O determinismo biológico e os interesses do capital
Existem causas naturais para diferenças e problemas sociais? Um complexo (bio)industrial financeirizado ainda tenta provar que sim.
Leandro Modolo
O texto de Pankaj Mehta1,
“O ressurgimento do determinismo biológico na era neoliberal”,
publicado na Carta Maior (re)suscita um debate urgente e
imprescindível para campo da esquerda. De Gobineau e sua teoria eugênica
à Spencer e as corridas coloniais, de Charles Davenport e Harry
Laughlin e as políticas de esterilização estadunidense à Eugen Fischer e
Alfred Ploetz e a Lei de Proteção à Saúde Hereditária do Povo Alemão,
ao menos a história ocidental moderna está recheada de cientistas que
advogaram causas naturais para diferenças e problemas sociais. Hoje
talvez estejamos assistindo, como diz Mehta “a última onda de
determinismo biológico”, que por sinal, “é uma continuação dessa longa
tradição, mas com diferenças significativas em relação aos enfoques do
passado.” Neste texto que o leitor tem em tela, e que terá ainda mais
uma parte publicada, traremos uma breve aproximação ao que acreditamos
ser a grande diferença social significativa dessa longa tradição determinista: o processo de constituição a que assistimos não diz respeito apenas a um campo científico
e seus atores correspondentes, mas a um complexo (bio)industrial
financeirizado capaz de sustentar e reproduzir teorias, técnicas e
tecnologias deterministas com elevadas repercussões sociais e políticas
para a humanidade do séc. XXI.
A 'ciência pós-acadêmica' e as biotecnologias
Em dezembro de 2000, o cientista John Craig Venter apareceu na capa da revista estadunidense Time vestindo metade um elegante terno preto e na outra um tradicional jaleco branco. Considerado por muitos o “cientista do ano”, Venter liderou uma equipe de pesquisadores que conseguiu desafiar o consórcio multilateral Projeto Genoma Humano, composto por centenas de cientistas dos mais diversos países – dentre os principais destacaram-se a Inglaterra, França, Alemanha, Canadá, Japão e, mais do que todos, os EUA.
Em pouco menos de três anos, a equipe de Venter conseguiu os objetivos que o consórcio PGH acreditava alcançar apenas em uma década: o mapeamento genômico completo do Homo sapiens. Feito que sem dúvida dispensa comentários quanto aos ganhos para o desenvolvimento científico da humanidade.
Esse evento, porém, é visto também por muitos como o marco de uma nova era para a Ciência – e, não raro, como veremos, com sintomáticas consequências para a sociedade. Ele sinaliza uma ruptura tecnocientífica que, para John Ziman, físico e epistemólogo, por exemplo, podemos chamar de um novo terreno de produção científica, a denominada “ciência pós-acadêmica”.
De fato, embora não tenha sido Venter, e nem o PGH, a dar o ponta pé inicial à emergência da ciência “pós-acadêmica”, sem dúvida alguma podemos crer que este evento demarcou/sintetizou mundialmente uma paradigmática transformação na maneira com que a ciência passou a ser organizada, gerida e executada. Sem nos alongarmos nesse ponto, podemos resumir dizendo.
Durante grande parte do século XX, as instituições de pesquisas públicas e os laboratórios industriais operavam de forma relativamente independente, desenvolvendo suas próprias práticas e modos de comportamento. Mas, a chamada tecnociência contemporânea ultrapassou o patamar de integração/intercâmbio com os governos e com o mercado da época das Revoluções Industriais e mesmo da Guerra Fria. A ciência “pós-acadêmica” nasceu, segundo Ziman, da fusão, intensiva e extensiva, justamente das normas e práticas dos campos público e privado, acadêmico e empresarial.
A partir dos anos 1980 as ligações entre as instituições científicas e o mundo empresarial, com suas opções econômicas e políticas, tornaram-se praticamente fluxos constantes. Consequentemente, ao longo das últimas décadas, assistimos a reestruturações nas mais diversas dimensões institucionais. Não apenas a produção de conhecimento passou a envolver diretamente um número crescente de atores não-acadêmicos e não-cientistas; mas, também, para não ficarmos apenas com Ziman, podemos dizer que nunca antes a produção, divulgação e o ethos científico estiveram tão subsumidos àquilo que I. Mészáros chamou de os imperativos do valor de troca auto-expansivo. O resultado tem sido uma tendência sistemática de financiar e agenciar as investigações científicas segundo o critério da antecipação dos resultados econômicos.
