Seis razões para defender Fernando Haddad
Por Erminia Maricato
Considerando o histórico da cidade de São Paulo, não ter uma “raposa guardando o
galinheiro” já significa uma grande vantagem. É claro que a defesa de Fernando
Haddad não pode se esgotar no mal que o prefeito deixa de fazer como os assaltos
costumeiros que essa cidade tem vivido ao longo de sua vida, com exceção de
alguns períodos. No entanto, esse argumento não é pouco importante para iniciar
estas linhas.
Vamos começar lembrando as forças que intensificaram seu comando sobre as
cidades brasileiras nos últimos anos. Dificilmente, no reino do analfabetismo
urbanístico (e tantos outros analfabetismos que caracterizam a dominação da
informação na sociedade brasileira), os moradores de São Paulo se dão conta da
articulação de interesses daqueles que a transformam em um grande negócio. A
tragédia urbana que vivemos cada dia não é fruto do acaso. O exemplo que salta
aos olhos são as obras viárias que mais desorganizam do que organizam a
mobilidade na metrópole. A cada 10 ou 15 anos, uma confluência de interesses
impõe aos fundos públicos uma lista de obras viárias de orientação absolutamente
questionável para o desenvolvimento urbano mas funcional para abrir espaço para
a especulação imobiliária e para os automóveis. Empreiteiras, mercado imobiliário
e indústria automobilística, ligados ao financiamento de campanhas eleitorais,
desenham mais as cidades do que os Planos Diretores.
A grande mídia, engordada por anúncios publicitários de imóveis e automóveis,
insistentemente repete que “falta planejamento urbano”. A relação entre
mobilidade e uso do solo é o nó górdio do planejamento urbano como insistem
congressos históricos de urbanistas pelo mundo afora. Mas dominar a produção da
cidade real subordinando determinados interesses para cumprimento de bem
intencionados planos está na esfera da política e não do planejamento. Desde que
os bondes foram banidos da cidade, na primeira metade do século passado,
seguindo pressão do transporte sobre rodas, de inspiração norte-americana, São
Paulo tem sido objeto de obras rodoviaristas que priorizam o transporte individual.
Poderíamos fazer um balanço a partir do plano de Avenidas do prefeito Prestes
Maia que impermeabilizou vários e importantes fundos de vale (calhas naturais de
drenagem), mas lembremos de um evento um pouco mais recente: um assalto à
cidade previsto nas 8 mega obras viárias iniciadas na gestão municipal de Janio
Quadros (1985) – que contemplavam todas as grandes empreiteiras nacionais,
enquanto o transporte coletivo permanecia em segundo plano. Parte delas (túneis,
viadutos, pontes, abertura de vias) foi paralisada na gestão de Luiza Erundina (que
sofreu verdadeiro massacre midiático) e depois retomada, e ampliadas em número,
na gestão seguinte de Paulo Maluf.
Um exemplo mais recente, modelo de insustentabilidade ambiental, pode ser
encontrado no bilionário alargamento da Marginal do Rio Tietê que ampliou a
impermeabilização da margem do rio e contrariou manifestação pública de mais de
30 doutores em planejamento urbano. Como foi previsto pelos urbanistas, essa
obra não entregou o que prometia e hoje temos ali mais espaço para o
congestionamento de veículos que, parados, contribuem para poluir ainda mais o
pouco saudável ar da cidade. Poderíamos lembrar outras intervenções que sangram
os fundos e contrariam o interesse público como a extensão das Avenidas Faria
Lima, Berrini e Águas Espraiadas resultante de uma clara articulação de capitais (e
governos municipais de plantão) que foi estudada em vários trabalhos acadêmicos.
A lista de exemplos poderia ser engordada pelos projetos que, neste momento de
boom imobiliário, assolam todas as cidades brasileiras prometendo um cenário
glamoroso, revitalizado, renovado, e coisas semelhantes mas que entregam mais
especulação, segregação privatização do espaço público e carência habitacional
para a maioria da população, exatamente aquela que não alcança os preços
explosivos. Aí estão, entre outros, o “Novo Recife”, a “Nova BH”, o “Porto
Maravilha” (este no Rio de Janeiro). Mas aí está também o Arco do Futuro que, na
atual correlação de forças dificilmente escapa das forças hegemônicas.
