O silêncio oportunista

Por que, para a paz mundial, a derrubada do avião malaio é muito menos ameaçadora do que a invasão de Gaza
por Mino Carta 
Não pergunto aos meus botões em que mundo vivemos, temo a resposta. A crise mundial dispensa maiores apresentações. Moral e intelectual antes que econômica, embora esta confirme aquelas precedentes. Por que a humanidade rendeu-se à religião do deus mercado? Por que aceitou passivamente as leis de uma fé que aproveita a poucos e infelicita os demais?

Às vezes me colhe a sinistra sensação de que já começou uma nova, peculiar Idade Média. O mundo, seduzido pelo chamado avanço tecnológico, vítima de uma globalização dos interesses da minoria, distanciados os homens uns dos outros não somente pelo crescente desequilíbrio social, mas também pela versatilidade da mirabolante internet, não se apercebem do eclipse dos valores e dos princípios, e da ausência de poetas e pensadores.
É nesta moldura que se desenrolam os acontecimentos destes dias a agitarem a política internacional, e também se movem minhas dúvidas e perplexidades em relação aos comportamentos dos donos do poder, das chamadas opiniões públicas e dos sistemas midiáticos. No caso, a mídia nativa confirma apenas a sua insignificância, ao imitar simplesmente os exemplos chegados de fora.
Então vejamos. Por que os restos retorcidos do avião malaio derrubado no céu ucraniano ganham a primazia nas primeiras páginas e na fala sincopada dos locutores, no confronto com os mortos e a devastação na Faixa de Gaza? Não proponho um enigma. Trata-se do resultado da demonização de Putin misturada com o longo alcance do lobby judeu. De certa forma, a queda do avião veio a calhar para os senhores do mundo, sem detrimento da brutal gravidade do fato e a desolação causada pela morte de 298 semelhantes. Serviu, porém, para desviar a atenção, até onde foi possível, de algo muito mais grave para a paz global.
É no Oriente Médio que se decide o futuro do planeta, e isso é do entendimento até do mundo mineral. A questão da Ucrânia é complexa e ameaçadora, mas o império soviético, cuja presença estaria habilitada a precipitar severas complicações, ruiu há 25 anos. O Ocidente, ainda sujeito ao império norte-americano, tende a apresentar Putin como uma espécie de herdeiro tanto da URSS quanto do czar. Não é bem assim, está claro. O defeito do líder russo é sua inteligente independência, em que pesem sua prepotência e eventual ferocidade, e sem falar das preocupações geradas por seu envolvimento na criação de uma nova ordem pelos BRICS. Outra a dimensão da questão médio-oriental, para a qual reflui o efeito dos momentos mais tensos das últimas décadas.
Feridas profundas continuam a sangrar em toda a região, marcada pela progressão do fundamentalismo islâmico, por revoluções em pleno curso, pelos erros das políticas ocidentais, que aliás são seculares. E por guerras fracassadas, por revoltas malogradas, por atrocidades sem conta, por desmandos imperdoáveis. Etc. etc. No centro deste arcabouço instável, sempre à beira do desastre fatal, está Israel, Estado poderosíssimo por força própria e de quem o sustenta, a ocupar, desde o pós-Guerra, uma terra antes habitada por outro povo, conquanto também semita, há cerca de 2 mil anos.
Eu, por exemplo, não sou responsável pelo holocausto. Lamento, mesmo porque ceifou a vida de excelentes amigos dos meus pais, mas não me induz ao remorso, e tanto menos até hoje, quando a invasão da Faixa de Gaza pelas formidáveis tropas israelenses evoca a invasão do Corredor Polonês pelo exército de Hitler em 1º de setembro de 1939, estopim da Segunda Guerra Mundial. O Ocidente neoliberal diz que Tel-Aviv tem direito a se defender contra o terrorismo do Hamas. Já o Hamas sustenta estar em luta pelo resgate da terra usurpada.
Por cima das razões de cada um, a disparidade exorbitante entre as forças não pode deixar de influenciar qualquer juízo, para fortalecer a inequívoca percepção de que de um lado morrem soldados e do outro civis, e muitas crianças, em proporções absolutamente incomparáveis. Estamos diante de uma ofensa irreparável aos Direitos Humanos. Que visa Israel? Eliminar 1,8 milhão de palestinos? Dói demais, na circunstância, a falta de reação de uma porção do mundo que se pretende civilizado e democrático e, de verdade, sucumbe à soberania do dinheiro. Avulta, nesta encenação trágica, a ausência de lideranças, a falta daquele gênero de personagens que já ofereceram espaço à política e a praticaram com competência para assumir o controle da situação e ditar as regras.
Contamos com uma galeria de figuras medíocres, quando não parvas, incapazes de enfrentar a turva realidade para impor um rumo. E isso tudo nesta hora que denigre o gênero humano e denuncia a chegada da nova Idade Média. Louvo a iniciativa da chancelaria brasileira: chama às falas o embaixador israelense e de volta ao País o embaixador brasileiro em Tel-Aviv. Mas o Brasil pode e deve muito mais. Por exemplo, convocar a ONU, como sempre inerte, a condenar o massacre e mostrar às lenientes democracias ocidentais o caminho da razão.

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