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Para ler em companhia 
dos Buendía

ILUSTRAÇÕES CARYBÉ
Para ler em companhia 
dos Buendía
Descompassos amorosos permeados de incesto e mortes convergirão em solidão

No romance sobre 
a secular família de Cem Anos 
de Solidão, o autor cria um mundo 
louco, poético, histórico e real

Por Joana Rodrigues
Na Carta Capital-Escola
Caro leitor, é chegado o momento. Você se encontra aí, diante das páginas ou da tela, à espera de Cem Anos de Solidão. Tanto melhor é deixar-se levar pela porta de entrada que García Márquez nos propõe com o título do romance. Ao apontar algo bastante real, a cronologia, e ao mesmo tempo a proposta de uma extensão tão vasta que somente o ser humano poderá avaliar, um século de solidão. Assim, com a ausência de um verbo no título, o leitor se permitirá configurar à sua leitura a palavra de ação ou o verbo que melhor lhe convier.

Por se tratar de uma obra que já ultrapassou a tiragem de 50 milhões de exemplares e está entre as cinco mais lidas no mundo depois de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e a Bíblia; publicada em 36 idiomas, poderá causar, no mínimo, uma dose elevada de expectativa na leitura. Um mundo louco, mágico, sensível, poético, histórico e ao mesmo tempo real vai se delinear a partir do primeiro conjunto de frases, das quais já se ouviu, à fartura, a reprodução: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.
Somada à expectativa da leitura, outra dose, agora de prazer, poderá se apresentar ao leitor. Afinal, é chegado o momento de compartilhar com o Prêmio Nobel de Literatura (1982) o universo ímpar construído sob a mescla de realidade e imaginação, de magia e fábula, o universo do realismo mágico. Sim, García Márquez ao publicar, em 1967, este que foi o seu terceiro livro de ficção, Ninguém Escreve ao Coronel (1958) e A Má Hora – O veneno da madrugada (1961), trouxe novidades literárias justamente para dar conta de uma realidade tão saturada de cores, imagens, emoções e paisagens, que as formas narrativas, os estilos literários dessa época, os anos de 1960, não eram suficientes. Assim, criaram-se novas metáforas e maneiras de narrar com as quais García Márquez e outros escritores latino-americanos conseguiram expressar-se da forma que necessitavam. Nesta nova escritura de romances, os limites entre realidade e fantasia foram apagados. Os elementos fantásticos tomaram conta das histórias e dos personagens até se tornarem enraizados em seu cotidiano. 
O sabor contagiante do discurso literário que exala de obras como Cem Anos de Solidão não elimina o compromisso de que seus autores e suas temáticas contundentes sempre se mantenham colados à realidade. E García Márquez não desvia de tal propósito quando denuncia acontecimentos históricos, principalmente as guerras civis e as ditaduras nas cerca de 450 páginas do romance que teve – a pedido de Gabo – outra tradução para o português a cargo de um dos amigos mais próximos do escritor, o também escritor e jornalista Eric Nepomuceno. Um dos episódios retratados no livro relata as agruras de uma companhia norte-americana junto aos trabalhadores do setor bananeiro e dizima 3 mil homens, referência a um acontecimento catastrófico que marcou a trajetória de Gabito na infância, quando da tal greve de 1928. 
Para trazer tantas histórias à tona sob o signo daquilo que não é comum, do que é surreal, maravilhoso e fantástico García Márquez mune-se de recursos literários que remetem às técnicas do folhetim, portanto, da dinâmica da oralidade, o que se soma ao uso e abuso das hipérboles, ou seja, dos exageros. Essas marcas presentes em textos do realismo mágico se juntam, no caso de Cem Anos de Solidão, a outro elemento, a que o próprio autor chamou de carpintaria da escrita. A forma de engrenar uma frase na outra, a partir da escolha de verbos, substantivos e adjetivos, imprimindo precisão nas ações e nas descrições, assim como na representação das emoções e dos sentimentos. No entanto, há de se acrescentar ao estilo “garciamarquiano” a forte presença poética. A escolha de um vocabulário muito mais aproximado aos escritores clássicos espanhóis do século XVIII, o século de ouro, por exemplo, uma de suas fontes de escrita, permite às frases e parágrafos ritmos ímpares. O que resulta em um texto que transpira odores, temperaturas, colorações, sensações tácteis e sons. Não é à toa que borboletas amarelas em quantidades nada miseráveis tomam conta das páginas e da tela quando entra em cena o aprendiz de mecânico Mauricio Babilônia, totalmente apaixonado por Meme (Renata), filha de Aureliano Segundo. 
Do mesmo teor, é permitido ao leitor sentir o cheiro da pele chamuscada da mão de Amaranta, a terceira filha de José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, que busca o fogo como autopenitência por não ter impedido o suicídio do noivo, e ter-se entregado a uma relação sexual amorosa com o sobrinho Aureliano José.
