Caos no Iraque “made in USA”: caminho aberto para a atuação do Estado Islâmico


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Em 2011 os EUA saíram do Iraque após ter cumprido a missão “Democracia em Bagdá”. O novo Estado foi entregue a Al-Maliki, principal líder xiita. Foi um desastre político, caracterizado por sectarismo e corrupção – um contexto que os grupos armados do Estado Islâmico exploraram instigando a minoria sunita a se levantar

Achille Lollo-No Brasil de Fato
Em janeiro de 2013, o misterioso líder do então Isis – atual autoproclamado Estado Islâmico – Abu Bakr al-Baghdadi, após ter rompido com Al Qaeda e, portanto, ter-se autonomeado “guia dos combatentes islâmicos do Levante”, convocou uma reunião de todos os líderes dos grupos armados jihadistas iraquianos e das unidades rebeldes sunitas. O resultado de tal reunião foi extremamente importante porque, em termos políticos, al-Baghdadi definiu a formação de uma frente islâmica sunita disposta a começar uma guerra aberta contra o regime de Bagdá.

Na prática, isso implicou que as células clandestinas dos grupos de rebeldes sunitas e jihadistas, no lugar de se sacrificarem para realizar sangrentos atentados nos locais frequentados pelos civis xiitas, começassem a criar as condições para as populações sunitas aceitarem a chegada dos combatentes do então chamado Isis.
Esse fato fez com que o “Exército dos homens de Naqshbandi”, isto é, o braço armado do que sobrou do Partido Baath Árabe, de Saddam Hussein, sob a liderança do ex-general Izzat Ibrahim al-Douri, aceitasse se juntar ao Isis que, em termos políticos e midiáticos, se apresentava como o grupo mais organizado e mais bem relacionado com os serviços secretos da Arábia Saudita, Qatar, Turquia, Israel, Grã-Bretanha, França e até dos Estados Unidos.
É necessário lembrar que a participação dos jihadistas do então Isis na guerra civil síria, ao lado da Frente Al-Nustra, foi usada pela mídia ocidental para reforçar, em termos políticos, a oposição sunita ao presidente sírio Bashar al-Assad. Por outro lado, algumas vitórias que o Isis obteve no Norte e no Nordeste da Síria e onde seus homens se apoderaram de alguns campos de extração petrolífera motivaram ainda mais o interesse dos serviços secretos, sobretudo, após a derrota dos homens do Exército Livre Sírio em Homs e ao longo das regiões fronteiriças com o Líbano.
Em função disso os combatentes de al-Baghdadi receberam armamentos, treinamento, dinheiro e, sobretudo, uma cobertura legal para vender o petróleo que era roubado à Síria. Petróleo este revendido a um preço menor que o dos mercados, entre 40% e até 55%.
Por isso, em poucos meses, o então Isis conseguiu dinheiro para organizar uma task force de 20 mil homens totalmente autotransportada. Esse contingente, no início do ano, entrou nas regiões centrais do Iraque sem nenhuma dificuldade sem encontrar resistência por parte das unidades do exército regular que, praticamente, diante da ameaça de ter de enfrentar combatentes sunitas, praticamente se desintegrou.
É claro que nessa primeira fase foi de fundamental importância a presença dos combatentes do “Exército dos homens de Naqshbandi” ao lado dos jihadistas. Esse fato, praticamente permitiu as brigadas do Isis entrarem em aldeias e nas pequenas cidades e serem recebidos pelas populações sunitas como libertadores.
Saddam Hussein
De fato, não podemos esquecer que quando Saddam Hussein, aos 15 de julho de 1979, sucedeu a Ahmed Hassan al-Bakar, além de controlar todo o Partido Baath, com membros da etnia sunita, também colocou sunitas em toda a administração do Estado e, sobretudo, no exército, na polícia e nos serviços secretos. Uma operação sectária sem precedentes, que no Iraque atingiu, principalmente, a maioria xiita, tanto em termos étnicos quanto religiosos.
Mas, com o governo sunita de Saddam Hussein, não foram somente os xiitas (60% da população) que sofreram o isolamento institucional e a repressão. Os curdos foram os mais castigados por Saddam pelo fato de serem uma minoria (10% da população) que desde a década de 1950 apoiou a luta pela independência do Curdistão, região Norte do Iraque. Uma luta que era estimulada pela existência de outros dois movimentos de libertação curdos, o PKK na Turquia e o Movimento de Resistência Curda no Irã, além de pequenos grupos na Síria. Por isso, em 1988, o exército de Saddam lançou no Curdistão a “Operação Anfal”, quando foram mortos 180 mil curdos. Porém, a raiva do exército sunita de Saddam foi maior no Sul do país, quando, em 1991, explodiu a rebelião da maioria xiita que sofreu com a matança de 230 mil pessoas. 
Em face disso tudo, a pretensa “missão civilizadora” do exército dos Estados Unidos, que se estendeu durante dez anos, nada fez para sarar as feridas do passado e também nunca tentou introduzir na sociedade multiétnica iraquiana os conceitos de igualdade e de solidariedade.
