O que está em jogo nos dias que correm?
O governo parece ter entendido, em parte, o que se pode esperar de agora em diante. Falta a compreensão ativa de que boas intenções não geram legitimidade.
por: Saul Leblon
A sustentação de um projeto progressista não pode prescindir do discernimento organizado das forças que dele se beneficiam.
É ilusório achar que uma política progressista gera espontaneamente a organicidade necessária para defende-la dos ataques que, inevitavelmente, virão dos interesses contrariados.
Quando o conflito convoca escolhas difíceis, o espontaneísmo frequentemente é capturado pelo algozes de suas causas.
Tome-se o quadro vivido na desfrutável antessala da Copa do Mundo.
A menos de uma semana do torneio, diferentes organizações e causas – justas, a maioria destas — afluem às ruas dos grandes centros urbanos, paralisando-os.
A dissipação midiática cuida de tudo nivelar. Desde um ‘movimento’ de duas dúzias que paralisa uma avenida; a uma consistente e encorajadora progressão popular, como parece ser o caso das ocupações organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto.
Nessa intencional revogação da ordem de pertinência das coisas, dilui-se o centro de gravidade do que está em jogo. Portanto, do que poderia adicionar à insatisfação difusa um salto efetivo de discernimento político e organizativo.
Toda a dificuldade das forças progressistas hoje reside, em primeiro lugar, em decantar o que seja o seu próprio consenso acerca do que está em jogo. Mas, sobretudo, em fazer dessa resposta o fermento de uma nova correlação de forças que evite a marcha batida da desorganização que organiza a reação conservadora.
Um episódio ilustrativo dos riscos em curso: na greve do metrô de São Paulo, desta 5ª feira, usuários enfurecidos arremeteram contra os portões da estação Itaquera. Uma vez derrubados, marcharam pelos trilhos aos gritos: 'Queremos trabalhar!'
Quando o corporativismo cego gera paradoxos dessa natureza – e essa, repita-se, é apenas a ponta do iceberg - estamos adicionando lenha ao clamor por ordem, cuja retrospectiva dispensa apresentações.
Carta Maior já afirmou algumas vezes neste mesmo espaço que o flanco mais delicado do ciclo de governos iniciado em 2003 foi a ausência de políticas efetivas para ampliar a participação popular nas decisões de Estado.
O atual decreto que institui a Política Nacional de Participação Social é uma tentativa de compensar o tempo perdido.
Recebe, naturalmente, a fuzilaria de quem rejeita dilatar o circuito da democracia para além do perímetro institucional sobre o qual exerce estrita vigilância e no qual detém folgada maioria ideológica (leia a análise de Antonio Lassance; nesta página).
A renúncia aos comitês gestores do Fome Zero (FZ), em 2003, ainda no início do primeiro mandato de Lula, criou a confortável ilusão de que era opcional adicionar ou não uma nova instância participativa à luta pelo desenvolvimento brasileiro.
Como se sabe, quando criado, em janeiro de 2003, o Fome Zero, nome fantasia da política de segurança alimentar brasileira, que envolve agricultura familiar, merenda escolar, transferência de renda etc., incluía uma dimensão participativa.
Os "Comitês Gestores do Fome Zero" formavam a contrapartida de engajamento social do programa.
Eram compostos majoritariamente por representantes das famílias beneficiadas, aglutinadas em núcleos municipais.
A emergência desse ensaio de poder despertou virulenta oposição conservadora.
O cerco ao programa - que apresentava falhas na largada - ameaçava se transformar em uma espécie de terceiro turno contra o PT.
Os comitês, que deveriam cogerir e aperfeiçoar o FZ em parceria com a sociedade local, a prefeitura e o governo federal, foram extintos.
O recuo jogou para futuro incerto a retomada do engajamento indispensável em ações sociais de recorte emancipador.
Esse futuro chegou. Ou pelo menos escancarou a sua presença nos dias que correm.
Não se evoca a Comuna de Paris, como sugerem os editoriais encharcados de perdigotos raivosos.
Mas, sim, agregar um degrau de responsabilidade democrática à cidadania, capacitando-a a se livrar do corporativismo cego, para lidar com as escolhas impostas pelos gargalos históricos do desenvolvimento brasileiro.
Boa parte do mal-estar nos dias que correm reflete a inexistência desses requisitos para ordenar o hiato entre as expectativas legítimas emanadas da mobilidade social recente, e o passo seguinte da vida nacional, represado no dique dos recursos finitos.
Os governos progressistas dos últimos 12 anos vestiram a camisa do poder existente, adequando-se ao torniquete da busca de uma maioria legislativa – sem a qual não se governa.
O novo negociou permanentemente com o velho, dentro das suas regras.
Praticamente, sem estender o braço de ferro às ruas, exceto em períodos eleitorais.
Ainda assim, agregando avanços indiscutíveis com a melhor repartição do fluxo da riqueza corrente – sem tocar nos estoques.
O conservadorismo jamais aceitou pacificamente esse comodato em que os de fora – por mais comedidos – pudessem palpitar como, quanto e onde a riqueza incremental deveria ser alocada.
Se já era assim enquanto a graxa do crescimento lubrificava o atrito, o que esperar agora que ela reduziu sua densidade?
O governo parece ter entendido, em parte, o que se pode esperar de agora em diante.
As propostas de reforma política, regulação da mídia e a política de participação popular sinalizam a consciência de que é urgente subtrair espaços ao engessamento reiterativo.
Falta, porém, mais uma vez, a compreensão ativa de que as boas intenções não geram a sua própria legitimidade.
As elites brasileiras, do alto de seus 380 anos de casa grande e senzala, são acometidas de surtos psicóticos ao menor ensaio de organização autônoma e democrática dos interesses populares.
Estão de faca na boca nesse momento.
Indo até o limite de insuflar as ruas para dinamitar -- pela desordem -- os tímidos passos de reordenação institucional acenados pelo governo.
Talvez não baste, diante dessa rota de colisão, apenas acenos de um novo ordenamento democrático de médio prazo.
Talvez se exija uma agilidade histórica que ultrapasse os ponteiros do velocímetro que mede a pressão ascendente do déficit de representação social brasileiro.
Por exemplo?
Por exemplo, saltando o engessamento burocrático para incorporar desde logo movimentos legítimos, e consistentes, aos círculos do poder que podem influenciar os rumos deste governo, o de suas políticas, bem como o programa do novo mandato que se busca.
Para dizê-lo de forma muito direta.
Se o empresário Jorge Gerdau pode, por seus aludidos predicados administrativos, presidir um comitê de gestão de competitividade, ligado à Casa Civil da Presidência da República, por que o filósofo e líder do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, Guilherme Boulos, não deveria ocupar cargo de igual relevância e influencia, em um comitê de importância equivalente ligado ao programa Minha Casa, Minha Vida?
Por que não?
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