São Paulo, na segunda década do século XXI, vive um quadro de intenso
congestionamento e forte processo de especulação imobiliária. Os
congestionamentos batem recordes a cada dia e o aumento dos imóveis passou,
entre 2009 e 2012, de 154% o M2. Como repetiu a Revista Exame na capa de
recente número: “É a maior alta do mundo”. Trata-se de um processo que
desestrutura a cidade e expulsa os mais pobres devido à alta dos aluguéis. Ela se
torna ingovernável.25/7/2014 www.cartamaior.com.br/detalheImprimir.cfm?conteudo_id=31461&flag_destaque_longo_curto=C
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Assim como no período de Luiza Erundina, Fernando Haddad tem sido apontado
como responsável por problemas que são de natureza metropolitana, mais do que
municipais. Parte da população que trabalha em São Paulo mora em outros
municípios. Pesquisa recente do SEADE mostrou que 20% das empregadas
domésticas que trabalham no município moram fora dele. O transporte, reconhece
o levantamento, é um dos maiores problemas vividos por essas mulheres que
estão entre os trabalhadores de mais baixos salários. Em alguns casos, até 30%
das viagens de um município, como Taboão da Serra, da Região metropolitana, tem
como destino a cidade de São Paulo. Da mesma forma, parte dos manifestantes
que ocupa terrenos em São Paulo, premida pelo insustentável aumento dos
aluguéis e má qualidade dos transportes, vem de outros municípios. Mobilidade
tem tudo a ver com habitação.
Ao invés de ampliar as alternativas de habitação o atual boom imobiliário, em
ambiente de disputa desregulada pela terra urbanizada expulsa os mais pobres
para mais longe. Assim como os principais problemas do município de São Paulo
são metropolitanos, o mesmo acontece com os demais municípios da Região
Metropolitana. Com a palavra os prefeitos dos municípios que, na região
metropolitana, tem papel de dormitório da população trabalhadora pobre. A Região
Metropolitana de São Paulo, uma das maiores manchas urbanas contínuas do
mundo, é gerida como se fosse uma colcha de retalhos, composta de 39
municípios, cada um apontando para um rumo com seu prefeito e Câmara Municipal
defendendo interesses pontuais.
A coerência indispensável da gestão metropolitana não é cobrada por ninguém.
Problemas como enchentes, mobilidade, saneamento, habitação, saúde, educação,
meio ambiente dependem, obviamente, de abordagem metropolitana ou até
macrometropolitana se atentarmos para os corredores que ligam são Paulo a
Santos e Campinas. A Constituição Brasileira de 1988 remeteu a questão
metropolitana para a definição das constituições estaduais e gestão dos governos
estaduais. Mas quem se interessa pela complexa administração das metrópoles?
Quem cobra os diversos governos estaduais pelo desprezo em relação a essa
importante tarefa?
Após o alerta para o cenário das metrópoles desgovernadas vamos apontar os
pontos positivos do atual governo municipal de São Paulo:
MOBILIDADE - Quando Haddad foi eleito, a cidade passava pela iminência de mais
uma armação que listava uma relação de novas obras, embora estivesse
fortemente endividada. Felizmente, as jornadas de junho de 2013 colocaram a
mobilidade urbana na agenda política brasileira. Enquanto as cidades se entupiam
de automóveis o transporte coletivo se afundava em ruínas impondo um sacrifício
imenso e diário à população. Pressionado pelas jornadas de 2013, o prefeito25/7/2014 www.cartamaior.com.br/detalheImprimir.cfm?conteudo_id=31461&flag_destaque_longo_curto=C
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Fernando Haddad decidiu cancelar o início das obras de um túnel, que o prefeito
anterior se apressou a deixar licitadas para seu sucessor executar. O túnel, que
fazia parte da Operação Urbana Águas Espraiadas, tinha orçamento inicial de R$
1,5 bilhões (que poderia exceder a arrecadação prevista pela Operação) e não
admitia tráfego de ônibus.
