Oriente Médio: EUA “versus” democracia
10/6/2014, [*] Ahmed E Souaiaia, Asia Times Online − Speaking Freely
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
POSTADO POR CASTOR FILHO
O Acordo de Ta’if, de 1989, que mudou a fórmula de partilha do poder no Líbano, e a Constituição do Iraque, escritos sob “supervisão” das forças de ocupação norte-americanas, são bons exemplos de ferramentas políticas concebidas “sem contato com a realidade”, e que absolutamente não deixam espaço para a emergência de governos eleitos pelo povo por vias realmente democráticas. Em vez disso, aquelas ferramentas só produzem regimes que dependem de apoiadores ou regionais ou internacionais.
Localização da cidade de Ta'if na Arábia Saudita |
Muitos governos ocidentais e alguns analistas têm argumentado que as eleições realizadas na Síria dia 3 de junho de 2014 não seriam legítimas porque nem todos os sírios puderam (ou quiseram) votar, o país está em guerra e os sírios teriam sido coagidos a votar no atual presidente. Seriam argumentos aproveitáveis, se se aplicassem ao caso real da Síria e fossem mantidos sempre coerentes em todos os casos reais. Mas um rápido exame de outros casos e dos fatos relevantes caso a caso mostra que o argumento não se aplica à Síria nem é aplicado sempre coerentemente a todos os casos reais.
PRIMEIRO, governos norte-americanos acompanharam inúmeras eleições e produziram Constituições nacionais sob condições de guerra e em plena disputa sectária, por exemplo, no Afeganistão e no Iraque. Representantes do governo dos EUA várias vezes disseram que, mesmo nessas circunstâncias excepcionais, eleições e referendos são indispensáveis para ativar tradições democráticas sufocadas ou ignoradas, isolar os extremistas e dar legitimidade a novos governos. Por acaso esses “usos” da democracia não se aplicariam também à Síria?
Abdel-Fattah al-Sisi |
SEGUNDO, 56% dos eleitores egípcios não votaram nas recentes eleições que oficializaram no poder o antigo chefe militar da ditadura egípcia, o general Abdul Fattah al-Sisi. Além do mais, al-Sisi chegou ao poder por golpe de estado que derrubou presidente legitimamente eleito com alta participação dos eleitores e no qual concorreu contra vários candidatos muito fortes.
Mesmo assim, o governo dos EUA, da Arábia Saudita e muitos governos ocidentais rapidamente abraçaram al-Sisi, apesar da legitimidade zero, dos eventos absolutamente irregulares que precederam as eleições e das medidas muito duras introduzidas sob suas ordens, que aprofundaram as divisões e criminalizaram membros da oposição e jornalistas.
TERCEIRO, pretender que os sírios teriam votado como votaram “porque” foram intimidados e amedrontados é insulto contra todos os sírios, tanto aos que votaram como aos que não votaram. É apresentá-los como se fossem covardes, incapazes de tomar decisões autônomas, sem ajuda externa. A maioria dos sírios, que enfrentam condições dificílimas para viver já há mais de três anos, poderia ter preferido ficar em casa (como muitos fizeram), em vez de arriscar a vida para conseguir fazer uma pequena marca de tinta num pedaço de papel.
Afinal, muitos sírios sabiam que Bashar al-Assad seria eleito e que o ocidente não reconheceria os resultados eleitorais. Mesmo assim, a maioria dos sírios, por vasta quantidade de razões, quiseram votar e votaram em al-Assad. É importante não esquecer que estudos anteriores, encomendados pela OTAN e outras organizações ocidentais, já previam que Assad venceria as eleições com cerca de 60% dos votos – o que explica por que os EUA e outros governos ocidentais absolutamente não se interessavam por incluir eleições em qualquer das “soluções políticas” que indicavam para a Síria. Em vez de eleições, então, os EUA e aqueles governos ocidentais que acompanham cegamente o voto dos EUA pregavam uma “transferência negociada de poder” a uma coalizão de oposição que representa menos de 4% da população síria!
Há muitas razões pelas quais os sírios acorreram entusiasticamente às urnas, dentro e fora da Síria, para eleger al-Assad, alguns usando literalmente o próprio sangue para votar, em vez de tinta. Com instabilidade, guerras civis e governos fracos que resultam da intromissão do ocidente e de seus “estrategistas” de visão curta, é compreensível que tantos, no Oriente Médio, prefiram atropelar os EUA e seus ricos aliados árabes e eleger candidatos que, invariavelmente, são os que o ocidente menos deseja e prestigia.
Em vez de considerar os fatos realmente em campo e as motivações realmente ativas entre as populações, funcionários do governo dos EUA, da França, e governantes de alguns estados do Golfo continuam a ignorar e fazer pouco do desejo e do bem-estar do povo sírio – e absolutamente não têm nomes alternativos aproveitáveis a apresentar às eleições. Dizem que Bashar al-Assad perdeu contato com a realidade e perdeu legitimidade. Mas... Consideremos, então, alguns dados da específica realidade da qual se trata.
