O Brasil espremido entre dentaduras e dentadas
Saul Leblon
O Brasil espremido entre dentaduras e dentadas
A dentadura que devolveu o sorriso à boca de uma sertaneja
pobre de Paulo
Afonso, na Bahia, foi transformada pela mídia isenta em um
escândalo eleitoral.
As escolhas que ela envolve são mais sérias do que esse
factoide.
Oito incisivos, 4 caninos e 20 molares de resina da
sertaneja Nalvinha receberam
da mídia um tratamento equivalente ao dispensado ao
aeroporto de R$ 14 milhões
que Aécio construiu com dinheiro público na fazenda do tio
Múcio.
Mereceram a mesma gravidade atribuída ao misterioso jatinho
Cessna, de R$ 24
milhões, cuja queda matou Eduardo Campos e abriu uma cratera
de dúvidas quanto
à origem, a legalidade e os interesses que embalam a
candidatura do PSB.
Não importa que os trinta e dois dentes novos façam parte de
um amplo programa
federal lançado em março de 2004, destinado a devolver o
sorriso a milhões de
brasileiros cujo único vínculo com a saúde bucal era o velho
boticão.
Não é uma miragem.
Ao completar uma década, o ‘Brasil Sorridente’ já entregou
quase 500 mil próteses
dentárias parecidas com a de Nalvinha. Estendeu o direito a
tratamento dentário a
79,6 milhões de adultos e crianças em 4.971 municípios
brasileiros.
A julgar pelo martelete midiático, tudo não passa de uma
fraude.
A tola e/ou ingênua decisão de providenciar a prótese da
sertaneja Nalvinha na
véspera da visita da Presidenta Dilma a sua casa, também
equipada de cisternas –
o governo federal já financiou 481 mil delas em 1.426
municípios do semiárido
nordestino e liberou R$ 1 bilhão este ano para chegar a 750
mil até dezembro—
alimentou o banzeiro.
Foi o suficiente para que o maior programa de saúde bucal do
mundo evaporasse
na conveniência da narrativa conservadora.
O episódio seria só mais um embate em torno de um programa
social, não fosse
tão representativo da imensa dificuldade que é mover a
fronteira da inclusão social
no Brasil à margem do Estado e das políticas públicas.
Entre outras coisas, a polêmica da ‘dentadura eleitoral’
sonegou ao eleitor alguns
paradoxos de uma matriz conhecida.
Por exemplo, o fato de o Brasil ser o país com o maior
número de dentistas do
mundo.
Tem-se aqui quase 20% dos profissionais de odontologia do
planeta.
São cerca de 250 mil dentistas de um total pouco superior a
um milhão no mundo;
um contingente que mesmo em termos relativos impressiona.
Com população
superior a nossa, os EUA, por exemplo, dispõem de pouco mais
que 170 mil
dentistas; a Alemanha tem 70 mil deles; França, México e
Argentina contam com
40 mil cada.
A dianteira pelo jeito veio para ficar.
A Associação Brasileira de Odontologia (ABO) informa que
quase 15 mil novos
dentistas chegam ao mercado brasileiro a cada ano, formados
pelas 203 faculdades
de odontologia existentes no país.
O segundo paradoxo: esse superlativo arsenal está longe de
se refletir no sorriso
de boa parte da população que não tem acesso ao cuidado
odontológico.
Até entrar em campo o ‘Brasil Sorridente’, um contingente da
ordem de 30 milhões
de brasileiros nunca havia sentado em uma cadeira de dentista.
A razão é a mesma que levou o governo a importar mais de 14
mil médicos
cubanos para levar assistência a 50 milhões de brasileiros
pobres, através do ‘Mais
Médicos’.
