'A juventude do Afeganistão vai sucumbir ao soft power dos EUA'

De volta do Afeganistão, o documentarista brasileiro Wolgrand Ribeiro fala sobre a situação da juventude afegã e a influência dos EUA sobre ela.

Maurício Thuswohl
Wolgrand Ribeiro

Rio de Janeiro – Prestes a completar 43 anos e há duas décadas radicado em Genebra, na Suíça, o jornalista e documentarista brasileiro Wolgrand Ribeiro tem larga experiência em regiões de conflito, forjada em coberturas e filmagens realizadas em locais como Bósnia, Palestina e Timor Leste, entre outros. De volta do Afeganistão, onde filmou o documentário Kaboul Song, uma tocante história sobre o retorno do cantor popular Ustad Arman a seu país de origem após 25 anos de exílio na Suíça, o brasileiro se diz impressionado com o abandono em que se encontram os afegãos e denuncia que, órfã de iniciativas culturais populares e influenciada pela rápida expansão das redes privadas de televisão no país, a juventude afegã já sucumbe ao soft power emanado da publicidade e dos americanizados programas de tevê.


Ribeiro acompanhou o dia-a-dia de Ustad Arman, de 78 anos, em sua volta ao Afeganistão, onde o cantor foi convidado para ser jurado do programa de tevê Afhgan Star – uma cópia de American Idol, programa de revelação de novos talentos exibido nos Estados Unidos – transmitido pelo canal privado Tolo TV. Em sua terra natal após longo exílio, Ustad, ainda reconhecido e assediado nas ruas pelos afegãos, dividiu seu tempo entre as gravações e as andanças em procura por velhos amigos e lugares que marcaram sua trajetória na hoje arruinada Cabul. Ao também acompanhar alguns jovens aspirantes a astro que participam do programa de tevê, o documentarista brasileiro propõe uma importante reflexão sobre a degradação cultural do Afeganistão, a falta de perspectiva da juventude afegã e a força da presença norte-americana em um país arrasado e carente.

O filme, idealizado e co-realizado pela jornalista suíça Lisbeth Koutchoumoff, foi exibido pela primeira vez durante a edição 2014 do prestigiado festival de documentários Visions du Réel (Visões do Real), que acontece anualmente em Nyon, na Suíça. Após cumprir o calendário de festivais na Europa, será exibido pela tevê suíça. Wolgrand Ribeiro ainda estuda como será o lançamento no Brasil, onde também pretende inscrever o filme em festivais. Nessa entrevista exclusiva, o jornalista e documentarista fala sobre seus próximos projetos e sobre as semelhanças entre o Brasil e o Afeganistão que percebeu durante a viagem.
 

 
Por que filmar no Afeganistão?

O Afeganistão é um país que todo jornalista tem vontade de ir. Em mim, essa vontade sempre existiu, sempre me interessou essa coisa da resistência, do Afeganistão ter resistido contra os ingleses, contra os russos. O Afeganistão sempre foi um país que representou essa resistência. Quando Lisbeth Koutchoumoff me falou sobre a ideia do filme, que é tratar da música do Afeganistão, que eu não conhecia, achei muito interessante a possibilidade de poder mostrar por outro ângulo um país que a gente vê toda semana no noticiário.

O que você viu e te surpreendeu?

Existem várias semelhanças com o Brasil, inclusive o fato de gostarem tanto de música. Foi bem legal me dar conta disso e poder mostrar esse outro lado. Outra coisa que me remeteu ao Brasil, sobretudo à política de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) desenvolvida no Rio de Janeiro, foi essa coisa de ocupar um território – no caso, um país - com a força militar, mas não realizar um verdadeiro trabalho social de promoção da cultura, da educação. A presença dos Estados Unidos no Afeganistão é uma intervenção baseada somente na repressão, sem quase nenhum vestígio da presença do Estado afegão, o que lembra o Rio de Janeiro e as UPPs.

A falta de expectativa é total. Alguns habitantes de Cabul chegaram a me dizer que era melhor antes, com os talibãs no poder, assim como tem gente na Favela da Maré que acha que a situação era menos opressiva quando estavam os traficantes. Também existe no povo do Afeganistão esse sentimento de que o passado com os talibãs era melhor do que com os americanos hoje em dia. Eu me pergunto por que não tentam fazer com que as pessoas do país tomem parte nas decisões políticas.

E o que mais?

Foi também interessante observar o cotidiano das pessoas. Constatar mais uma vez que em qualquer lugar, mesmo em guerra, as pessoas tentam ir à escola, se ver, se divertir. Só quando o conflito está muito deflagrado é que não dá. Tenho certeza de que, se formos hoje à Síria, veremos que a vida continua todo dia por lá, diferentemente da impressão, passada pelo noticiário, de caos e de que nada pode ser feito. Isso sempre me impactou em todas as regiões em conflito que já estive. No Afeganistão, pude ver por um outro ângulo aquilo que habitualmente a gente vê na televisão.

A repressão norte-americana é visível?

Você vê soldados o tempo todo, mas a grande questão é que a dominação se dá também no imaginário das pessoas, na construção cultural. Os afegãos resistiram tanto, passaram por tantas guerras, e hoje em dia estão sendo dominados pela televisão, pelo chamado soft power. Essa percepção me fez muito pensar no início da televisão privada no Brasil e no oligopólio que temos hoje. A população afegã não tem água, não há eletricidade em boa parte da cidade, mas existe um montão de canais de televisão a cabo. Antes de dar televisão para as pessoas, os americanos poderiam pensar em dar alguma coisa mais básica.

