Globo reage à crise de audiência e credibilidade com desespero metalinguístico

 

Por Wilson Roberto Vieira Ferreira
  
Sai a estética futurista de Hans Donner, entra os passos do funk e um visual menos high tech onde até a icônica zebrinha dos anos 1970 que dava os resultados do futebol parece renascer com nova roupagem. E tudo isso com muita auto-referência e metalinguagem. Essa é a repaginada do programa dominical “Fantástico” e dos telejornais da emissora que parecem sentir o golpe da perda de audiência e credibilidade. Uma simulação de reunião de pauta com telespectadores dando palpites sobre temas pré-estabelecidos no “Fantástico” é o desespero metalinguístico de criar uma percepção de transparência e credibilidade de um jornalismo que tenta se equilibrar entre o papel de oposição política assumido pela emissora e a necessidade de aparentar objetividade noticiosa. A transformação da estética Hans Donner na identidade visual da emissora parece apontar para o sintoma da sua perda de relevância e o fim de uma utopia modernista que a TV Globo representou durante da ditadura militar e não consegue mais sustentar diante do novo cenário. E a resposta da emissora é autofágica.


Os tempos estão mudando e a TV Globo já não é mais a mesma. As audiências vêm despencando há muito tempo numa irresistível curva descendente para uma emissora que já chegou a 100% de audiência com a novela Selva de Pedra em 1972 e o Jornal Nacional dando 80% nos anos 1980. Bem diferentes são os tempos atuais: o Jornal Nacional desce aos 17%, a estreia do Novo Fantástico no último domingo registrou média de 16,5%, Silvio Santos supera os números de audiência do reality show musical SuperStar e assim por diante.

Paradoxalmente, o faturamento da emissora é mantido em patamares elevados. Para os analistas, graças ao impacto no mercado publicitário do famoso “incentivo”chamado BV (Bonificação por Volume) – comissões repassadas da TV Globo para as agências de publicidade que variam de acordo com o volume de propaganda negociado entre elas. Seria o principal mecanismo que perpetuaria o monopólio midiático da emissora.


Mas deter poder financeiro, monopólio midiático e influência política principalmente quando se transformou no principal partido de oposição ao atual governo pode não ser o suficiente a médio prazo: sabe que os telespectadores estão cada vez mais não só virando as costas para ela como também cresce na opinião pública a percepção de que a Globo é uma emissora cujos conteúdos estão perdendo a credibilidade, devendo ser colocados em constante suspeita.

Fim da estética Hans Donner?


A estreia do chamado “Novo Fantástico”, assim como a repaginada visual e tecnológica que todos os telejornais da emissora estão sofrendo, apontam para esse temor de uma emissora que vê mudar rapidamente o cenário tecnológico (Internet e redes sociais), cultural (a chamada nova classe média e os novos hábitos do consumo representados, por exemplo, pelo “funk ostentação”) e político (a incapacidade da oposição criar um projeto político, deixando para a TV Globo o papel de oposição ao Governo Federal na base da linha editorial “esse País é uma merda!”).

É sintomático nessa repaginada o visível abandono da estética space opera do artista digital austríaco Hans Donner que por décadas conferiu a identidade visual da Globo valendo-lhe o apelido de “Vênus platinada”.

Uma forçada "reunião de pauta" para simular
transparência e credibilidade jornalística
O que vimos nesse último domingo é o Fantástico tentando ser menos high tech e adotando um visual, por assim dizer, mais “orgânico” e menos metálico e artificial: assoalho do cenário que simula ser em tábuas de madeira, cenário instalado no meio de uma redação jornalística com pequenas plateias onde se mesclam celebridades globais com anônimos ao lado de telões, computadores e equipamentos discretamente posicionados para simular uma integração dos temas e matérias à comunidade por meio de redes sociais. Isso sem falar na conversa do apresentador Tadeu Schmidt sobre a rodada de futebol com dois bonecos de pano, revivendo uma estética pré-Hans Donner da icônica zebrinha que dava os resultados da rodada dos campeonatos.

Mas o principal sintoma de como a TV Globo acusa o mal estar diante da sua crise de credibilidade: o Fantástico simula uma reunião de pauta como fio condutor do programa. Novamente anônimos mesclados com celebridades globais dando palpites sobre temas pré-estabelecidos. Para quem não conhece o jargão jornalístico, as chamadas reuniões de pauta são reuniões onde editores e sub-editores se encontram para estabelecer a pauta de temas da edição do dia que orientará os repórteres ao descrever o viés da matéria, quem será entrevistado, onde e como.

No Fantástico tudo muito forçado e simulado já que vemos na verdade os apresentadores executando a função de uma espécie de ouvidor de opiniões e palpites de uma “amostragem” de uma plateia que representaria o público do programa. Uma simulação desesperada de transparência como resposta às críticas recorrentes de manipulação no seu telejornalismo? Malabarismo da emissora para se manter entre a credibilidade jornalística e o papel de oposição ferrenha ao governo federal?

