Defensor de paraísos fiscais assume Comissão Europeia

Um dos mais ardentes defensores do sigilo bancário e ex-primeiro ministro de um dos principais paraísos fiscais da Europa, assume presidência da CE.

Por Eduardo Febbro

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Jean-Claude Juncker
Paris - Um dos mais ardentes defensores do sigilo bancário e ex-primeiro ministro de um dos principais paraísos fiscais da Europa, Luxemburgo, acaba de chegar à presidência da Comissão Europeia. Jean-Claude Juncker, antigo presidente do euro grupo (países onde circula o euro), se converteu no primeiro dirigente que chega a esse posto mediante uma eleição depois de ter sido "designado" mediante um acordo prévio entre os 27 dirigentes da União Europeia. O Parlamento Europeu confirmou-o para substituir a Manuel Barroso, por 422 votos a favor, 250 contra e 47 abstenções. Ainda que tenha precisado batalhar para conseguir um consenso em torno de seu nome, principalmente com o primeiro ministro britânico, David Cameron, não houve nenhuma surpresa na hora de eleger esse europeu que representa uma onda de contradições.

A indicação de Juncker parece um claro golpe nos eleitores que, nas eleições para renovar o Parlamento Europeu (em maio de 2014) se pronunciaram claramente por outra Europa. No entanto, o dirigente de Luxemburgo encarna exatamente a mesma Europa tecnocrática e liberal que os eleitores rechaçaram nas urnas. É o homem da continuidade que carrega pesadas nuvens que passam a pairar sobre a legitimidade da União Europeia.

Jean-Claude Juncker é um conservador com uma fachada social. Em sua intervenção pública, o recém "eleito" presidente da Comissão prometeu uma Europa "mais competitiva", mas também "mais social". Juncker propôs um plano global de reativação econômica de 300 bilhões de euros para os próximos três anos, sem dizer de onde sairá esse dinheiro nem renunciar à rigorosa disciplina orçamentária imposta pelo pacto europeu de estabilidade e crescimento. Para alguns, sua indicação soa como uma brincadeira de mau gosto ou como uma contradição flagrante.

Como ex-chefe de governo de um inegável paraíso fiscal, cabe perguntar o que dirá aos dirigentes do G20 na próxima reunião de cúpula do grupo. É um enigma. Cabe lembrar aqui que uma das missões prioritárias do G20 tem sido sobre a espinhosa questão dos paraísos fiscais. Em 2010, a revista norteamericana Forbes publicou a lista dos maiores paraísos fiscais do mundo. Luxemburgo, então dirigido pelo atual presidente da Comissão Europeia, figurava em uma excelente posição: 1º) Estados Unidos; 2º) Luxemburgo; 3º) Suíça; 4º) Ilhas Caiman; 5º) Reino Unido (Londres); 6º) Irlanda; 7º) Bermudas; 8º) Singapura; 9º) Bélgica; e 10º) Hong Kong. Em 2013, a ong Tax Justice Network também colocou Luxemburgo em segundo lugar neste reanking.

Jean-Claude Juncker sempre negou que Luxemburgo fosse um desses paraísos, mas é sim. Em 2008, o então presidente francês, Nicolas Sarkozy, se dirigiu implicitamente aos responsáveis do Grande Ducado de Luxemburgo: "não é possível combater certas práticas fora de nosso continente e tolerá-las no nosso", disse Sarkozy.  Não só podem, como também aqueles que governaram esses países de práticas tortuosas tornam-se dirigentes de um conjunto de países onde vivem 500 milhões de pessoas.

Luxemburgo conta com cerca de 600 mil habitantes e tem 140 bancos instalados em seu território, o que equivale a mais forte concentração bancária da União Europeia. Esses bancos administram 2,5 trilhões de euros, o que representa 50 vezes o PIB de Luxemburgo, que chega a 45 bilhões. Juncker dirigiu o grupo euro entre 2005 e 2013 e governou o ducado durante 18 anos. Gerir o dinheiro dos demais trouxe lucros:  o PIB por habitante (67.340 euros em 2013) é duas vezes e meia superior à média europeia.

Como chefe do governo de Luxemburgo e tendo a Grã-Bretanha como aliada, Juncker foi um dos principais adversários da diretiva europeia que impunha um imposto sobre os juros cobrados dos depósitos. A norma foi adotada em 2003, mas Juncker conseguiu que, junto com a Áustria e a Bélgica, Luxemburgo conservasse o direito de preservar o anonimato do dinheiro depositado nos cofres de seus bancos. Pouco antes de terminar seu mandato em abril de 2013, o hoje presidente da Comissão Europeia aceitou o fim do sigilo bancário em Luxemburgo. 
 
A pressão de Washington e a generalização dos programas de intercâmbioa utomático de dados não permitiram que essa contradição fosse mais longe. No entanto, Juncker jamais parou de defender o estatuto de paraíso fiscal que caracteriza Luxemburgo, sobretudo quando se negou a aceitar não só dos dispositivos europeus de harmonização fiscal como, principalmente, as demandas da Comissão Europeia em matéria de intercâmbio para evitar a evasão fiscal.

O homem tem um perfil pouco apto a corresponder a essa Europa desencantada e sem fé que se expressou nas urnas no último mês de maio (eleição do Parlamento Europeu, 60% de abstenção). Liberal, aborrecido, técnico, Junker encarna perfeitamente os fantasmas e características que a dirigência europeia inspira. O paradoxo é por demais saboroso. Jean-Claude Juncker tem a tarefa de aplicar as regras da Comissão Europeia que ele mesmo recusou rerspeitar quando era primeiro ministro de Luxemburgo e defendeu, contra tudo e contra todos, o obscurantismo fiscal e bancário. Mas as contradições não terminam nele, ampliando-se aos milagrosos socialistas europeus que o apoiaram. Os socialistas do Velho Continente fizeram campanha contra os paraísos fiscais e terminaram votando em um dirigente oriundo de um desses territórios onde se podem esconder lucros e tesouros de toda índole e origem. Um milagre europeu.
 
Tradução: Louise Antonia León

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