O cartel planeja a sociedade


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A Alston precisou de 12 dias apenas para emplacar uma novidade que o planejamento estadual tucano não conseguiu prever em anos.

por: Saul Leblon 


A Alston,  incluída nas denúncias  da engrenagem que há 20 anos lesa as licitações do metrô de São Paulo,  avocou-se em 2005 a prerrogativa de alterar o traçado de uma linha do sistema e incluir uma nova estação no trajeto.

A notícia, embora tenha merecido um editorial da Folha,  não chegou a sensibilizar os colunistas da indignação seletiva.

Falta de tempo, talvez.


A contagem regressiva para a Copa --quando tudo deve dar errado, ou pelo menos nada pode transpirar acerto, exige foco no repertório e na afinação  do jogral.

As atenções assim monopolizadas explicam, ademais,  que a Folha tenha noticiado e, rapidamente, abduzido da primeira página mais essa evidência gritante do desembaraço que rege as relações entre multinacionais, cartéis e o governo de São Paulo.

Há detalhes sugestivos do quão  profunda é a ingerência do interesse privado na administração da coisa pública sob responsabilidade do PSDB.

A múltinacional francesa  precisou de 12 dias apenas para emplacar a novidade que  o planejamento estadual tucano não conseguiu prever em anos.

 Adicionalmente, incluiu no pacote medidas  para lipoaspirar  o mobiliário das  estações, sem corte correspondente no seu preço de fornecimento, agindo, portanto, para vitaminar o próprio lucro.

É mais uma informação de como se define o investimento na mesa de decisões do tucanato paulista, que levou a maior e mais rica metrópole do país  às portas do racionamento de água por falta de planejamento.

Mas não só isso.
Estamos diante de algo maior. Uma sugestiva ilustração doslimites  que cercam o diferencial acenado pela plataforma conservadora para a disputa presidencial de outubro.

Qual seja, a promessa de  destravar as amarras de um novo ciclo de crescimento, fazendo do país um barco complacente aos ventos dos livres mercados. 

Vale dizer, da lógica das Alstons, Siemens e assemelhados.

É essa rosa dos ventos  que faz a Bolsa subir quando enquetes amigáveis alardeiam a escalada dos candidatos conservadores nas intenções de voto.

A amostra longamente maturada nas gestões Covas, Serra e Alckmin em São Paulo não evidencia qualquer  identidade entre esse entusiasmo e o interesse da população.

Ademais de lesar os cofres públicos, a expansão da rede metroviária da capital avançou nesses vinte anos  a passo de tartaruga, somando apenas 74 km de trilhos: um terço  do realizado pelo sistema  mexicano no mesmo período.

Tivesse pernas, o colunismo da indignação seletiva poderia se propor essa reflexão:

‘Quanto do inferno em que se transformou o trânsito paulistano poderia ser evitado se vigorasse outra lógica, que não o preguiçoso intercurso entre a esperteza das grandes corporações e a passividade do poder público estadual?

Quem sabe até  estende-la um pouco além.

Ou será que a experiência de São Paulo não nos coloca diante do custo oneroso de um  ‘intervencionismo' às avessas?

Aquele em que o oligopólio  planeja  a sociedade e submete o Estado?

Por certo, o  discernimento do eleitor, alvejado pela suposta  causalidade entre o ‘intervencionismo da Dilma’ e a sofrível evolução da infraestrutura brasileira, ganharia elementos adicionais para decisão em outubro.

Não se trata, justiça seja feita, de uma jabuticaba tucana.

A verdade é que a principal bandeira do PSDB –ou de Campos, tanto faz, colide com o assalto estrutural da escala capitalista em todo o globo,  que reduz  a agenda dos livres mercados a uma marca de fantasia desprovida de chão histórico para ficar de pé.

Há um indicador que mede esse solapamento do sonho liberal: a ‘razão de concentração de mercados’.

Ele indica o quanto um setor da economia é dominado pelos seus quatro maiores atores corporativos.

Como já foi dito neste espaço, hoje essa razão de mercado se tornou infecciosa.

Os oligopólios açambarcaram desde a produção de cerveja a de sucrilhos,  de lâmpadas a aviões, de vagões de metrô  a taxas de juros.

O cartel de bancos que manipulou a taxa básica de Londres, a Libor, durante anos, com implicações na estrutura de custos de todas as praças do planeta,  mostra o quanto o mito da livre iniciativa tem de propaganda enganosa.

O colapso de 2008  aconteceu não porque os banqueiros sejam demônios adornados de gravatas de seda.

Mas porque a lógica segundo a qual a exacerbação dos interesses corporativos leva  ‘à  harmonia eficiente do sistema' enfrenta  colisões apreciáveis  com a realidade do capitalismo em nosso tempo.

A ação dos oligopólios no metrô tucano mostra isso em ponto pequeno.

O livro de Thomaz Piketty,  ‘O Capital no Século XXI’, escancara os desdobramentos dessa lógica em grande escala.

A espiral da desigualdade, ensina,  é a doença intrínseca ao ambiente econômico que renuncia  à repressão estatal contra  a acumulação rentista.

Incorporar as lições de Piketty e da Alston ao  debate eleitoral de 2014 seria fatal ao discurso conservador. 

Mas substituir  a sua lógica por outra  envolve requisitos à construção de uma nova hegemonia, tampouco negligenciável em sua complexidade política.

Inclua-se aí  a repactuação de metas, novas ferramentas democráticas de participação e a reordenação do modelo de financiamento da economia, com a indução do excedente econômico –hoje apropriado pelo cassino rentista, por exemplo—para o investimento.

Que nenhuma mesa tenha  reunido até agora manifestantes de protestos e lideranças do governo e do PT em torno dessa encruzilhada dá a dimensão da enorme distancia a vencer.

Sem afrontá-la na prática persistirá  a lógica que terceiriza estações do metrô, e o destino da sociedade, ao planejamento insaciável dos oligopólios.

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