No mesmo dia em que o governo sírio anunciou os resultados das eleições presidenciais às quais compareceram 73% dos eleitores sírios, com 88% dos votos a favor de Bashar al-Assad, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, chegou ao Líbano. Falando de Beirute, disse que “as eleições na Síria não são eleições. Grande, enorme zero! Nada mudou entre a véspera das eleições e o dia seguinte”.
Ironicamente, para quem dizia que o presidente Assad teria perdido contato com a realidade, Kerry falava em solo libanês, e o Líbano está já há duas semanas sem presidente (situação que pode persistir durante meses), não tem qualquer governo já há mais de dez meses, e os deputados libaneses decidiram prorrogar os próprios mandatos por outros 16 meses (agora parece que essa situação terminará em novembro de 2014).
Eleições na Síria - 2014 |
Essa dissonância cognitiva desejante – que leva a apresentar como se fosse fato o que não passa de delírio-desejo formulado na cabeça do “analista”, sem correspondência na realidade – é sintoma do vastíssimo fracasso dos governos em nome dos quais Kerry fala, que absolutamente não conseguem apresentar alternativa aproveitável, por mais que critiquem governos e processos de governo de países dos quais os ocidente “não gosta” [ou que não gostam do ocidente (NTs)]. Pior que isso: os países que Kerry e o governo dos EUA apresentam como se fossem modelos aceitáveis não são sequer funcionais! E nem se fala de serem estáveis ou democráticos, porque também não são.
Em primeiro lugar, o Iraque. Houve eleições recentes no Iraque, as primeiras eleições legislativas depois da ocupação pelos EUA; e o país continua sem encontrar saída para suas tragédias de segurança, econômicas e políticas. Por causa do estranhíssimo “arranjo” para partilha de poder introduzido no Iraque sob supervisão das forças norte-americanas de ocupação, o Parlamento iraquiano resultou profundamente dividido em termos sectários, étnicos e ideológicos, o que torna impossível constituir qualquer governo que venha a ter alguma estabilidade no futuro de curto prazo.
Muammar Gaddafi |
Em segundo lugar, a Líbia – “libertada” há três anos do poder de Muammar Gaddafi, por uma aliança entre o Qatar (que financiou e armou grupos rebeldes) e a OTAN (que entrou com o poder de fogo aéreo) – enfrenta também terrível guerra civil, em que generais seculares têm de disputar terreno palmo a palmo contra grupos islamistas armados, vários dos quais afiliados da al-Qaeda.
Além do mais, a instabilidade política e a disponibilidade de todos os tipos de armas, em mãos de todos os tipos de grupos armados, já ameaçam também a estabilidade de países vizinhos, como Tunísia, Egito e Argélia, três países com governos frágeis e forte presença de afiliados da al-Qaeda.
Em terceiro lugar, outros aliados árabes dos EUA são exemplos de tirania e autoritarismo, não de governo responsável. Esses aliados incluem países como o Bahrain, que continua a agredir manifestantes pacíficos; a Arábia Saudita, que criminaliza e encarcera ativistas que trabalham na defesa dos direitos humanos; e o Qatar, que encarcera poetas e violenta trabalhadores estrangeiros e imigrantes. Nenhum desses países jamais teve eleições – nem eleições-farsa, que fossem!
Esses três países, especificamente, não têm qualquer tradição de governo representativo, e algumas de suas autoridades religiosas decretaram que eleições são pecado, nos termos da interpretação pessoal, deles mesmos, da lei islâmica.
Historicamente, os EUA e seu principal aliado regional, a Arábia Saudita, promovem modelos de governo controlados de cima para baixo, no qual o “equilíbrio” do poder só faz pender a favor de senhores-da-guerra e de facções étnicas e religiosas com ferramentas que paralisam o governo, em vez de lhe dar funcionalidade.
O Acordo de Ta’if, de 1989, que mudou a fórmula de partilha do poder no Líbano, e a Constituição do Iraque, escritos sob “supervisão” das forças de ocupação norte-americanas, são bons exemplos de ferramentas políticas concebidas “sem contato com a realidade”, e que absolutamente não deixam espaço para a emergência de governos eleitos por vias realmente democráticas, pelo povo. Em vez disso, aquelas ferramentas só produzem regimes que dependem de apoiadores ou regionais ou internacionais.
Tudo isso, afinal, mostra que os funcionários do governo dos EUA encarregados da política externa desejam realmente apoiar governos antidemocráticos e fundamentalmente instáveis, em vez de investir em democracias participativas e aceitar as consequências da democracia e da participação democrática
Por menos que os EUA apreciem as consequências de curto prazo do processo democrático em andamento no Oriente Médio e em outros pontos, é do interesse de todos, no longo prazo, pôr fim às ações norte-americanas deliberadas de boicote e sapa de processos democráticos, como as que se têm visto, com assustadora frequência, em vários pontos do mundo.
[*]Ahmed E Souaiaia leciona na Universidade de Iowa. Seu livro mais recente é Anatomy of Dissent in Islamic Societies,
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