Para que, afinal, serve o futebol?
Esperar hospitais e postos de saúde de uma copa de futebol é o mesmo que esperar democracia e respeito às liberdades da mídia oligárquica e das igrejas.
Katarina Peixoto
Sou uma viciada em programa eleitoral de televisão. Lembro de programas eleitorais quando não sabia o que era, direito. Nos últimos dias, quando os Colombos descobridores da violência policial e das mazelas brasileiras voltaram a “hashtaguear”, mais do que a organizar, o “não vai ter copa”, fui assaltada pela memória de dois momentos do primeiro programa eleitoral do segundo turno de 2010. E resolvi propor um experimento retórico, para tentar entender o que pode querer dizer a militância eleitoral, na tentativa de surfe contra um acontecimento pactuado, escolhido e, por fim, votado, há 4 anos, na eleição presidencial.
O primeiro programa eleitoral do segundo turno foi aberto com a candidata Dilma, vestida de branco, agradecendo os votos do primeiro turno, inclusive a deus. A cena era horrível para qualquer mulher com compromisso republicano e democrático na vida. Ela foi coagida, pelo obscurantismo e a má-fé das campanhas da oposição, sobretudo pelo sopão reacionário e oligóide do pentecostalismo pseudo-ecológico, a se posicionar em relação ao útero e ao desejo de ser mãe de todas as mulheres brasileiras. Poucas vezes na vida me senti tão vilipendiada, agredida, violentada, como naquele momento. Enquanto parte da esquerda se apavorava com a onda obscurantista e se ligava nas pesquisas, senti indignação. Até quando a esquerda brasileira seguirá achando inofensiva a religiosidade travestida de popular e democrática?
Por que essa cultura moralizadora, de natureza messiânica, segue deseducando e criando esses monstrengos? Até quando poucos levarão a sério o fato de a esquerda ter, no Brasil, chegado tão longe na redução de desigualdades sociais, ao passo que segue conivente com a barbárie cometida contra as mulheres, os gays e todos os dissidentes sexuais que não se enquadram no padrão religioso, igrejeiro, tomado como inofensivo na época em que havia ditadura? A Dilma ali, de branco, falando em deus e coagida a se posicionar sobre o meu útero foi uma das imagens mais terríveis de que se pode fazer uma derrota política (e estávamos numa vitória eleitoral e política iminente). E do quanto a vida é dura, numa democracia. Do quanto o jogo é jogado em todos os momentos, em cada pedaço de bola disputável.
O segundo momento, do mesmo programa eleitoral, era uma imagem aérea do Cristo Redentor. O off era o anúncio de que o então presidente Lula tinha trazido a Copa e as Olimpíadas para o país. Propaganda eleitoral, isso, a mensagem era: votem na Dilma, entre outras coisas, porque ela é uma das responsáveis pela escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Nada nessa propaganda e nada na iminência da Copa do Mundo contradiz o que foi prometido na campanha. Para o bem ou para o mal, a coerência entre o governo Dilma e aquilo anunciado na propaganda eleitoral, de 2010, é plena. Nem houve propaganda enganosa, nem promessa não cumprida.
De onde vem a questão “copa para quem?”, então? Resolvi levar a sério as cobranças e ataques à Copa no Brasil e me encontrei num contexto semântico calamitoso. O que é que a Copa do Mundo está devendo ao Brasil? Fiquei pensando se a Copa do Mundo seria um sistema de financiamento público e estatal do investimento em agricultura orgânica, nas pequenas e médias propriedades. Isso seria absurdo? Por que? E se a FIFA, na verdade, quiser dizer Federação Internacionalista da Fraternidade Anarquista, seria o caso acusá-la de fraude por estar exigindo regras que atentam contra a soberania brasileira, como a prerrogativa da venda exclusiva de certa marca de cerveja? FIFA, Copa do Mundo, “Arenas”. Pronto, o problema são as arenas, as remoções, os despejos, as injustiças, os gastos públicos com o “pão e circo”. Sou contra tudo isso. Para que, afinal, servem os estádios de futebol? Alguém por acaso acompanha o futebol, neste país? Em que mundo vivem as pessoas que esperam um estádio ser construído sem impacto ambiental e social? Ah, a denúncia de uma expectativa hipócrita e oportunista é cínica? As vilas despejadas, os operários mortos, as famílias desfeitas, as casas destruídas, por conta da Copa, são, mesmo, responsabilidade da Dilma? Afinal, a Copa do Mundo é um movimento de ocupação das polícias militares, dos governos estaduais e municipais do Brasil?