Estamos assentados sobre a consolidação de um “novo modo de produção do conhecimento científico”. Os conhecimentos e saberes produzidos tornaram-se efetivamente mercadorias, propriedade privadas – e secretas. As trocas de informações e de material entre os pesquisadores, antes baseadas na confiança e reciprocidade dos mesmos, passaram a ser objetos de acordos institucionais mediados especialmente por businessmans, interessados em otimizar a performance de uma empresa ou instituição – com, por exemplo, a exploração ulterior dos direitos de propriedade. Os objetos de pesquisas tornaram-se mais focalizados em problemas técnicos locais do que na compreensão geral/totalizante de determinados problemas e questões. Os ethos científico passou aos desígnios de autoridades empresariais e sob os imperativos que ela acompanha, como produtividade, exequibilidade, sigilo, competitividade etc. Além disso, os cientistas são contratados/requisitados como especialistas, consultores, problem-solvers, etc. e suas pesquisas passaram a ser commissioned para alcançar objetivos práticos, em função das exigências dos financiadores. Hoje, definitivamente, a ciência é feita de fatores de impacto, de patentes e copyrights, de contratos de pesquisas temporários, de redes internacionais que compreendem empreendimentos interdisciplinares com empresas transnacionais, governos locais, organismos multilaterais etc.
A respeito dessas alterações na produção científica, disse acertadamente o geneticista de Havard, Richard Lewontin2, quando se referiu ao campo das Life Sciences: “Como consequência destas possibilidades, os biologistas moleculares estão se tornando empreendedores. Muitos fundaram empresas financiadas por capital de risco. Alguns ficaram ricos quando suas ações foram oferecidas na bolsa de valores e subitamente passaram a ser portadores de um monte de papéis valiosos. Outros são portadores de grandes quantidades de ações de indústrias farmacêuticas internacionais que compraram as firmas de fundo de quintal dos biologistas e adquiriram seus conhecimentos por uma bagatela.”(p.64)
A 'ciência pós-acadêmica' e as biotecnologias
Em dezembro de 2000, o cientista John Craig Venter apareceu na capa da revista estadunidense Time vestindo metade um elegante terno preto e na outra um tradicional jaleco branco. Considerado por muitos o “cientista do ano”, Venter liderou uma equipe de pesquisadores que conseguiu desafiar o consórcio multilateral Projeto Genoma Humano, composto por centenas de cientistas dos mais diversos países – dentre os principais destacaram-se a Inglaterra, França, Alemanha, Canadá, Japão e, mais do que todos, os EUA.
Em pouco menos de três anos, a equipe de Venter conseguiu os objetivos que o consórcio PGH acreditava alcançar apenas em uma década: o mapeamento genômico completo do Homo sapiens. Feito que sem dúvida dispensa comentários quanto aos ganhos para o desenvolvimento científico da humanidade.
Esse evento, porém, é visto também por muitos como o marco de uma nova era para a Ciência – e, não raro, como veremos, com sintomáticas consequências para a sociedade. Ele sinaliza uma ruptura tecnocientífica que, para John Ziman, físico e epistemólogo, por exemplo, podemos chamar de um novo terreno de produção científica, a denominada “ciência pós-acadêmica”.
De fato, embora não tenha sido Venter, e nem o PGH, a dar o ponta pé inicial à emergência da ciência “pós-acadêmica”, sem dúvida alguma podemos crer que este evento demarcou/sintetizou mundialmente uma paradigmática transformação na maneira com que a ciência passou a ser organizada, gerida e executada. Sem nos alongarmos nesse ponto, podemos resumir dizendo.
Durante grande parte do século XX, as instituições de pesquisas públicas e os laboratórios industriais operavam de forma relativamente independente, desenvolvendo suas próprias práticas e modos de comportamento. Mas, a chamada tecnociência contemporânea ultrapassou o patamar de integração/intercâmbio com os governos e com o mercado da época das Revoluções Industriais e mesmo da Guerra Fria. A ciência “pós-acadêmica” nasceu, segundo Ziman, da fusão, intensiva e extensiva, justamente das normas e práticas dos campos público e privado, acadêmico e empresarial.
