Um país a viver dentro de Wall Street
DO PÚBLICO-Portugal
Existem valores e princípios que não devem ser negociáveis apenas porque a economia assim o reclama.
Uma das consequências deste período da passagem da troika pelo nosso país foi a criação de um sentimento colectivo de insegurança. Aquilo que há pouco mais de 4 anos era dado como estável e garantido (pensões, salários, emprego, etc.), subitamente deixou de o ser.
Muitas pessoas foram apanhadas de surpresa por esta mudança e muitos ainda vivem perplexos e atordoados com as alterações que tiveram que fazer aos seus projetos de vida. Além disso, existe um despojo de sofrimento colectivo impossível de quantificar, e que infelizmente, por esse motivo, não irá ser justamente valorizado, quando se escrever a história sobre este período difícil do nosso país.
Um dos mecanismos de defesa maturo que o ser humano dispõe é a “antecipação”. Este mecanismo permite prever realisticamente uma situação futura desconfortável, causadora de sofrimento, perigosa ou ameaçadora. Mas para que a antecipação tenha sucesso, é necessário elaborar um plano cuidadoso de respostas ou soluções assentes na realidade. Mas qual realidade?
Nesta crise aconteceram dois grandes problemas: a ilusão da realidade e o carácter aparentemente aleatório do futuro, em que tudo pode ser colocado em causa (trabalho, subsídios, habitação, reformas, etc.). Ou seja, criou-se um sentimento de insegurança em relação ao futuro, em todas as pessoas, estando estas empregadas ou desempregadas. Enquanto o primeiro problema já se encontra resolvido, pelo confronto com a dureza dos fatos, o segundo problema subsiste e merece ser discutido.
Todos aspiramos à segurança, mas nos últimos tempos impôs-se um relativismo estonteante. Tem vindo a crescer a ideia de que não existe coisa alguma estável e permanente, e que todas as coisas estão subjugadas ao tempo e às circunstâncias. Se assim for, como é que se consegue lidar com os problemas normais da nossa vida? Se tudo muda constantemente, como é possível organizar uma reforma, planear adquirir uma habitação própria, programar uma carreira profissional, concretizar o legítimo desejo de viver numa determinada cidade (e até num país), junto dos amigos e da família?
Se tudo pode mudar, não podemos antecipar e prepararmo-nos para a adversidade. Ficámos com a sensação de que Portugal se transformou num país “a viver dentro de Wall Street”, onde tudo depende dos mercados, e nada é tido como garantido. Criou-se, deste modo, a ideia de que perdemos o leme do nosso futuro e que já não somos senhores do nosso destino. Portugal parece condenado a navegar ao sabor dos gráficos dos indicadores económicos, projetados freneticamente nos ecrãs de computador.
Tal como acontece nas relações humanas, um país necessita de estabilidade e confiança, numa base de lealdade. É amplamente conhecido por todos que, nos últimos anos, esse papel foi exercido quer pela família, que amparou o desastre social da miséria provocada pelo enorme desemprego, quer ainda pelo tribunal constitucional, que criou limites às políticas impostas pela troika. Estes limites não devem ser entendidos propriamente como obstáculos, mas como mecanismos positivos que orientam a nossa liberdade e nos dão garantias de estabilidade.
Existem valores e princípios que não devem ser negociáveis apenas porque a economia assim o reclama. O homem tem o direito de conferir um sentido e um significado à sua existência, sem receios ou condicionalismos. As nossas vidas tornar-se-iam insuportáveis se prescindíssemos de planear, sem medo, o nosso futuro. Aliás, todos nós estamos muito interessados no futuro, pois como disse Woody Allen: “Interessa-me o futuro porque é o sítio onde vou passar o resto da minha vida”.
Médico Psiquiatra
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