobretudo com a
difusão de governos de direita ou, no melhor dos mundos,
liberais conservadores.
Levou algum tempo de quebra-quebras e pancadaria para que se
reconhecesse o
ululante: o sistema brasileiro não é ditatorial nem a taxa
de desemprego preocupa.
Ao contrário, faz parte do receituário liberal brasileiro
justamente provocar maior
taxa de desemprego, o que certamente viria acompanhado de
endurecimento do
fator repressivo inerente a todo Estado.
A mídia desesperou de direcionar as ações trânsfugas e
niilistas para objetivos
políticos da oposição. Nem o tratamento dos ativistas como
desbotar da juventude
obteve sucesso. Não são desempregados, não estão lutando
contra uma ditadura
inexistente, mas precisamente contra as instituições
democráticas em
funcionamento. E são adultos o suficiente para desdenharem
sonhos românticos ao
sucumbirem à atração da força bruta pela força bruta. Os
depredadores
eventualmente aprisionados não são rapazes e moças nos seus
primeiros anos de
universidade ou operários sacrificados pela acumulação
capitalista. São membros
bem grandinhos da classe média, empregados e com poder
aquisitivo suficiente
para passar horas usando equipamento caro para fins de
propaganda. Viajando
para a promoção de distúrbios fora de casa quando assim
planejam.
Ainda está por surgir uma boa hipótese sobre o aparecimento
dessas explosões
sociais de rápida expansão, recebimento de apoio e posterior
transformação em
seita fundamentalista. Mas não acredito que a violência
impune da Ação Penal 470
seja inocente na inauguração do clima em que parece ser
possível a co-existência
de um estado selvagem à sombra protetora das instituições
democráticas. Está aí
a propaganda eleitoral dos conservadores, com sua retórica
vulgarmente agressiva
e propósitos confusos quanto às políticas sociais em curso e
o projeto de
construção de uma sociedade economicamente forte. Herdeiros
do Supremo
Tribunal Federal da exceção e dos depredadores do patrimônio
público.
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