O Santander e a lobotomia de uma Nação

Os bancos são os grandes provedores de conteúdo da rede Brasil aos cacos. Eles dão a corda, o jornalismo econômico dá o nó, o país entra com o pescoço
Por Saul Leblon, na Carta Maior
O banco Santander, informa a ‘Folha’,  anexou aos extratos enviados a sua clientela de elite, o segmento ‘Select’, uma avaliação de natureza político eleitoral.
Caso Dilma se consolide na dianteira das intenções de voto, adverte  o maior banco estrangeiro em operação no país,  ações devem cair, os juros vão subir , o chão se esfarelar…
Em linguagem cifrada, ‘não deixe que isso aconteça: vote Aécio’.

Transformar extratos bancários em palanque da guerra das expectativas deve ser inclusive ilegal. O Ministério Público Eleitoral poderá dizê-lo.
O descabido, porém, não constitui anomalia no cenário brasileiro.
Os bancos são os grandes provedores de conteúdo da rede  ’Brasil aos cacos’.
Eles dão a corda, o jornalismo econômico dá o nó, o país entra com o pescoço.
Gente treinada e bem remunerada, quadros de elite –não raro egressos do Banco Central no governo do PSDB,  encontram-se  disponíveis  para somar forças com o bravo jornalismo  de economia na missão de esgoelar o Brasil.
Um bunker tucano, como o Itaú, hoje uma espécie de Banco Central paralelo, figura como um dos grandes provedores de conteúdo do noticiário econômico.
O recado é sempre o mesmo: não há futuro para o Brasil se a urna sancionar um segundo ciclo do  ‘intervencionismo’.
Quando as estatísticas teimam  –como agora que a inflação desaba, o apagão se esvai, os juros futuros recuam e o pleno emprego resiste— recorre-se ao talento do jornalismo adversativo.
O varejo, por exemplo,  quando cai é  uma  ‘tendência preocupante’; se sobe, ‘recuperou, mas é pontual’ .
Resultado bom ‘surpreende o mercado’. O inverso ‘veio em linha com as expectativas de deterioração do quadro econômico’.
É infernal.
A experiência brasileira  sugere que não há ingrediente mais precioso na luta pelo desenvolvimento  do que abrir espaço ao discernimento crítico da sociedade  contra o monólogo da desinformação.
Sem isso, prevalecem  interesses que se beneficiam do incentivo à amnésia  histórica.
Um exemplo?
A origem da tão propalada crise de confiança atribuída ao ‘intervencionismo estatal’.
Aqui e em todo o planeta sua principal fonte, na verdade, foi a intermitente eclosão de colapsos financeiros, a partir dos anos 70, quando a mobilidade dos capitais ficou livre do controle estatal que a banca ainda acha excessivo no Brasil.
Uma a uma, foram desativadas  as comportas erguidas a partir de 1929  para disciplinar  a natureza intrinsecamente autofágica e desestabilizadora do capitalismo financeiro.
Bill Clinton, em 1999, consumou o arrombamento iniciado por Tatcher e Reagan nos anos 80.
Ao revogar a lei Glass Steagall, o democrata  eliminou a distinção entre bancos comerciais e de investimento  –estes últimos só podiam arriscar com capital próprio lastreado em reservas.
Isso acabou.
Rompida a barreira, as águas se misturaram  –e o risco se diluiu.
O dinheiro  fácil, barato, mas de curto prazo,  jorrou no vertedouro da especulação engordando-a , ao mesmo tempo em que encurtava seus ciclos.
Como num cassino, o fastígio das primeiras rodadas parecia  eterno.
Dessa crença brotaram os créditos ‘ninja’, concedidos a  tomadores sem renda, sem emprego e sem garantias.
O chute no escuro empurrou todos os jogadores  ao buraco negro das subprimes, em 2008.
O Santander foi, na Espanha, um dos titãs da ciranda que legou ao país o maior encalhe de imóveis do mundo e um desemprego só inferior ao grego.
Em 2011, atolado em hipotecas micadas,   jogou a toalha: anunciou uma moratória de três anos sobre o principal,  em troca de receber pelo menos o juro dos mutuários espanhóis empobrecidos.
Em 2012, quando a corda apertava seu pescoço na Europa, o presidente do banco, Emilio Botín, aterrissou  no Brasil.
Disse que o país era a sua ‘maior prioridade no mundo’: daqui saíam 30% do lucro global do grupo.
