O dilema dos sionistas liberais
Uma posição insustentável
20/8/2014, [*] Lawrence Davidson, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
POSTADO POR CASTOR FILHO
Gaza - subúrbio de Shejaia bombardeado por Israel em 25/7/2014 |
O liberalismo, exposto como ideal sociopolítico, diz que os seres humanos são bons, e que o progresso social é alcançável. É uma visão de “copo meio cheio”. Dentro desse paradigma, todos os indivíduos, não só os membros de uma específica religião, raça ou nacionalidade deve ter direitos civis e políticos. Aqui tampouco o estado ou a lei são fins neles mesmos. São instrumentos para criar e manter um ambiente que promova a liberdade ao mesmo tempo em que reduz ao mínimo as desigualdades sociais. Perseguir esse ideal não impede ninguém de identificar-se com algum grupo religioso específico ou com algum grupo étnico. Mas impede, sim, qualquer aspiração a direitos exclusivos para o próprio grupo, em detrimento de todos os demais.
No ambiente ocidental, muitos judeus abraçam esse ideal liberal. Entendem que seja do seu próprio melhor interesse trabalhar na direção de construir ambiente no qual os direitos civis e humanos apliquem-se igualmente a todos, ao mesmo tempo em que trabalham para reduzir as desigualdades. Por exemplo, em meados do século XX, nos EUA, muitas organizações de judeus eram aliadas a organizações de negros, na luta dos negros norte-americanos por seus direitos civis e igualdade. Mas, como adiante se viu, era aliança complexa, que acabou por romper-se. O fim daquela aliança marcou o fim do movimento ativista dos judeus liberais nos EUA. O que teria acontecido?
Parte da resposta logo ficou evidente, depois da guerra israelenses-árabes de 1967. Naquele momento, muitos líderes da luta por direitos civis nos EUA deram-se conta de que Israel absolutamente não era, como dizia ser, sociedade muito liberal. Era sociedade que só acolhia um único grupo de seres humanos e discriminava contra todos os demais seres humanos que não se incluíssem naquele grupo. Quando essa questão começou a ser discutida dentro das comunidades e grupos das lutas por direitos civis, muitas organizações de judeus separaram-se do movimento e de suas lutas. E o que aconteceu aos liberais judeus? Viram-se forçados a escolher uma de três possibilidades:
(1) conservar o compromisso consciente com o ideal liberal e deixar de apoiar o estado sionista; ou
(2) renunciar ao ideal liberal e continuar a apoiar Israel, não liberal, de todo coração; ou
(3) calar-se em público enquanto, no privado, criticava a natureza cada vez mais racista de Israel. Muitos deles escolheram essa terceira via.
Um velho dilema
Considerada essa história, é simplesmente errado pensar sobre o atual dilema que os judeus liberais enfrentam, ante o comportamento dos israelenses, que traria alguma espécie de novidade. Os chamados sionistas liberais, como Peter Beinart, Amos Oz, Ari Shavit e Jonathan Freedland com certeza sabem, há décadas, que a noção de direitos civis e políticos iguais para judeus e não judeus nunca foi objetivo ou alvo do movimento sionista e que, portanto, tem baixa chance de vir a ser incorporada como noção e comportamento do estado israelense.
Pois agora, depois de três invasões massivas contra Gaza, depois do bloqueio desumano que continua, depois de repetidos massacres por israelenses, de civis palestinos, que se repetem incontáveis vezes desde, no mínimo, a “guerra de independência de Israel”, depois de incontáveis ações de roubo repetido de propriedades e de terra palestina, com implantação jamais contida de colônias ilegais em terra roubada, e depois de mais de 60 anos de estado israelense de inspiração policial e totalitária na Cisjordânia, reaparecem, dizendo-se afogados, repentinamente, num dilema liberal sionista digno de ocupar manchetes dos jornais.
Um dos argumentos que surgiram para explicar essa super adiada repentina angústia sionista liberal é que só recentemente esses indivíduos concluíram que a solução de Dois Estados está realmente sob grave ameaça. Por esse argumento, enquanto acreditaram que a solução de Dois Estados fosse possível, os sionistas liberais ainda podiam ter esperança de alcançar direitos civis e políticos iguais para judeus e palestinos, cada um no seu respectivo estado – e haveria dois. Essa explicação é enganosa.
Não é verdade que só recentemente a solução de Dois Estados tenha chegado às portas da morte. De fato, se essa “solução” algum dia esteve viva e foi possível (o que é questionável), já foi assassinada há tempos, no momento em que Menachem Begin mentiu ao presidente Jimmy Carter que garantiria “autonomia” progressiva aos palestinos. Foi em 1979. É difícil acreditar que liberais sionistas tão notáveis como os acima listados não tenham notícia desse evento.
Por tudo isso, por que, então, esse dilema liberal volta a ser assunto agora? Resposta mais acurada pode ser uma mudança na opinião pública. Só nos últimos dez anos, mais ou menos, é que a narrativa sionista sobre o conflito israelenses-palestinos perdeu o monopólio. Nesse mesmo período de tempo cresceu em todo o mundo o movimento de boicote contra Israel.
