Getúlio: tão "isento" e "didático" quanto um filme das organizações Globo

Mais competente do que a média, um tanto enfadonho e longo, Getúlio, longa-metragem de João Jardim, é um filme nada inocente na sua tomada de posição. 

Rogério Dultra dos Santos, Professor de Teoria da Constituição da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense

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Visto o filme, a tentação de escrever sobre o que ele não conta é grande – afinal, e para ficar em um singelo exemplo, onde estão as forças políticas e os interesses norte-americanos na deposição de Getúlio, onde está o discurso anticomunista, motor dos golpes todos, de 1930 a 1964? Vou tentar, ao invés, falar apenas do que considero que o filme mostra através de seus personagens, sem deixar de me posicionar diante de alguns lugares-comuns que têm circulado acerca do mesmo.


Assim, em primeiro lugar, não considero que este seja o filme definitivo sobre Getúlio, nem que seja um filme didático ou muito menos neutro. Documentários já retrataram esta época com muito mais riqueza de detalhes, complexidade e precisão e muitos estão no youtube à disposição. Um thriller sobre a investigação policial-militar de um atentado dificilmente serve para a finalidade didática de explicar parte central da história do país. Como desconfiei já quando assisti o trailer, os motivos profundos para a crise política não somente não são explorados, como largamente substituídos pela causa aparente – e superficial – que é o atentado da Rua Toneleiros ao então jornalista e candidato a deputado Carlos Lacerda. Nada mais revelador de um viés político, como tentarei argumentar a seguir.

Em segundo lugar, tenho considerações discrepantes da crítica que apareceu até agora sobre o elenco, em especial, sobre os protagonistas. Considero que o Tony Ramos está bem no papel, embora não lembre nem mesmo evoque o Getúlio original e nem deixe de cometer os seus maneirismos habituais – que, devo reconhecer, estão muito, muito controlados. A sua interpretação – e o roteiro, obviamente – ressalta menos o caráter enigmático de Getúlio e mais a indecisão e a impotência do personagem. Não ficam claras no filme quais as características pessoais que tornam Vargas um Presidente. No final, este elemento acaba servindo como uma crítica velada aos resultados das democracias representativas: de eleições majoritárias pode sair qualquer coisa, inclusive mandatários marcados pelo excesso de nepotismo, como é o caso retratado.

Em comparação com Tony Ramos, a Drica Moraes realmente rouba o filme. Sua beleza austera angaria simpatia e admiração, e a dignidade e a pureza da personagem acabam por se tornar o fio condutor da trama. Isto, no entanto, diz mais sobre as estratégias narrativas escolhidas do que sobre a excelência da atriz – certamente fora de dúvida. No meio de parentes políticos, corruptos e militares sedentos de poder, a Alzira Vargas de Drica Moraes é a fortaleza linear que inocentemente acredita na pureza do pai e no caráter público de sua função – e em reuniões, chama o pai de “patrão”, o que paradoxalmente serve como elemento caricatural do nepotismo* da família Vargas. Em geral, Getúlio é representado como um ex-ditador cercado por parentes e subalternos interesseiros e incapazes de compreender o sentido público – diria, inclusive, republicano – do cargo do presidente. Nesse sentido, a dimensão continental do país desaparece nas tensões palacianas características de uma republiqueta de segunda. Para corroborar o ponto, o argumento do filme sugere que o irmão de Vargas seria o responsável pela maquinação do atentado e passa um tempo jogando luzes sobre as negociatas corruptas do filho do presidente, também deputado.

Alexandre Borges, por sua vez, faz um Carlos Lacerda muito, muito controlado e pouco histriônico. É um Carlos Lacerda tão digno que, se fosse verdadeiro, teria garantido muito mais vigor à democracia brasileira. O Lacerda original era severamente mais destemperado e inescrupuloso. O filme parece trazer uma contribuição ao sugerir que Lacerda teria dado um tiro em si próprio para aproveitar politicamente a situação. No entanto, esta desconfiança sobre o antagonista de Vargas só reforça um traço forte da trama que é o caráter interessado, vil e corrupto dos políticos retratados no filme, confirmado por uma das últimas falas de Getúlio: "Quase nunca me pediram algo para o país. Sempre me pediram algo para alguém." Por outro lado, esta personalização do oportunismo político esconde, por exemplo, uma organização partidária – a UDN – que defendia interesses econômicos poderosos e que maquinava o golpe de estado de forma sistemática. No filme, a deposição de Getúlio aparece como uma estratégia espontânea e ocasional de políticos aproveitadores. Nada mais falso.

