Lôra recicla o lixo de uma elite que não sabe se reciclar
Autor: Fernando Brito
No caderno de “Sustentabilidade” da Folha, a repórter Camila de Liraescreve uma história que raramente interessa à mídia brasileira.
Porque trata de gente que raramente interessa à mídia brasileira: os pobres, muito pobres.
É sobre o que faz e o que pensa Edmar Imaculada Matoso, a Lôra, catadora em São Paulo.
Todos os dias sai de Guaianazes, a 30 km de distância, pega uma carrocinha puxada por ela mesma, e passa seis horas recolhendo materiais recicláveis, no centro e em bairros nobres de São Paulo.
Os que passam de carro se assustam com a “Lôra” e sobem rápido os vidros, nas raras vezes em que estão abertos.
Mas “Lôra” também se assusta com eles.
Porque eles jogam fora comida que, a ela, parece muito boa.
“Lixo de rico é assim mesmo: cheiroso”, diz ela.
E fazem coisas estranhas, bizarras, como jogar fora “carrinhos, bonecos e até helicóptero de controle remoto. Tudo novo”, que foram para os quatro – dos seus doze – filhos que vivem com ela.
Eram brinquedos de meninos e meninas que vão aprender na escola que reciclar é muito bom e até “salva o planeta”.
Mas não vão aprender nada sobre a “Lôra”, que não é reciclável e “estraga o planeta”.
“Lôra” não é gente, é sub-gente, que não é cheirosa como o lixo dali.
Ela é ”um problema”, mesmo que seja uma solução para a imundície produzida pela elite perdulária.
Ou melhor, pela elite que acha que, se o dinheiro é dela, ela faz o que quiser com o dinheiro, até jogar no lixo.
Até porque o lixo some de suas vistas.
Mais ou menos como pensa sobre pessoas como “Lôra” podem também ser atiradas fora e, sobretudo, saírem logo – como o lixo – de suas vistas.
Mas a “Lôra” , ao contrário, não lhes quer mal e torce para que joguem, joguem fora cada vez mais coisas cheirosas.
E que talvez, um dia, se dignem a abaixar os vidros escuros e sombrios através dos quais a vêem, olhar para ela e dizer-lhe, simplesmente:
Obrigado, Lôra.
Comida jogada em bairro nobre de São Paulo impressiona catadora
Camila de Lira
Com uma carroça vazia e muita energia, a mineira Edmar Imaculada Matoso, 43, chega às 17h para mais um dia de trabalho.
Lôra, como é conhecida, vai de Guianazes, na zona leste, onde mora, até o centro de São Paulo diariamente. Lá, ela coleta materiais recicláveis até as 23h.
O percurso, que passa por sete ruas da região, não é tranquilo. Taxistas buzinam com a proximidade do veículo de Lôra. Motoristas em carros de passeio fecham rápido os vidros.
Lôra mora com quatro de seus 12 filhos. A primeira coisa que eles perguntam quando chega em casa é se ela trouxe brinquedos. Uma vez achou um saco cheio de carrinhos, bonecos e até helicóptero de controle remoto. Tudo novo. “Meus filhos me fortalecem em tudo na vida.”
Com o material vendido a um ferro-velho, já chegou a arrecadar R$ 40. Em dias normais, fatura até R$ 15. Ela tem sorte de usar a carroça emprestada de um amigo. Mas os catadores alugam ou compram esses veículos por até R$ 400.Quando anda em Higienópolis, Edmar se indigna com a quantidade de comida boa jogada fora. “Lixo de rico é assim mesmo: cheiroso”, brinca.
Dados do movimento nacional de catadores mostram que, em São Paulo, um carroceiro coleta, em média, 600 kg de material reciclável ao dia. São 15 toneladas por mês.
Ainda de acordo com o movimento, 90% da reciclagem realizada no Brasil está nas mãos desses trabalhadores. Números do Ipea mostram que 400 mil catadores atuam todos os dias no país. Apenas 31,3% são mulheres como Edmar.
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