Hans Donner: sai o futurismo
entra o funk
O abandono progressivo da estética futurista de Hans Donner (saem as mulheres metálicas e os sólidos geométricos voando em círculos no vazio, entra uma cara mais “nova classe média C” com os passos do funk) e a metalinguagem generalizada de um programa que quer simular a si mesmo produzindo matérias para criar a estética da transparência talvez sejam os sinais do início do seu fim. Não a falência e o desaparecimento da emissora, mas o fim de uma época onde a estética Hans Donner imponha ao País um ideal de modernidade desejável.  Hoje a TV Globo sente o golpe dessa crise da relevância de uma utopia que ela mesma criou e tenta reverter a situação mergulhando em progressivas metalinguagens e auto-referências.

Mas isso pode resultar em algo patológico: o “tautismo” (tautologia + autismo): a doença de todos os sistemas que em crise de dissipação de energia começam a devorar a si mesmos na esperança de estender um pouco mais a própria existência.

A utopia modernista da TV Globo


Hans Donner entrou na TV Globo em 1975, pelas mãos do fotógrafo David Drew-Zingg que o apresentou a Walter Clark, então o diretor-geral da emissora. O design futurista de Donner caiu como uma luva não só para a emissora, mas também para as necessidades ideológicas do regime militar. Graças à rígida formação intelectual dentro do Positivismo de Augusto Comte, os militares viam o desenvolvimento do País somente possível por meio de uma elite de técnicos aos quais seriam submetidos tanto os políticos como o povo. Esse novo visual idealizado por Hans Donner transmitido diariamente em rede nacional criaria a roupagem estético-ideológica necessária para esse projeto paradoxal que unia modernidade e ditadura.

Design e utopia: a modernização do
mito da mulher e natureza brasileiras
Para a TV Globo era a chance da modernização da imagem do País que facilitasse a inserção dos produtos da emissora no mercado internacional. Se o principal produto oferecido para o mercado externo ainda eram mulheres e natureza, deveriam superar os velhos clichês como Carmen Miranda, baianas e carnaval. Tudo isso deveria ser “modernizado” em atmosferas futuristas e new wave em vinhetas e aberturas com pirâmides, esferas e cones movimentados digitalmente.
Além disso, criava a ideia de um “Brasil Grande” dentro do período do chamado “milagre econômico” da ditadura militar para uma nova classe média identificada com a modernidade transmitida pelos “enlatados” da TV Globo - pacotes com minisséries, filmes e desenhos animados principalmente norte-americanos.

E a última e o não menos importante função que a estética futurista de Hans Donner cumpriu: as bancadas dos telejornais como fossem naves espaciais translúcidas e as aberturas e vinhetas em computação gráfica conferiram ao jornalismo da emissora uma aparência de objetividade emprestada das tecnociências. Enquanto a mídia impressa era vista como partidária e ideológica, a estética space opera de laptops nas bancadas e os logotipos desenhados a partir de sólidos geométricos platônicos conferia uma imparcialidade científica aos noticiários e o trabalho da edição das notícias como fosse realizado em laboratórios assépticos e high tech.

A utopia acabou: o tautismo

Tiago Leifert e o ônibus-estúdio: o desespero
metalinguístico da TV Globo

É interessante perceber que paralelo à lenta e constante curva descendente de audiência e credibilidade da TV Globo junto ao grande público, os programas telejornalísticos e de entretenimento tornaram-se progressivamente auto-referenciais (as notícias sempre remetem a personagens, novelas ou programas da própria emissora criando uma constante transitividade entre ficção e realidade) e metalinguísticos (a emissora insiste em mostrar a si mesma transmitindo os acontecimentos – “se eu transmito, então é verdade”).

Do ônibus-estúdio do Globo Esporte (onde o apresentador Tiago Leifert se dividia entre falar dos novos gadgets tecnológicos da emissora e entrevistar jogadores de futebol), passando pelo reality show jornalístico Profissão Repórter à simulação de reunião de pauta do Novo Fantástico testemunhamos um mergulho da TV Globo na metalinguagem e auto-referência como reação à perda de audiência e credibilidade. Disso resulta um movimento tautológico (a emissora fala cada vez mais de si mesma) e um “fechamento operacional” da TV Globo em relação ao mundo exterior, o autismo.

O enfraquecimento da estética Hans Donner e a crise da utopia modernista que a TV Globo queria trazer para o “Brasil Grande” da ditadura militar representa o fim do último laço que a emissora ainda tinha com a realidade e a História. No seu lugar, uma linguagem baseada em simulações de transparência, tautismo e uma estética “orgânica” onde tenta se aproximar de uma certa ideia de “comunidade” onde pequenas amostragens de telespectadores mesclados com celebridades globais dão palpites em supostas discussões de pauta e entrevistas.
A situação atual da TV Globo, portanto, se assemelharia ao caso de uma pessoa que, sob condições extremas de fome ou de alteração do metabolismo basal, começa a entrar em processo catabólico - processo de degradação onde o corpo começa a consumir seu próprio tecido muscular.

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