 

Um elemento interessante, que reforça o viés ideológico do filme – a despeito dos que clamam pela sua isenção e didatismo, como o seu diretor –, é que a dignidade se encontra largamente presente entre os militares pintados no filme. Nem mesmo o Ministro Zenóbio, que Vargas expressamente aponta como um traidor de último momento, aparece como avalista da deposição do presidente. Depois do suicídio de Vargas, é lembrado que o militar não aceita integrar o governo de Café Filho, expressando o seu descontentamento com os rumos políticos da nação. Mais um militar patriota em defesa da democracia. Aliás, os constantes conflitos políticos entre os personagens militares geram a impressão que as Forças Armadas em nenhum momento funcionaram como um bloco cuja predominância ideológica de cúpula era francamente anticomunista, mas como um conjunto heterogêneo de indivíduos mais ou menos marcados pelas virtudes aristotélicas como a justiça, a temperança e a coragem.

Outro personagem curioso no filme é Tancredo Neves. Ministro da Justiça, não figura como um político normal, auto-interessado ou moralista – como os demais no filme –, mas como um verdadeiro republicano, digno, quase heróico nas suas frustradas tentativas de orientar um Vargas emotivo e não raramente irracional e inapto. O “epitáfio” do filme vem no texto de Tancredo Neves, na sua lembrança de que a morte de Vargas segura o golpe por 10 anos. Tancredo Neves daria um bom presidente. No filme, certamente muito mais racional e qualificado do que o próprio Vargas. Na pretensão do filme de levantar paralelos com os dias de hoje será que não dá para achar algum parente do Tancredo dando sopa por aí não?...

E o povo? Numa cena que pretende demonstrar o poder das denúncias realizadas, o Getúlio ouve as vaias e os protestos “populares”. Na sequência, e denotando o caráter volúvel das massas, Vargas, ao discursar numa fábrica, é aplaudido por uma multidão que parece ou seduzida pela retórica do presidente ou subalternizada pela situação de exploração fabril. Em ambos os casos, foi o povo que colocou este sujeito no poder e é o responsável direto pelas consequências de seu governo. E se tem uma questão que é pisada e repisada no filme – ok, sempre na boca dos golpistas – é a necessidade de superar os entraves do mandato eletivo por conta da corrupção do governo. A prova de que o povo não sabe funcionar na política vem das cenas documentais da histeria popular no enterro do presidente: toda a corrupção comprovada, todo o nepotismo e inabilidade do governo sucumbem como causas eficientes de redenção da política diante da irracionalidade emocionada das massas.

A frase de um Getúlio preocupado em desvendar rapidamente a conspiração do crime da Rua Toneleiros faz lembrar fortemente um outro presidente – este sim fez o Brasil parecer uma república de bananas. Há vinte e dois anos Collor de Mello deixou o poder, escorraçado pelas jovens vozes das ruas e por fruto de denúncias feitas pelo seu irmão. Numa situação dramática muito semelhante, Getúlio esbraveja que quer que tudo e todos sejam investigados “doa a quem doer!” – curiosamente a mesma frase pronunciada por Collor de Mello no domingo em que conclamava o povo a sair às ruas de verde e amarelo para defender o seu mandato presidencial. Se com Collor o tiro saiu pela culatra, em Vargas acertou em cheio seu coração.

Em outro momento, Vargas acorda sobressaltado depois da cena de um sonho em que ele se vê sair de um carro oficial, com a faixa presidencial e algemas. Em tempos de CPIs sobre a corrupção – tema recorrente da direita golpista no Brasil e no mundo – também esta é uma alegoria que estimula desejos não tão gerais e espontâneos acerca da criminalização da política e dos políticos de hoje. A crítica à corrupção dos políticos, somada à crítica da inatividade do parlamento apontam para uma solução necessariamente autocrática. A história do Brasil comprova esta tese à larga pelo menos nos últimos 125 anos.

O lustre. Por fim, o lustre. Símbolo da ostentação do poder, lugar em que se perde Vargas em seus devaneios escapistas, o lustre de todos os ângulos filmado ad nauseam, no final, rodopia em velocidade. Representa aí uma roleta, seja de cassino, seja uma roleta russa: a política, afinal de contas, é um jogo que os inescrupulosos insistem temerariamente em achincalhar. Enfim, Getúlio é um filme das organizações Globo. E é declaradamente pensado para que reflitamos sobre a política no Brasil de hoje. Mais competente do que a média, um tanto enfadonho e longo, é, entretanto, um filme nada inocente na sua tomada de posição. Neutro, certamente não é. Nesse sentido, e em minha opinião, a reflexão política que sobressai de Getúlio é claramente de direita.
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* De acordo com o colunista Flávio Aguiar, "patrão" pode significar um dialetal gaúcho. "Patrão" pode ser "pai", "marido", "dono da estância", assim como "Patroa" é designação comum para "esposa", "dona de casa", no caso "da casa".

 

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