Para enfrentar a imensa crise de transporte na cidade, o governo municipal reagiu,
no início do primeiro ano, com a solução de curto prazo que estava à mão: os
corredores de ônibus, dando clara prioridade ao transporte coletivo sobre o
individual. Parece simples e óbvio. O Brasil é reconhecido internacionalmente pelos
projetos de corredores de ônibus e o transporte coletivo é prioridade em todos os
Planos Diretores, todas as campanhas eleitorais, todos os programas de governos,
mas infelizmente não o é na realidade da gestão das cidades. Foi dado início à
implantação imediata de novos corredores, sem grandes obras ou gastos num
primeiro momento. Os dados mostram que o tempo de muitos percursos de
transporte coletivo já foi reduzido embora os congestionamentos continuem
extravasando as centenas de quilômetros como não podia deixar de ser já que sua
compra foi potencializada pela exoneração dos impostos definida como estratégia
federal de retomada do crescimento econômico.
COMBATE À CORRUPÇÃO - Também no começo da gestão criou a Controladoria
Geral do Município, que desvendou um esquema milionário de corrupção
envolvendo funcionários públicos na aprovação de projetos e emissão de alvarás.
Corrupção e especulação andam de mãos dadas. Poucos temas são mais
importantes do que o achaque aos cidadãos por meio do uso da máquina
administrativa pública, nos governos. A grande mídia, aparentemente muito
sensível a esse tema, não só não deu a importância devida ao fato, como tentou
incriminar o próprio governo. A Controladoria Geral do Município foi criada
legalmente bem como a carreira de controlador com 100 cargos iniciais.
PLANEJAMENTO - Há um claro esforço de planejamento e enfrentamento dos
problemas financeiros como mostram o Plano de Metas e o planejamento financeiro
apresentados à público no Conselho da Cidade de São Paulo. O PLANO DIRETOR foi
bastante discutido e constitui uma peça importante para o futuro do município,
caso seja implementado e não tenha o destino do Plano de 2002. Detalhes
inovadores de desenho urbano poderão, se implementados e continuados,
assegurar um padrão de maior qualidade da mobilidade urbana e dos espaços
públicos. A cidade recuperou a zona rural, ao sul do município, com a finalidade de
a) dar sequencia e capacitar para a produção orgânica os pequenos produtores de
alimentos, b) desenvolver atividade turística e c) preservar a mata nativa visando
proteger a produção de água na Bacia do Capivari- Monos. Sim, São Paulo tem
mata nativa de alta biodiversidade. Quantas cidades no mundo podem apresentar
essa condição? Mas, sim, há pressões para destruir o que resta desse patrimônio25/7/2014 www.cartamaior.com.br/detalheImprimir.cfm?conteudo_id=31461&flag_destaque_longo_curto=C
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sob a forma de matas e águas. Que o digam os ativistas do movimento
AEROPORTO EM PARELHEIROS, NÃO!, que juntamente com os militantes do MTST
fizeram a legítima pressão sobre a Câmara Municipal para aprovação do
substitutivo do PDE.
Se os moradores de São Paulo não conhecem o paraíso natural que fica próximo de
suas casas é devido ao padrão de alienação que predomina na relação entre a
sociedade e seu território, no Brasil. Como urbanista dificilmente deixaríamos de
achar detalhes a serem melhorados neste PDE: gostaríamos de ver a Cota de
Solidariedade restrita ao pagamento em terra, gostaríamos de ter certeza de que o
aeroporto privado não vai se instalar em Parelheiros, gostaríamos de ver mais ZEIS
– Zonas Especiais de Interesse Social que de fato garantissem um mix de renda
em bairros centrais desta cidade que é uma das mais desiguais da América Latina.
Mas a simples aprovação do Plano já é um avanço e cabe à parcela da sociedade
que o apoiou ficar alerta para sua implementação .
Outras medidas como a lei que prevê o alargamento das vias que receberão
corredores de ônibus e ciclovias também podem garantir um futuro melhor para a
cidade. O mesmo acontece com as iniciativas que buscam modificar a lei do
zoneamento tornando-a mais original, inovadora e adequada para nossa realidade
urbana. Recuperar o espaço público e a calçada para os pedestres é uma das mais
importantes tarefas dessas propostas.
PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA - A criação das secretarias de Direitos Humanos, da
Igualdade Racial e de Política para as Mulheres; a reativação de 9 Conselhos
Temáticos como Saúde, Educação, Habitação, entre outros e a instalação do
Conselho da Cidade de São Paulo que reúne representantes dos moradores de rua
aos empresários da construção civil num mesmo espaço revela a confiança na
participação social e no jogo aberto.