A partir dos anos 1980 as ligações entre as instituições científicas e o mundo empresarial, com suas opções econômicas e políticas, tornaram-se praticamente fluxos constantes. Consequentemente, ao longo das últimas décadas, assistimos a reestruturações nas mais diversas dimensões institucionais. Não apenas a produção de conhecimento passou a envolver diretamente um número crescente de atores não-acadêmicos e não-cientistas; mas, também, para não ficarmos apenas com Ziman, podemos dizer que nunca antes a produção, divulgação e o ethos científico estiveram tão subsumidos àquilo que I. Mészáros chamou de os imperativos do valor de troca auto-expansivo. O resultado tem sido uma tendência sistemática de financiar e agenciar as investigações científicas segundo o critério da antecipação dos resultados econômicos.
Estamos assentados sobre a consolidação de um “novo modo de produção do conhecimento científico”. Os conhecimentos e saberes produzidos tornaram-se efetivamente mercadorias, propriedade privadas – e secretas. As trocas de informações e de material entre os pesquisadores, antes baseadas na confiança e reciprocidade dos mesmos, passaram a ser objetos de acordos institucionais mediados especialmente por businessmans, interessados em otimizar a performance de uma empresa ou instituição – com, por exemplo, a exploração ulterior dos direitos de propriedade. Os objetos de pesquisas tornaram-se mais focalizados em problemas técnicos locais do que na compreensão geral/totalizante de determinados problemas e questões. Os ethos científico passou aos desígnios de autoridades empresariais e sob os imperativos que ela acompanha, como produtividade, exequibilidade, sigilo, competitividade etc. Além disso, os cientistas são contratados/requisitados como especialistas, consultores, problem-solvers, etc. e suas pesquisas passaram a ser commissioned para alcançar objetivos práticos, em função das exigências dos financiadores. Hoje, definitivamente, a ciência é feita de fatores de impacto, de patentes e copyrights, de contratos de pesquisas temporários, de redes internacionais que compreendem empreendimentos interdisciplinares com empresas transnacionais, governos locais, organismos multilaterais etc.
A respeito dessas alterações na produção científica, disse acertadamente o geneticista de Havard, Richard Lewontin2, quando se referiu ao campo das Life Sciences: “Como consequência destas possibilidades, os biologistas moleculares estão se tornando empreendedores. Muitos fundaram empresas financiadas por capital de risco. Alguns ficaram ricos quando suas ações foram oferecidas na bolsa de valores e subitamente passaram a ser portadores de um monte de papéis valiosos. Outros são portadores de grandes quantidades de ações de indústrias farmacêuticas internacionais que compraram as firmas de fundo de quintal dos biologistas e adquiriram seus conhecimentos por uma bagatela.”(p.64)
Voltando a Venter, na história do PGH, o cientista de preto e branco é um dos personagens que abandonaram o consórcio antes do fim. Sua intenções: liderar um empreendimento com os mesmos objetivos, porém com a sua empresa Celera Genomics. Se o lado branco do jaleco de Venter representava o cientista líder do mapeamento genômico, seu aprumado terno preto representava um grande homem de negócios. Um manager que não visa apenas captar recursos dos setores empresariais para o desenvolvimento de suas pesquisas em Universidades públicas, mas antes que é ele mesmo um businessman – proprietário, acionista e investidor de uma grande empresa na área de sua atuação científica. No fim, em junho de 2000, o grande feito do mapeamento do genoma humano foi atribuído a ambos, ao consórcio e a Celera – que por sinal teve seu capital multiplicado em algumas cifras de bilhões de dólares
Concordando com caso de Venter e do PGH como marco sinalizador de um novo modo de organização e execução da ciência, razões também não faltam para crermos que o campo das ciências da vida como um todo – biologia, medicina, engenharia genética, biotecnologia, neurociências etc. – seja um lócus privilegiado da chamada “ciência pós-acadêmica”. Apenas para citarmos mais um exemplo onde os setores empresariais de pesquisas definitivamente se fundiram aos setores públicos e os cientistas passaram dividir seu tempo entre os laboratórios e as bolsas de valores, lembremos o caso de James Watson.