Tem algo mais ridículo e monstruoso do que exigir do governo federal um SUS “padrão FIFA”. Não é lá muita coisa: é fazê-lo sem se comprometer em entender ou em lutar minimamente contra o jorro de dinheiro para o mercado financeiro que se esvai em taxação de juros, e seguir achando o tema do financiamento do estado algo irrelevante. Esta é uma maneira realmente ridícula de exigir uma rede de saúde a uma federação internacional de futebol. Há outras, claro: que tal uma legislação igualitária, para adoção por casais gays, e o casamento gay, e o direito ao aborto legal? Pode-se exigir isso da FIFA, também?
A indigência política da direita é a indigência política da oligarquia midiática, que age contra a lei, no Brasil. A indigência política da esquerda é seguir acreditando na confusão, no obscurantismo e na guerra ideológica promovida por quem finge ou acredita (os ingênuos e moralóides de todas as cores) que está realmente esperando que uma Copa do Mundo poderia servir para melhorar as condições de habitação, educação, meio ambiente e politização do Brasil. Não é para isso que serve um campeonato mundial de futebol, qualquer criança que faz um álbum de figurinhas sabe, mas essa horda de descobridores da América sai a vociferar truísmos incapazes de convencer um guri que disputa grêmio estudantil. Está aí o seu fracasso. Se o dinheiro que circula ou não nos grandes eventos entrará no país para fins de investimento nos programas que significam mais democracia e qualidade de vida, este é o tema central sobre Copa do Mundo e Olimpíadas. É por isso, e por nada menos, que esses eventos foram trazidos para o Brasil: acreditou-se e acredita-se que esses acontecimentos mobilizam, dinamizam, viabilizam, investimentos, produção, distribuição, de riqueza e de conhecimentos (vai sem dizer que nada disso cai sob o domínio moral).
Quem votou em 2010 pode ter votado, é claro, por uma Copa do Mundo com um Programa de Transição a tiracolo. Cada qual com seus limites e contradições, como diz o filósofo. Perguntar, agora, para quem é a Copa, com o propósito de denunciar que a Copa do Mundo é a Copa do Mundo, é como esperar que na eleição presidencial alguém defenda o direito ao aborto legal, ao casamento gay, à adoção por casais gays seriamente, isto é, com chances de vencer, mais do que de ganhar as consciências. Com um agravante: estas últimas bandeiras, ao contrário da pergunta tautológica e por isso sem sentido político algum, do “copa para quem”, são bandeiras políticas, democráticas e civilizatórias.
A eleição promete ser cheia dessa má-fé retórica, dessa indigência performativa e, portanto, de irracionalidade. Resta saber se o fracasso político dessa babaquice oportunista e politicamente indigente vai seguir com essa aura moralista, a atacar os que estão na luta por toda e qualquer bola realmente dividida.
Qualquer professor de quinta série ensina a seus alunos o que foi a política do pão e circo. Esperar hospitais e postos de saúde de um campeonato de futebol é o mesmo que esperar democracia e respeito às liberdades da mídia oligárquica, das igrejas e dos adoradores de axé music. Tem coisa mais ridícula do que ficar criticando música e vídeo de abertura da copa do mundo, do que ficar cobrando hospitais padrão FIFA (só imaginar isso causa arrepios! Quem, seriamente, poderia querer uma monstruosidade dessas?), do que perguntar, com o peito cheio da certeza delirante de estar ao lado do bem e do verdadeiro, “copa para quem?”. No momento, é difícil lembrar. Talvez seja o jingle de Eymael, o nosso democrata cristão de estimação, sei lá. Para que, afinal, serve o futebol, não é mesmo? Vai ver serve para democratizar as bacias hidrográficas. Não quer pão e circo? Ótimo. Que tal começar a querer, ao menos sabendo que está querendo, sair do armário moralizador e entrar no jogo?
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