Ninguém parece estar no Afeganistão para ajudar o povo, mas sim para fechar mais negócios e aumentar seu leque de dominação econômica e cultural. A televisão privada não está no Afeganistão para fazer o povo afegão evoluir, está lá para ganhar dinheiro. Uma coisa que lembra o que ocorreu há algumas décadas no Brasil é que os donos dos canais de tevê privados afegãos tiveram muita ajuda americana para se estabelecer e até hoje se aproveitam dos trabalhadores afegãos, todos muito mal remunerados e super explorados, para instalar e manter esses canais. O dono da Tolo TV, que produz o programa Afhgan Star, por exemplo, viveu a vida toda na Austrália, assim como muita gente da elite afegã, que cresceu no estrangeiro.

Nenhuma alternativa de comunicação à vista por lá?

No Afeganistão existe uma televisão pública, sucateada após anos de guerra. Por que não investiram nela? Em 2001, quando aconteceu a invasão norte-americana, muita gente voltou ao país, pois havia a ideia de que se iniciava um momento legal. Voltaram muitos profissionais que poderiam estabelecer um bom sistema de comunicação, mais diverso e democrático, só que, com o tempo, houve muita desilusão porque a presença dos EUA, do ponto de vista social, é bem superficial.

Se você ver o público da Tolo TV, todos são muito jovens, com vinte e poucos anos. Imagina daqui a 15 ou 20 anos? Todos vão estar ganhos pela propaganda do modo de vida capitalista bombardeada pelo canal e por seus similares. Após anos de resistência a guerras e bombardeios reais, ao verdadeiro hard power, os afegãos estão agora sucumbindo ao bombardeio da tevê, ao soft power. À essa “ocupação” americana é muito mais complicado resistir.

Fale sobre o lançamento do filme Kaboul Song...
 
Ter lançado o filme no festival Visions du Réel foi legal porque é um dos maiores festivais do mundo, são duas semanas de projeção. Foi bom também o lançamento mundial ter sido na Suíça, onde produzimos o filme. Tivemos uma vitrine muito grande porque o lançamento aconteceu na noite especialmente dedicada à televisão. A exibição teve sala lotada, com 462 pessoas, e depois um concerto do protagonista. Foi o maior barato poder projetar o filme e em seguida ter um show do Ustad. O público aplaudiu de pé, foi super emocionante para todos nós. Acho que o Ustad não esperava, após tantos anos de exílio na Suíça, ter uma sala lotada o aplaudindo de pé.

Como prosseguirá o lançamento do filme? Quando passará na tevê suíça?

Ainda não definimos a data de exibição na tevê. A ideia agora é fazer uma turnê pela Suíça, estamos esperando setembro e a retomada do ano letivo após as férias escolares de verão no país. Em seguida, enviaremos o filme para vários festivais do mundo. A ideia é exibir o filme na tevê após ele ter recebido o reconhecimento dos festivais.

Quando Kaboul Song será lançado no Brasil?

Ainda não tem nada definido, ainda estou em busca de fechar alguns contatos e parcerias para exibir o filme no Brasil. Vou tentar inscrevê-lo para o próximo festival É Tudo Verdade. Também estamos estudando a possibilidade de lançamento no Festival do Rio, o que seria muito legal pra mim, pois eu sou carioca.

Algum projeto em vista sobre o Brasil para passar na tevê suíça?

Alguns temas tem espaço na tevê suíça, mas assuntos como as UPPs ou prostituição infantil já estão batidos. Eu gostaria de fazer um filme sobre a geração dos anos 80 que protagonizou a retomada do movimento estudantil no país, ainda antes do fim da ditadura, e da qual faço parte. Outro tema sobre o qual pretendo produzir é o racismo no Brasil. Os temas ligados a comunidades como as favelas do Rio também me interessam. Tenho um próximo documentário em vista, sobre um personagem conhecido da crônica policial no Brasil, mas não posso dizer mais nada sobre esse projeto por enquanto.

Como define seu próprio estilo?

Eu procuro uma linguagem moderna, gosto de documentários com cara de ficção, movimento de câmera, imagem bonita. Não gosto de filmes com ritmo muito lento, com planos que demoram 20 segundos. O meu lado jornalista está completamente em meus filmes. Eu faço filmes para trazer informações e reflexões às pessoas, e não para satisfazer a mim mesmo. Minha preocupação é que as pessoas gostem e não fiquem entediadas ao ver o meu filme. Outra preocupação é fazer belas imagens, talvez por ter começado como fotógrafo.

Sentiu medo no Afeganistão? Tua experiência anterior em regiões de conflito ajudou?

Teve realizador que recusou o trabalho antes de mim pela falta de qualquer garantia quanto à própria segurança durante a viagem ao Afeganistão. A Lisbeth Koutchoumoff queria um realizador que fosse também jornalista. Quando ela me propôs ir filmar no Afeganistão, me interessei na hora. Quanto à experiência, ela sempre ajuda, e eu gosto de sentir alguma adrenalina. Isso está no sangue, na alma, querer ver como são as coisas, essa curiosidade que todo jornalista tem. Nessas horas não pensamos tanto em segurança, temos experiência para garantir uma segurança mínima.




Créditos da foto: Wolgrand Ribeiro

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