A mesma que gerou o Bolsa Família. A mesma que levou à
criação do Prouni. A
mesma que promoveu a instituição de cotas na universidade. A
mesma que
impulsionou o crédito subsidiado à agricultura familiar. A
mesma que leva o BNDES
a carrear recursos do Tesouro para áreas do interesse
estratégico do país. A
mesma que fez o governo Lula instituir uma regulação
soberana para o pré-sal. A
mesma que encorajou a Petrobrás a impor um índice de
nacionalização de 60% nas
encomendas de serviços e equipamentos necessários à
exploração.
A razão é que o capitalismo deixado à própria sorte é
incapaz de construir uma
sociedade. E menos ainda uma democracia social como a que se
pretende no
Brasil.
O sorriso devolvido à sertaneja Nalvinha não é fruto das
forças de mercado.
Ele só ressurgiu no rosto da sertaneja de Paulo Afonso
porque os governos Lula e
Dilma tomaram a decisão política de resgatá-lo investindo R$
10 bilhões no ‘Brasil
Sorridente’.
Vem daí a pergunta incomoda, abafada pela pauta dos
operadores e herdeiros da
alta finança.
Se nem mesmo uma dentadura chega à boca do brasileiro pobre,
sem a ação do
Estado, como conceber que um novo ciclo de desenvolvimento
associado à justiça
social possa florescer por força da lógica estrita da
‘racionalidade dos mercados’?
Aquela que inclui entre os seus preceitos a ideia de que a
moeda de uma nação
deve ser entregue à administração de um banco central
independente do governo e
da democracia.
A diretriz anunciada tanto pelo operador tucano Armínio
Fraga, quanto pela
coordenadora do programa do Partido Socialista, Neca do
Itaú, vende como ciência
aquilo que é a essência da dominação financeira no
capitalismo: o manejo dos
juros na economia.
Trata-se de ‘proteger’ as decisões monetárias das pressões
originárias do mundo
político, alega-se.
Por mundo político entenda-se o conflito de classes,
ilegítimo aos olhos de quem
enxerga a política como excrescência e o seu interesse como
uma segunda
natureza, e não parte de uma correlação de forças que
disputa o destino da
economia e o da sociedade.
A repartição do ônus gerado pela maior crise do capitalismo
dos últimos 80 anos
demonstra a pouca aderência dessa visão à realidade.
Seis anos após o colapso de 2008, a lucratividade dos bancos
norte-americanos
registrou lucros recordes nesse segundo trimestre.
Em contrapartida, a subutilização da força de trabalho
–indicador que soma
emprego parcial e desistência de buscar vaga- atinge
assustadores 13%.
Na maior economia capitalista da terra, metade das vagas
criadas no pós-crise é
de tempo parcial, com salários depreciados.
Não é um aquecimento de motores. É o padrão de uma economia
desossada em
seus esteios produtivos , por obra da desregulação
financeira promovida pelo ciclo
neoliberal, a partir de Reagan.
É esse subenredo de uma recuperação tíbia que leva a
criteriosa presidente do BC
de lá, Janet Yellen, a resistir às pressões dos interesses
rentistas para elevar as
taxas de juros do mercado.
Pressões políticas, como se vê, partem muitas vezes de onde
menos esperam os
defensores da independência do BC por essas bandas.
Um dos maiores gargalos do Brasil nesse momento é justamente
a ausência de
espaço para a discussão madura dessas interações entre
política e economia, entre
opções, custos, concessões, salvaguardas e requisitos à
ordenação de um novo
ciclo de crescimento, que só virá por força de uma
repactuação democrática da
sociedade.
A eleição deveria servir para isso.
Mas enquanto a dentadura da boca sertaneja é tratada como
escândalo, a dentada
rentista subjacente ao BC independente desfruta do
privilégio de pauta ‘séria’.
Sob a pressão desse maxilar ideológico o passo seguinte do
desenvolvimento
brasileiro gira em círculos que sonegam futuro ao país e
esclarecimento à
sociedade.
Não é uma combinação promissora. E a história já evidenciou
isso algumas vezes.
A ver.
Comentários