Em setembro de 2013, estava de volta.
Depois de reunir-se com a  Presidenta Dilma Rousseff, anunciou: ‘Queremos participar ativamente do milionário Plano de Aceleração do Crescimento e financiar uns US$ 10 bilhões em projetos de infraestrutura . O Brasil tem se consolidado como uma grande potencia regional e global, com instituições sólidas e um sistema financeiro muito consolidado’ (EL País; 13/09/2013).
Dez meses depois resolveu lançar  extratos bancários consorciados a panfletos eleitorais contra  o ‘risco Dilma’.
A memória curta do Santander em relação ao país está em linha com a memória curta da mídia conservadora em relação à origem ‘da crise de confiança’  cujo fato gerador não apenas persiste , como ensaia um novo pico explosivo.
Fatos.
Dos mais de US$ 25 trilhões despejados no sistema financeiro dos EUA desde 2009, para mitigar o caixa rentista, apenas 1% ou 2%, no máximo, chegaram aos lares assalariados, na forma de crédito e financiamento.
O que avulta, ao contrário,  é uma explosão irracional dos preços da papelaria financeira sem lastro na riqueza real –a mesma doença pré-2008:
Na zona do euro, onde o Santander é a maior instituição bancária, a desproporção  entre a valorização dos ativos (títulos, ações etc)  e a curva do emprego e do consumo, replica a dança na boca do vulcão.
Estima-se que nos EUA grandes corporações tenham uns US$ 7 trilhões queimando em caixa. Liquidez ociosa à procura de fatias da riqueza real  para uma transfusão de lastro.
Com a economia internacional  flertando com a estagnação há seis anos, novas bolhas especulativas engordam no caldeirão.
A Facebook, por exemplo,  acaba de pagar US$ 19 bilhões (8% de seu próprio valor) por uma startup, a WhatsApp.
Para que o negócio justifique o preço terá que duplicar sua base de usuários para 1 bilhão.
Com o dinheiro barato irrigado  pelo Fed,  grandes corporações  norte-americanas tomam recursos a juro negativo para recomprar as próprias ações.
O artifício permite bombar balanços sem incrementar a  produção.
Estima-se que mais de US$ 750 bilhões de dólares foram utilizados nessas operações  em 2013.
Outra evidência da fuga para frente do capital fictício é a súbita procura por bônus de economias  reconhecidamente cambaleantes.
Casos da Grécia, Espanha e Portugal, por exemplo.
Os lanterninhas do euro  lançaram emissões no mercado financeiro este ano e conseguiram captar bilhões a juros baixíssimos.
Rincões cada vez mais  improváveis faíscam aos olhos da sofreguidão especulativa.
A última ‘descoberta’, a África, vê pousar fundos primos dos  abutres que acossam a Argentina. Tão aventureiros quanto,  compram emissões de Estados acuados por guerras e conflitos étnicos.
A ideia é receber pelo menos uma parte da remuneração indexada a  juros cinco a seis vezes acima do custo de captação nos EUA; depois cair fora.
É nesse ambiente camarada que o Santander resolveu reforçar a lobotomia em curso no imaginário brasileiro.
Fomentar a crise de confiança é a pedra basilar de um mutirão eleitoral para escancarar as comportas que permitam ao capital ocioso avançar por aqui, como se o país fosse um banco de sangue complacente à  transfusão requerida pela especulação global.
Estamos falando de um alvo de cobiça com população equivalente a dos EUA nos anos 70. E uma renda pouco superior a 1/3 daquela dos norte-americanos nos anos 30.
Com uma distinção não negligenciável: a distribuição no caso brasileiro é melhor que a dos EUA então, atropelado por  uma taxa de desemprego que chegou a 27% em 1937.
O Brasil vive perto do pleno emprego;  tem população predominante em idade produtiva; um potencial de demanda ainda não atendida e recursos estratégicos abundantes, a exemplo do pré-sal.
Nada sugere que estamos diante dos ingredientes de um fracasso, como aquele vaticinado dia e noite pela rede ‘Brasil aos cacos’.
A curetagem conservadora, porém, pode anular a alma de uma nação — se  conseguir convencê-la a rastejar por debaixo de suas possibilidades históricas.

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