Bombardeamentos dos EUA no Iraque: a hipocrisia suprema, por Robert Fisk

A pergunta persiste: os Estados Unidos teriam feito o mesmo se os refugiados do norte do Iraque fossem palestinianos? Bombardeariam os agressores? Por Robert Fisk, Página/12
Caça F-14 dos EUA prepara-se para descolar de um porta-aviẽs. Foto de  MATEUS_27:24&25
Caça F-14 dos EUA prepara-se para descolar de um porta-aviẽs. Foto de MATEUS_27:24&25


Não quis bombardear o califado sangrento de Abu Bakr al Baghdadi quando este estava a massacrar a maioria muçulmana de xiitas do Iraque. Mas Barack Obama corre a resgatar os refugiados cristãos – e dos yazidis – devido a “um possível ato de genocídio”. Lá vai bomba. E graças aos céus que os refugiados em questão não são palestinianos.
Esta hipocrisia quase nos deixa sem fôlego, sobretudo porque o presidente dos Estados Unidos ainda está muito assustado – por medo de desagradar aos turcos – para usar a palavra “G” acerca do genocídio de 1915 praticado pela Turquia sobre um milhão e meio de cristãos arménios, um massacre massivo numa dimensão tal que até mesmo os matadores de Abu Bakr ainda não tentaram fazer. Vamos ter de esperar outro ano para ver como Obama vai lidar com a efeméride do 100º aniversário desse particular massacre muçulmano de cristãos.

"Vamos ter de esperar outro ano para ver como Obama vai lidar com a efeméride do 100º aniversário do massacre de 1,5 milhão de crstãos arménios pelos turcos.
Entretanto, por ora, os “Estados Unidos vieram ajudar” no Iraque com os ataques aéreos contra os comboios de combatentes do EIIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante). Mas, por acaso não foi isso o que os norte-americanos fizeram contra os taliban no Afeganistão, frequentemente confundindo inocentes festas de casamento com “comboios” de islamistas? Lançar por meios aéreos pacotes de alimentos para a minoria de refugiados, por medo de arriscarem as vidas nas encostas rochosas das montanhas do norte do Iraque, é exatamente a mesma operação que as forças norte-americanas realizaram em prol dos curdos quase um quarto de século atrás; e, no final, tiveram de pôr soldados norte-americanos e britânicos no terreno para criar um “santuário seguro” para os curdos.
Obama também não disse nada sobre o seu amigável aliado, a Arábia Saudita, cujos salafistas são a inspiração e a fonte de fundos para as milícias sunitas do Iraque e da Síria, da mesma forma que foram para os taliban no Afeganistão. O muro entre os sauditas e os monstros que criam – e que os Estados Unidos agora bombardeiam – deve ser mantido tão alto quanto invisível. Essa é a medida da dissimulação norte-americana neste último ato de duplicidade. Obama está a bombardear os amigos dos seus aliados sauditas – e os inimigos do regime de Al Assad na Síria, já agora –, mas isso é uma coisa que ele nunca vai reconhecer. E mais, ele acredita que os Estados Unidos devem atuar em defesa do seu consulado em Arbil e da embaixada em Bagdade.
"Obama diz que tem um “mandato” para bombardear vindo do governo iraquiano de Nouri al Maliki, o eleito, mas ditatorial xiita que atualmente governa o Iraque como um Estado falido e sectário.
Essa é a mesma desculpa que os Estados Unidos usaram quando dispararam os seus canhões navais sobre as montanhas do Chouf, no Líbano, há trinta anos: que os chefes militares pró-Síria do Líbano estavam a pôr em perigo a Embaixada norte-americana em Beirute. É tão pouco provável que os islâmicos tomem Arbil como que tomem Bagdade. Obama diz que tem um “mandato” para bombardear vindo do governo iraquiano de Nouri al Maliki, o eleito, mas ditatorial xiita que atualmente governa o Iraque como um Estado falido e sectário. Como nós ocidentais amamos os “mandatos”, desde o Tratado de Versalhes de 1919, que desenhou as fronteiras do Médio Oriente para os nossos “mandatos” – as mesmas fronteiras que o califado de Abu Bakr jurou agora destruir. Não restam muitas dúvidas acerca do terrível e igualmente sectário EIIL que Abu Bakr está a criar.
A sua ameaça aos cristãos do Iraque – convertam-se, paguem impostos ou morram – virou-se agora contra os yazidis, a pequena seita inofensiva, cujas raízes persas assírias, com rituais cristãos e islâmicos e o perdão divino os condenaram, assim como aconteceu aos cristãos.
Os pobres velhos yazidis, que são curdos étnicos, acreditam que Deus, cujos sete anjos supostamente governam a Terra, perdoou a Satanás: assim, inevitavelmente, este antigo povo chegou a ser considerado como adorador do diabo. Daí que os seus 130 mil refugiados – pelo menos 40 mil dos quais vivem nas montanhas em pelo menos nove lugares ao redor do Monte Sinjar – contam histórias de violação, assassinato e mortes de crianças pelas mãos dos homens de Abu Bakr. Infelizmente, tudo pode ser verdade.
"Os pobres velhos yazidis, que são curdos étnicos, acreditam que Deus, cujos sete anjos supostamente governam a Terra, perdoou a Satanás: assim, inevitavelmente, este antigo povo chegou a ser considerado como adorador do diabo.
Os yazidis provavelmente são descendentes dos apoiantes do segundo califado Omíada, Yazid I; o seu conflito com Hussein e al-Zubair, filho de Ali – cujos seguidores são agora os xiitas do Oriente Médio –, pode teoricamente ter recomendado os yazidis ao exército muçulmano sunita de Abu Bakr. Mas os seus rituais mesclados e a sua negação do mal nunca encontrariam o favor de um grupo que – como a Arábia Saudita e os taliban – acreditam “na supressão do vício e na propagação da virtude”. Nas falhas geológicas que estão no Antigo Curdistão, na Arménia e o que era a Mesopotâmia, a história deu uma má ajuda aos yazidis.
Mas por eles, e para os nestorianos e outros grupos cristãos, Obama foi à guerra. Os franceses, com os seus velhos ímpetos de cruzados revividos, pediram ao Conselho de Segurança que reflita sobre este pogrom decristãos. Mas a pergunta persiste: os Estados Unidos teriam feito o mesmo se os refugiados do norte do Iraque fossem palestinianos? Ou a última campanha de bombardeamentos de Obama simplesmente vai proporcionar uma providencial distração para afastar as atenções dos campos de extermínio de Gaza?
Publicado originalmente no The Independent e no Página/12
Tradução de Daniella Cambaúva para a Carta Maior
Adaptação para o português de Portugal por Luis Leiria

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