Prêmio Nobel, ao lado do biólogo inglês Francis H. C. Crick pela descoberta da estrutura de espiral dupla do DNA, em 1953, e também um dos pesquisadores chave do PGH, James Watson, em 1991, foi um dos protagonistas de uma trama envolvendo o NIH (National Institutes of Health) e o PGH que até hoje guarda controvérsias. Um modo possível de entender toda a história é a ocorrência de um conflito de interesses. De um lado, o geneticista/biofísico norte-americano e também acionista de empresas privadas de biotecnologia, Watson, um defensor da iniciativa privada no desenvolvimento de pesquisas de engenharia genética e, também, do patenteamento privado dos produtos concebidos em tais pesquisas. Por outro lado, o NIH, cujo diretor na época era Bernardine Healy, um defensor do patenteamento público dos produtos do PGH como forma de proteção dos fundos públicos utilizados frente aos investidores privados, sobretudo frente aos capitais estrangeiros. Resultado: em 1992, Watson demite-se do PGH alegando que estava muito sobrecarregado e que as medidas tomadas por Healy, “pura demência”3, iriam atrasar as livres iniciativas de aquisições de informações das sequencias genéticas.
Novamente certeiro, em 2000, Lewontin destacou: “Estes projetos [o Projeto Genoma Humano nos Estados Unidos e seu análogo internacional, da Human Genome Organization] são, na verdade, organizações voltadas mais para atividades financeiras e administrativas do que para projetos de pesquisas. Foram criados nos últimos cinco anos em resposta a um enérgico esforço lobista de cientistas com Walter Gilbert, James Watson, Charles Cantor e Leroy Hood, objetivando captar altíssimas somas de fundos públicos e dirigindo o fluxo desses fundos para um imenso programa de pesquisa cooperativa.” (LEWONTIN, p.55)4
Mas o que tudo isso tem a ver efetivamente com o que Pankaj Mehta de forma precisa chamou de “ressurgimento do determinismo biológico e de seu detestável primo, o darwinismo social”? Tais cientistas seriam os Spencers, Gobineaus, Mengueles … do século XXI ? E o PGH, exemplo privilegiado de um novo modo de produção científica, seria um consórcio que semelhante à antiga Sociedade Americana de Eugenia ou aos Institutos Kaiser Wilhelm da Alemanha nazista?
Como bem demonstrou Mehta, há certamente na atual biologia molecular – especialmente a genética – elementos de “determinismos biológicos” capazes de sustentarem o renascimento do darwinismo social, agora em tempos neoliberais. Ainda mais se dermos atenção para a controversa declaração de James Watson feita ao The Sunday Times: “Toda a nossa política social está baseada no facto da inteligência deles [dos africanos] ser a mesma que a nossa. Mas todas as experiências dizem que não é bem assim (...). Quem tem que lidar com empregados negros sabe que isto não é verdade”5. Ou ainda, tomarmos conta que Watson presidiu durante décadas o laboratório Cold Spring Harbor Laboratory que, como bem lembrou Pankaj Mehta, é uma antiga organização fundada para fins eugênicos.
Todavia, esses elementos não nos fazem crer num repeteco histórico que reavivaria práticas sistemáticas de extermínios étnicos capitaneados por ideologias e estados totalitários, como a Alemanha do Führer. Ainda assim, em nosso entendimento, é preciso a máxima atenção para uma plataforma nova na qual pode estar se sustentando o ressurgimento do determinismo biológico e, possivelmente, o “seu detestável primo, o darwinismo social”. E é justamente dessa nova plataforma que trataremos na segunda parte.
1Cientista e professor da Universidade de Boston.
2LEWONTIN, R. O sonho do Genoma Humano. In: Rev. Adusp, n25. Abril de 2002.
3 LEWONTIN, R. O sonho do Genoma Humano. In: Rev. Adusp, n25. Abril de 2002.
4 Idem.
5 Essa declaração resultou em longo debate envolvendo a o jornal e o cientista, para saber um pouco mais a respeito: http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/genetica/declaracoes-racistas-de-watson-chocam-cientistas e http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=24151&op=all
Créditos da foto: arstechnica.com
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