Pelo contrário, todos os governadores militares e os oficiais do exército dos EUA encarregados de administrar aldeias e cidades sempre se apoiaram exclusivamente nas lideranças políticas da maioria xiita. Consequentemente, a minoria sunita e, sobretudo, os baathistas foram os únicos que construíram e alimentaram uma resistência armada contra o exército invasor. Uma oposição que, apesar da repressão, ressurgiu e se reforçou participando em primeira pessoa na guerra civil da Síria e esse fato acirrou ainda mais a diversidade étnica e religiosa entre sunitas e xiitas. 
Novamente os EUA
Quando o presidente Barack Obama, em 2011, retirou do Iraque o corpo de expedição estadunidense, sabia muito bem que a missão “Democracia em Bagdá” apresentava profundas contradições. Porém, o custo financeiro e humano dessa missão era, na prática, insustentável, sobretudo, do ponto de vista político visto que podia se transformar em um segundo Vietnam. Diante disso as excelências da Casa Branca apostaram tudo na gestão sectária dos xiitas, porque, segundo eles, essa era a única forma para garantir a manutenção de um Estado e de uma administração pública que por dez anos foram norteadas e monitoradas por um exército de ocupação com 100 mil soldados e mais de 30 mil “técnicos”.
É evidente que, agora, Obama e as excelências da Casa Branca, bem como os generais do Pentágono têm profundo receio de entregar armas ao exército iraquiano que, na realidade, existe somente na zona verde de Bagdá. Isto é, para defender as elites e a oligarquia xiita.
De fato, em 2013 o governo de Al-Maliki comprou 36 caça-bombardeiros F-16, mas, até agora nunca foram entregues. Tanto que o agora ex-primeiro-ministro iraquiano, Al-Maliki, recorreu à Rússia para comprar urgentemente dez caças-bombardeiros Sukhoi Su-25, dos quais cinco já foram entregues – e que, segundo a TV Al Jazira, estariam realizando missões de bombardeio contra as posições do Estado Islâmico.
Hoje, a Casa Branca e os generais do Pentágono não confiam nos oficiais xiitas do exército iraquiano e, sobretudo, desprezam a maneira como foi construído esse exército nos últimos anos, permitindo que a maior parte dos recrutas se alistasse simplesmente para comer ou ter um salário. Pois, não podemos esquecer que a invasão estadunidense do Iraque provocou 1 milhão de desabrigados, além de destruir quase por completo as infraestruturas e os centros industriais.
Nesse contexto, Obama descobriu outra falha de Hillary Clinton, tanto que o Secretário de Estado, John Kerry, teve que correr ao Curdistão para negociar a manutenção dos curdos ao lado do governo de Bagdá. De fato, quando o Estado Islâmico atacou e conquistou a cidade de Mosul e as brigadas do exército iraquiano fugiram em direção a Bagdad, os curdos estavam prontos a declarar a independência. Isso não aconteceu por que Kerry prometeu que os EUA e a Otan armariam o exército guerrilheiro dos curdos, transformando-o em um exército regular.
Além disso, a Casa Branca garantiu que após derrotar o Estado Islâmico haveria uma negociação para implementar no Iraque uma solução federativa que, justamente, ofereça garantias do ponto de vista econômico aos curdos no controle das receitas do petróleo e do gás extraídos no Curdistão. Por isso, Obama pediu aos aliados da Otan que enviassem armas aos curdos como forma de apresentar as promessas de John Kerry como uma solução global. 
Mas o principal problema do Iraque não é o atual contexto militar, visto que os F-16 ou os Sukhoi Su-25 podem fazer um ótimo trabalho, massacrando com suas bombas e foguetes a maior parte dos jihadistas do Estado Islâmico. O verdadeiro problema está no fururo político do Iraque que, de fato, é problemático e até dramático, visto a sequência de massacres praticados pelos grupos jihadistas do Estado Islâmico.
Os outros grupos sunitas islâmicos e, sobretudo, o contingente das unidades baathistas não participaram nos massacres de cristãos simplesmente porque sabem que depois dessas matanças haverá uma negociação para definir uma plataforma federal ou até a formação de três novos Estados etnicamente definidos.
É evidente que o “califa” al-Baghdadi não estará sentado na mesa de negociações. Seu lugar deverá ser ocupado pelo ex-general baathista Izzat Ibrahim al-Dour. Porém, essa previsão poderá ser realizada somente com o “sacrifício” dos combatentes jihadistas do Estado Islâmico. Um “sacrifício” que, na realidade, será a condição sine qua non para o início das negociações entre xiitas, curdos e sunitas. 
Ciente desse perigo, o “califa” pretende ampliar a guerra civil no Líbano, na Jordânia, na Síria, no Iraque e nas extremas regiões fronteiriças desse último com o Irã. Um projeto que provocaria uma explosão fundamentalista generalizada em que a negociação para o fornecimento do petróleo e do gás ao Ocidente seria feita diretamente com os Estados Unidos e a Otan, que nesse caso seriam obrigados a reconhecer o califado do Estado Islâmico.
Um projeto complexo e muito sonhador que, porém, ainda está no ar não pela sua solidez política, mas por ser uma consequencia das besteiras geoestratégicas que os Estados Unidos e seus aliados da Otan fizeram no Oriente Médio nos últimos 30 anos.

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