HUMANIZAÇÃO E DIÁLOGO - A Operação Braços Abertos revelou uma nova forma de
tratar os dependentes de droga resultante da articulação de vários órgãos de
governo que raramente trabalhavam juntos. Com essa articulação, uma favela que
assustava a cidade foi desmontada pacificamente em um dia e seus moradores,
doentes, dependentes de droga, encaminhados para pensões e tratamento
voluntário.
A ampliação dos centros de triagem de reciclados com a organização de
cooperativas de catadores têm efeito no meio ambiente diminuindo o lixo
descartado e gerando trabalho e renda com a reciclagem.
A originalidade e amplitude da política de cultura, envolvendo jovens na periferia
com a arte e a cultura são iniciativas que mostram a forma mais eficiente de25/7/2014 www.cartamaior.com.br/detalheImprimir.cfm?conteudo_id=31461&flag_destaque_longo_curto=C
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combater o crime e a violência na cidade. O comitê Juventude Viva reúne 25
gestores voltados para os jovens e as jovens, especialmente negros, das periferias
urbanas. O resultado dessas ações dependem de sua continuidade portanto não
são decorrentes do calendário eleitoral.
SEGURANÇA ALIMENTAR - A conquista do PAA para o município de São Paulo
(Programa de Aquisição de Alimento do Governo Federal) promete melhor
alimentação nas escolas e outros órgãos públicos bem como garante sobrevivência
para os produtores agrícolas que tem como permanecer produzindo nas bordas da
metrópole. O meio ambiente também se beneficia com a manutenção da produção
agrícola, especialmente de produtos perecíveis sem agrotóxicos.
Alguns dias atrás eu diria que o maior feito do prefeito estava na escolha dos
subprefeitos. Ao invés das indicações costumeiras de vereadores o prefeito
nomeou, contra a tendência geral, técnicos de carreira, arquitetos e engenheiros (e
não militares aposentados como muitos, na gestão anterior), conhecedores da
cidade e da máquina municipal. Essa impessoalidade no critério nega a tendência
patrimonialista brasileira, afirma o profissionalismo. Aparentemente a aprovação
do Plano Diretor custou a indicação de 12 subprefeitos. Muitos argumentam que a
competência técnica não garante necessariamente um bom gestor assim como o
critério da indicação de aliados não implica necessariamente na privatização da
máquina pública. Como sempre, a melhor solução está na cidadania ativa
acompanhando e cobrando o subprefeito que, afinal, está mais próximo.
Não se trata aqui de fazer uma relação de realizações da prefeitura de São Paulo
na gestão Fernando Haddad pois isso é tarefa do setor de comunicação. Este, por
sinal, poderia ser mais eficiente embora seja preciso reconhecer que está difícil
romper o muro midiático.
Tratou-se isto sim, sem a preocupação que exigiria um levantamento exaustivo, de
lembrar que há uma aposta no diálogo, nos laços comunitários, no desarmamento,
na expressão da cultura social, no respeito aos direitos legais e ao meio ambiente.
Mas é preciso lembrar também que as conquistas possíveis numa máquina
municipal como essa, nesse momento, tem limites. Elas dependem da herança
recebida, do contexto encontrado e da correlação de forças. A herança é terrível e o
contexto é adverso se considerarmos o endividamento do município e o massacre
midiático. Os valores conservadores são apregoados sem pudores especialmente
pela televisão que constitui canal de informação para 97% da população. Nem o
partido do prefeito e, por vezes, nem o próprio time dos aliados que integram o
governo saem à luta na defesa do governo. De um modo geral, não há respostas
aos ataques midiáticos e nem parece haver uma estratégia alternativa de
comunicação com a maioria da sociedade que é objeto das políticas municipais.25/7/2014 www.cartamaior.com.br/detalheImprimir.cfm?conteudo_id=31461&flag_destaque_longo_curto=C
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Não me refiro aqui à luta pelo poder eleitoral, que não deixa de ter sua
importância, mas à luta por uma política urbana que a sociedade tome como sua e
que a torne sujeito da história da cidade, o que é muito mais importante. Temos a
rara oportunidade de exercitar a democracia urbana em São Paulo em que pese a
grande dificuldade da polícia lidar com ela. E ela não se dá sem conflitos porque há
muita coisa em jogo. A expressão de conflitos é natural na vida democrática.
Apenas o pensamento único não quer reconhecer essa evidência.
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