Choque de gestão: Mulheres de Montezuma, cidade do aeroporto abandonado, viajam de 60 a 100 km para dar à luz
Na Serra do Cafundó — ouvir trovão de lá, e retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, de medo mau em ilusão, como quando foi menino. O senhor vê vaca parindo em tempestade. De em de, sempre, Urucúia acima, o Urucúia — tão as brabas vai… Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre torta. A serra faz ponta. (…) Hem? O senhor? Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatú moreno; meu, em belo, é o Urucúia — paz das águas… É vida!
de Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas
por Luiz Carlos Azenha, de Montezuma, Minas Gerais
Dá até para imaginar Guimarães Rosa, nos anos 40, viajando por esta região do Brasil, fronteira de Minas Gerais com a Bahia, em busca de inspiração para sua obra-prima.
Hoje a tradição dos vaqueiros resiste, mas o cenário humano passou por grandes transformações.
Montezuma fica a leste do rio Urucuia, que Rosa tornou famoso, e do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, nomeado em homenagem ao autor. É a região do Alto Rio Pardo. Uma simpática cidade de cerca de 8 mil habitantes, que depende especialmente de atividades agrícolas e dos empregos públicos da Prefeitura local.
Em 1991, 64,7% dos moradores do município viviam na extrema pobreza. Em 2010, eram apenas 9,15%.
Aposentadorias rurais, Bolsa Família, investimentos federais e estaduais contribuiram muito para esta mudança.
Apesar disso, a melhoria foi relativa: hoje, só 26,75% dos moradores de mais de 18 anos de idade completaram o ensino fundamental.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) médio de Minas Gerais é de 0,731; o de Montezuma, 0,587.
O IDH de Montezuma ocupa a posição 804 dentre os 853 municípios mineiros.
Na região, agora entrecortada por estradas, muitas delas asfaltadas, ainda é comum ver as juntas de boi fazendo o trabalho pesado de carregar tambores de água ou material de construção.
Só uma coisa realmente distingue Montezuma de outras pequenas cidades pelas quais passamos nesta região de Minas Gerais.
Assim que você ultrapassa o portal amarelo, que convida os visitantes a tomar banho nas águas quentes da cidade, há do lado esquerdo uma imensa pista asfaltada, de cerca de 1.300 metros, com as laterais hoje tomadas pelo mato.
É o aeroporto da cidade!
A pista nunca foi certificada pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que diz não ter em seus registros pedido de homologação.
Como mostramos anteriormente, hoje o aeroporto de Montezuma é utilizado pelos moradores da cidade para fazer caminhadas, de manhãzinha ou ao entardecer. Eles trataram de remover pedaços de concreto da cerca para garantir acesso ao asfalto. Crianças brincam no entorno. No passado, a prefeitura local chegou a organizar grupos de idosos que se reuniam periodicamente no local para atividades variadas.
Como uma cidade de população tão diminuta, onde ninguém é dono de avião, ganhou obra tão portentosa?
Quando Aécio Neves era governador de Minas Gerais, Montezuma foi incluída no ProAero, um plano para estimular a aviação regional. A ideia era garantir, até 2011, 69 aeroportos mineiros funcionando 24 horas por dia. Pelo menos em Montezuma, uma impossibilidade: o aeroporto não dispõe de sinalização noturna ou de qualquer outra infraestrutura, a não ser um pequeno galpão cujos vidros estão todos quebrados.
Cerca de 300 mil reais teriam sido investidos aqui, um dado espantoso. É que um aeroporto quase do mesmo tamanho do de Montezuma, em Cláudio, custou ao estado de Minas cerca de R$ 14 milhões.