Menachem Begin mentindo para Jimmy Carter em 1979 |
Com os traços nada liberais do caráter de Israel cada dia mais publicamente criticados, ficou difícil manter a opinião de “terceira via”, acima. Como Jonathan Freedman nos diz no artigo que publicou na New York Review of Books, “The Liberal Zionists” ,[Os Sionistas Liberais], esse pessoal passou a ser atacado por todos os lados. O movimento sionista está-se fechando em posição de defesa, pode-se dizer, e já não está gostando de ouvir as críticas dos sionistas liberais, nem privadamente. Quer ver todo mundo batendo continência à bandeira de Israel.
Ari Shavit, autor e jornalista israelense mostra até onde essas pressões nacionalistas extremas podem levar os que ainda tentam manter-se liberais e sionistas. No seu livro mais recente, My Promised Land ele escreve:
A escolha é clara, ou rejeitar o sionismo [o estado sionista de Israel] por causa de Lydda [um dos casos de civis massacrados por militares israelenses, usado como exemplo], ou aceitar o sionismo [o estado sionista] com Lydda e tudo. (...) Sendo preciso, ficarei ao lado dos condenados. Porque sei que sem eles o estado de Israel jamais teria nascido. (...) Fizeram o serviço sujo, imundo que permite que meu povo, eu, minha filha, meus filhos, vivamos.
Aí, se acabou totalmente o ideal liberal.
Encarar as contradições
Na verdade, a expressão “sionista liberal” jamais fez pleno sentido. O único modo de explicar que tenha sobrevivido é considerar a própria narrativa do sionismo como tal – a história de Israel como democracia que levaria o modelo ocidental para o coração do Oriente Médio. Se se acredita nisso, pode-se esquecer a brutalidade dos israelenses como escorregadelas eventuais, numa trilha de pensamento político predominantemente progressista e de respeito a princípios democráticos que supostamente dariam sustentação ao estado. Nesse contexto, poderia haver sionistas liberais que, vez ou outra, criticassem o mau comportamento dos israelenses.
Os Liberais Sionistas |
Mas essa narrativa sionista é falsa. Jamais se deu o caso de uma ou outra ocasional escorregadela. O que há em Israel é a brutalidade inerente num estado que tem políticas e práticas racistas brutais que se repetem sempre e que visam a alcançar objetivos racistas (um país só para um grupo) – ao mesmo tempo em que repete uma história falsa, de encobrimento, excepcionalmente duradoura e resistente, segundo a qual Israel seria, afinal de contas, uma democracia liberal. Nunca foi. A direita israelense, tanto quanto os palestinos, sempre souberam que a história contada é falsa, que sempre foi engodo.
Agora, ante o mais recente massacre em Gaza, grande parte do mundo também já viu. Essa exposição pública, combinada às exigências dos sionistas que cobram lealdade cega, deixaram os liberais em situação absolutamente insustentável.
Ninguém consegue manter-se fiel ao princípio dos direitos civis e políticos iguais para todos, e, ao mesmo tempo, apoiar a existência de um estado sionista. Tentar tal coisa obriga o sujeito a amarrar-se dentro de uma contradição. Isso, exatamente é o que os liberais estão descobrindo a propósito do sionismo.
Agora, afinal, terão de fazer escolha verdadeira: ou deixam de ser sionistas ou deixam de ser liberais. Temo que, como Ari Shavit, muitos daqueles liberais optarão por alistar-se no “lado dos condenados”.
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[*] Lawrence Davidson, é professor aposentado de História da Universidade de West Chester, em West Chester, PA. Sua pesquisa acadêmica foi focada na história das relações exteriores americanas com o Oriente Médio. Ministrou cursos de História do Oriente Médio, História da Ciência e História Intelectual da Europa Moderna.
Lawrence Davidson nasceu em 1945 na Filadélfia, PA, em uma família judia secular. Em 1963, foi para a Universidade de Rutgers onde obteve seu bacharelato. Na Rutgers desenvolveu seu ativismo relativamente aos problemas que os EUA enfrentaram na década de 1960. Em 1967 se mudou para a Universidade de Georgetown onde concluiu o Mestrado.
Na Universidade de Georgetown, estudou História Intelectual Europeia Moderna com o Professor Hisham Sharabi de origem palestina. Sharabi e Davidson, posteriormente, se tornaram amigos íntimos e pode-se datar o seu interesse na Palestina, assim como as questões judaicas e sionistas, a partir daquele momento. Ainda em Georgetown (1968-1970) coincidiu com o auge da guerra do Vietnã e Davidson se tornou um dos membros fundadores dos Estudantes para uma Sociedade Democrática (SDS). Davidson conseguiu liderar grande mobilização contra a guerra do Vietnã e até teve que abandonar os EUA. Passou os seis anos seguintes no Canadá e obteve seu Ph.D. (1976), também em História Intelectual da Europa Moderna, na Universidade de Alberta, em Edmonton. Voltando aos EUA trabalhou muitos anos como professor adjunto em várias Universidades. Em 1989, Davidson ingressou na Faculdade de História na Universidade de West Chester (WCU), como professor adjunto. Permaneceu na instituição por 27 anos tendo mantido um registro de publicação cada vez mais produtivo. Aposentou-se da WCU em maio de 2013. Durante este período publicou inúmeros artigos em diferentes áreas, incluindo a História Médica, História da Educação e Política Externa dos EUA. Hoje escreve artigos para um sem número de publicações, entre as quais o Counterpunch.
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