Uma história


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 Autor: Fernando Brito

Os primeiros anos foram numa “cabeça de porco” – nome que todos os cortiços ganharam por conta do maior deles, demolido na virada do século 19 pelo prefeito Pereira Passos.
Ficava na Penha, mas era melhor que o de Botafogo, onde o Rio de Janeiro acolheu, em 1930, o casal pobre José e Inocência, chegados de trem do interior e devidamente “aliviados” de suas malas no trem de segunda classe.
A vida ficou melhor para a menina, aos sete-oito anos, com a mudança para o IAPI de Realengo, casas amplas, geminadas, com um grande terreno para criar galinhas e plantar horta.
Paredes pela metade, completadas por tabiques de madeira, para ficarem mais baratas e talvez porque os barulhos “inconvenientes”  fossem mais raros naqueles tempos de mais recato. As paredes inteiras, de sustentação, eram sem emboço, com a pintura feita diretamente sobre os blocos de concreto.
As crianças já podiam ser mandadas à escola, embora o mais velho não gostasse de “estudo” e a menina reclamasse até o final da vida de usar o “tanque colegial”:  sapatos com ferraduras de metal na ponta e no calcanhar, para que não se desgastassem e durassem até que o aperto fosse demasiado.
A vocação de professora veio ainda pequena, aos 12 anos, porque uma menina pobre não poderia pensar em outra coisa e porque a letra redonda começou a ser treinada nas cópias dos panfletos que tinha de fazer para que meu avô colasse, a caminho do trem da madrugada,  nos postes até a estação ainda mergulhada na noite.
Eram em favor de Yêdo Fiuza, candidato presidencial do Luiz Carlos Prestes recém-liberto, que dividia um paradoxal panteão do “moscouzinho” de Realengo com Getúlio Vargas.
Acho que aprendi com meu avô que os paradoxos têm sempre uma chave que os torna falsos.
Veio a escola normal – agora se entende melhor porque a escola normal era o normal para as mulheres –  e o namoro no trem das professoras, dizem às más línguas que começado ao pé do relógio da Central com um cínico perguntar “que horas são?” de um baixinho – baixinhos já tinham uma lábia terrível nos anos 50 – , o casamento e os filhos, “de carreirinha” como se fazia então, para que os dois crescessem próximos o suficiente para que se entretivessem, fossem amigos e, ainda por cima, aproveitassem a roupa.
Eu e meu irmão viemos juntos, respectivamente, com o Sputnik e com Brasília,  ambos “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.
O casal já era da classe média, já pensava num automóvel – embora o tal automóvel tenha se materializado num Citroen de portas ao contrário e no qual aprendi a fazer uma bomba de gasolina que superaquecia funcionar no “para e anda” com um pano de chão molhado e regado em água fria – e numa casa própria que substituísse o aluguel.
Veio logo um Fusca 58, onde a seta “pulava” da coluna do carro, em lugar de simplesmente piscar e demorou mais a casa no Lins de Vasconcellos, com um muro podre , coberto de coroa de Cristo.
No Fuca 58, ficaram as testemunhas dos problemas conjugais, num compacto (compacto era um disco “single”, como chamam hoje)  entortado pelo sol com o “é proibido proibir” de Caetano e num LP de Chico Buarque, um garoto de belhos olhos, cantando “diz que eu sou subversivo, um elemento ativo, feroz e nocivo ao bem-estar comum”.
Na casa, depois, ficaram o desquite, a volta à faculdade de pedagogia abandonada, como deveria ser, “para casar e ter filhos”, os dois empregos, os “filhos da desquitada” bem criados na vila de subúrbio, embora fossem “má-companhia”, segundo a Dona Josefina, que dedicava seu sentido moral a implicar com a garotada, fofocando de casa em casa sobre quem desencaminhava quem e também a um calvo e simpático motorista de ônibus, com seu plácido bigode branco sobre o qual nos olhava com carinho indulgente.
Os filhos cresceram sob dedicação e sua implicância com o nosso “fracasso”.
Um, o jornalista, em lugar de fazer carreira, foi se meter em política. Recebia cartas do “CCC” ameaçando de morte o “comunista”.
Outro, o zootecnista, foi fabricar e vender roupas em Cabo Frio, porque amava o mar e não conseguia viver no interior.
Reclamava de ambos terem ido viver com mulheres com filhos, perdendo a “liberdade” dos 20 anos, mas adorou ambas as noras e mais ainda às netos que vieram prontos.
E aos que vieram feitos depois, igualmente.
Ontem, coube a um deles dizer a coisa mais importante, em seu último movimento, terra adentro, sem flores, velório ou orações. como ela queria.
Que de que ela deveria nos fazer ser melhores.
Porque é vã a fé sem obras.
E não há boa obra sem boa fundação.
A dela  estava ali , em filhos e netos, presentes ou espalhados por este mundo global.
A de uma mulher fazer um homem aprender a ser mãe, ainda que duro como um pai deve ser.
E agradecer por isso.

                          

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