Em março de 2008, o Departamento de Estradas de Rodagem mineiro adiantou-se e escolheu uma empreiteira para pavimentar a pista de terra de Montezuma. Contratou a Pavisan, por 268.460,65 reais. Segundo um ex-executivo da empresa, que lá trabalhava à época, a obra foi um mau negócio. O valor seria irrisório e não cobriria os custos. Ele não vê razão econômica para o estado investir no local, pois perto de Montezuma há cidades maiores que poderiam ter sido contempladas com um aeroporto. Qual seria a justificativa? A proximidade com as terras da família de Aécio? Facilitar o contato aéreo entre pai e filho? E se o negócio era ruim, por que a empreiteira topou? A Pavisan fechou vários contratos com o governo mineiro durante a administração de Aécio. O dono da construtora, Jamil Habib Cury, ocupou cargo público na gestão do tucano. Foi diretor do Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais. Estava no posto quando a Pavisan foi escolhida para a pavimentação em Montezuma. Consta ainda na lista de doadores das duas campanhas vitoriosas de Aécio ao comando do estado, em 2002 e 2006. Na última, doou 51 mil reais.
O que há em comum entre Cláudio e Montezuma é que nos dois municípios existem terras da família do hoje candidato ao Planalto pelo PSDB, Aécio Neves.
Da avó Risoleta em Cláudio e do pai de Aécio, o ex-deputado Aécio Ferreira da Cunha, em Montezuma.
Aqui nos despedimos de Guimarães Rosa e ingressamos no mundo fantástico de Gabriel Garcia Márquez.
A 60 km de Montezuma há uma cidade três vezes maior, Rio Pardo de Minas cujo “aeroporto” (à esquerda) ainda é uma pista de terra. O mesmo vale para Taiobeiras (foto do avião de pequeno porte pousando), também de 30 mil habitantes, que dista pouco mais de 100 quilômetros.
A única construção equivalente à de Montezuma na região, em termos aeroviários, fica em Janaúba, a 150 quilômetros. Janaúba, no entanto, tem 70 mil habitantes e é tida como porta de entrada das atrações turísticas da Serra Geral de Minas, que inclui de cachoeiras ao Pico da Formosa.
Ou seja, o aeroporto de Montezuma é algo realmente extraordinário para a região!
Em nossa passagem por lá, moradores citaram o pouso de um avião trazendo o cantor Amado Batista, que estava a caminho de fazer um show na Bahia, como o mais recente guardado na memória local.
Vários atribuíram a existência da pista à extensão natural do poder da família Neves. O pai de Aécio, dono das terras da família em Montezuma, foi eleito deputado estadual pela primeira vez em 1955. Deixou de herança para os filhos Aécio e Andrea a Perfil Agropecuária e Florestal, de pouco mais de 900 hectares, onde há criação de gado e plantio de eucalipto. Fica na estrada que liga a cidade a Mortugaba, na Bahia.
A existência do aeroporto abandonado, um dos maiores investimentos estaduais já feitos na cidade, para os moradores de Montezuma não é algo extraordinário. É da política.
Hoje o governo de Minas reforma uma Unidade Básica de Saúde bem diante da pista, ao custo de R$ 163 mil reais, metade do que enterrou no aeroporto abandonado.
Bem pertinho dali, uma placa do governo federal anuncia investimento de R$ 5 milhões em saneamento básico.
O único lamento que ouvimos relacionado à falta de prioridade nos gastos públicos diz respeito ao hospital de Montezuma, visto acima.
Hoje os montesumenses raramente nascem na cidade.
A Fundação Hospitalar Nossa Senhora de Santana, onde eram feitos os partos, passou a funcionar apenas como uma espécie de posto de saúde.
Faz o atendimento de casos básicos.
Para consultar algum especialista, é preciso sair da cidade. Janaúba, a 150 quilômetros, é um dos destinos.
Diante da Fundação, uma das mães presentes contou ter tido a filha ali mesmo, às pressas, por falta de tempo para viajar. Por sorte, foi parto natural e hoje a filha parece ser uma menina saudável.
Uma frase resume a situação: “Montezuma é a cidade que tem aeroporto mas não tem maternidade”.
Aqui ingressamos, finalmente, em Macondo: as grávidas de Montezuma, as vezes às pressas, chacoalham até Rio Pardo de Minas (60 km) ou Taiobeiras (100 km) — neste caso, literalmente, já que parte da estrada ainda é de terra — na hora de dar à luz. Não podem, obviamente, fazê-lo de avião.
Na última reportagem desta série, vamos mostrar como o fechamento do balneário de águas quentes destruiu uma atividade promissora da cidade.
Clique nas laterais da foto abaixo para ver um álbum de fotos de Montezuma:
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