E para encerrar o ritual da iniciação ou do quebra-gelo, é preciso ficar com a certeza de que uma leitura única não dará conta da abundância de possibilidades de interpretação que o livro oferece. Assim como uma leitura primeira não alcançará as tantas referências pessoais ao escritor, ao seu país, à América Latina e às questões universais ali encravadas. Daí entender-se como possível a interpretação de que as histórias vividas por Aurelianos e Arcadios em seus círculos e ciclos cíclicos que propositadamente se repetem em nomes e trajetórias de vida, possam remeter a um território sociopolítico-cultural chamado América Latina. Lugar esse, ao mesmo tempo mágico e real, destinado a enfrentar um século de solidão, consequência do abandono das questões centrais que movem as nações: políticas públicas, direitos humanos, qualidade de vida, educação. 
Diante desse leque de interpretações plurais, inclui-se ainda a perspectiva de que o romance poderá resvalar em temas bíblicos e, a mais pessoal de todas as possibilidades, de autoria do próprio escritor, quando muito seguro de ser um colombiano “caribe”, ou seja da Costa Atlântica, afirmou “ser um simples notário e não ter inventado nada”. Quem mergulhar na cultura caribenha e nos outros registros de Gabo, crônicas e reportagens, que o diga.
São muitas as camadas que o texto do romance nos proporciona, por isso nos caberá, na condição de leitores críticos, escavações plurais e contínuas. Então, vamos a elas! Pois trata-se de uma sucessão de pequenas aventuras narrativas, providas da capacidade de trazer à luz o que o crítico uruguaio Ángel Rama chamou de pirotecnia incessante, distribuídas ao longo de 20 capítulos, que nos é apresentada sem títulos nem numeração. Para o embarque nessa aventura leitora e literária pode-se ficar então com a máxima “em se tratando de Macondo tudo é possível”, uma vez que o leitor mesmo diante do exagero e do insólito, passará a selar um pacto de leitura com a verossimilhança com o texto.
Pois é em Macondo o cenário no qual se desenrola a ação dos 69 personagens. Esse lugar mítico e presente geograficamente na imaginação de García Márquez desde a sua juventude, quando se deparou com uma tabuleta nomeando uma fazenda de banana abandonada em uma das visitas à sua terra natal, a cidade de Aracataca. São homens e mulheres, jovens e centenários (a matriarca Úrsula Iguarán vive até os 120 anos), vivos e mortos que se juntam ao casal nuclear da história, os primos Úrsula Iguarán e José Arcadio Buendía, donos de ações e comportamentos singulares. Ou melhor, ações e comportamentos completamente de acordo com o jeito macondiano de ser, e por isso enfrentarem-se a uma epidemia de insônia, uma chuva de quatro anos, onze meses e dois dias, a ascensão da lindíssima bisneta Remédios, filha de Aureliano Segundo, que em uma tarde ensolarada lança-se ao céu segurando um lençol, desaparecendo para sempre, e do padre Nicanor, que, depois de uma xícara de chocolate quente, sai do chão, levitando, com o intuito de chamar a atenção dos  fiéis durante uma celebração religiosa.
A história do romance começa quando Macondo se vê invadida por uma trupe de ciganos, cuja figura de destaque recai em Melquíades. Será ele o responsável pelo registro letrado da saga familiar – um pergaminho redigido em sânscrito – portanto, figura fundamental para decifrar a história dos Buendía, um século depois. O impacto maior dessas visitas estrangeiras que trazem o gelo e o tapete voador, entre outras maravilhas, para Macondo se dá junto ao patriarca, José Arcadio  Buendía, que abandonará afazeres familiares e domésticos para protagonizar uma série de experiências malsucedidas, como usar ímã para encontrar ouro na Terra. Transformar outros metais em ouro e reproduzir peixinhos desse mesmo metal serão obstinações as quais o marido de Úrsula Iguarán passará a viver, ao lado do cigano Melquíades, em um processo de isolamento. Os sucessivos insucessos o apartam da família e, assim, do quartinho do quintal se transfere para uma árvore, onde se aninha em sua demência solitária.
Em contrapartida, a matriarca Úrsula passará a atuar como a figura agregadora e responsável por sete gerações. Em meio a dramas particulares de todos os que a rodeiam, filhos, netos, bisnetos legítimos e ilegítimos, permeados por incestos, mortes e, em particular, a luta árdua do filho, o coronel Aureliano Buendía, com o regime político vigente e toda a sorte de descompassos amorosos que convergirão em solidões. 
Se o espaço geográfico mítico Macondo acolhe cenas como as intensivas e desnorteadas caminhadas da menina Rebeca, filha não natural dos Buendía, sob o tilintar de ossos de seus pais, acondicionados em um saco dependurado no ombro, o tempo cunhado por García Márquez ganha outra dimensão no romance. Assim há episódios que comungam o passado, o presente e o futuro, justamente como o anunciado na primeira cena do livro. Já na casa-sede dos Buendía, um século pode ser apresentado em episódios instantâneos. Trata-se então de um tempo irreal. Elemento que permitirá ao leitor acompanhar o final da estirpe dos Buendía. Não necessariamente com o desaparecimento do patriarca José Arcadio, mas com a morte do mais jovem integrante do clã macondiano, o bebê ainda sem nome que, natimorto, levou igualmente sua mãe, Amaranta Úrsula, à morte durante o parto e o pai, Aureliano, quase à loucura. Fruto de um amor  entre uma tia e um sobrinho,  a criança nasceu com um rabo de porco, como temeu Úrsula Iguarán durante toda a sua vida, afinal, ela casou-se com o primo. E fica a leitura para pelo menos mais cem anos! 

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