Curiosa antissimetria

O crescimento só pode ser sustentado com aumento da produtividade do trabalho superior à do salário real
Num momento que parece repetir o clima eleitoral de 1994, o PT – de Lula e Dilma – e o PSDB de Fernando Henrique e Aécio Neves encontram-se em 2014 numa situação de curiosa antissimetria: há duas décadas, o Partido dos Trabalhadores foi a única agremiação política a não acreditar na possibilidade de sucesso do Plano Real, viabilizado pela firme determinação do então presidente Itamar Franco e posto em prática  com habilidade política e grande transparência por seu ministro da Fazenda, Rubens Ricupero.

O Real foi indubitavelmente um ponto de inflexão na condução de nossa política econômica. Resgatou a confiança da sociedade brasileira, profundamente erodida pelos fracassos anteriores: Cruzado I (1985) – o mais bem-sucedido “estelionato eleitoral” de que se tem conhecimento na história brasileira –, Cruzado II (1986), Bresser (1987) e Verão (1989) no governo Sarney, Collor I (1990) e Collor II (1991).
Foram tentativas que fracassaram muito rapidamente, criando um inconformismo social que desabou em milhares de ações que, um quarto de século depois, aguardam julgamento do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, ainda não é claro que temos duas questões distintas: 1. Se houve dano ao “poder de compra” dos depósitos das cadernetas de poupança, que eles sejam especificamente corrigidos. A consequência se esgotará no eventual ressarcimento. 2. Se, no entanto, for declarada a inconstitucionalidade dos planos, as consequências serão graves e retirarão do poder do Estado graus de liberdade fundamentais para o exercício futuro da política econômica, o que será uma tragédia.
Visto 20 anos depois, o Plano Real continua uma pequena joia por sua concepção técnica, mas na ocasião o PT deixou de considerar os avanços da teoria monetária e ignorou os resultados dos programas de combate à hiperinflação do plano israelense de 1984, do qual os economistas do Real eram particularmente bem informados através de seus professores. Apostando que o Real fracassaria como os planos anteriores, o PT apostou contra o candidato de Itamar (FHC) na eleição de 1994 e se deu mal...
Apesar dos avanços institucionais e de algumas contribuições importantes, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, que, juntamente com a ordem imposta aos bancos estaduais, foram decisivas para estabelecer certa ordem nas finanças públicas da Federação, o Plano Real nunca terminou no que diz respeito ao equilíbrio fiscal. Em 2002, o baixo crescimento do PIB de 1995-2002 (2,3%) e a recusa do PSDB de defender com coragem o que tinha feito (por exemplo, o grande aumento da eficiência produtiva gerada pelas privatizações), facilitou a tarefa das urnas de corrigir o economicismo do governo FHC, manifestado como “fadiga de material”.
Lula venceu a eleição e construiu uma enorme inclusão social, o que teria sido impossível sem o sucesso da estabilização e sem o “vento de cauda” exterior. O mecanismo dessa inclusão, o uso universal do salário mínimo como indexador (e não o Bolsa Família), tem um preço: estressa cada vez mais, na margem, o crescimento do PIB, o equilíbrio fiscal, a taxa de inflação e o déficit em conta corrente.
A situação privilegiada da presidenta Dilma no processo eleitoral em marcha mostra que, aparentemente, a “fadiga de material” não chegou ao ponto em que o jogo com as urnas corrigirá os excessos do poder incumbente. Se isso for verdade, como parece que é, a única forma de voltar a um crescimento mais robusto nos próximos anos será construir uma profunda confiança recíproca entre o governo e o setor empresarial privado para elevar os investimentos.
O crescimento só pode ser sustentado com um aumento da produtividade física do trabalho superior à do salário real, com a redução da relação Dívida Bruta-PIB, com a convergência da taxa de inflação à meta e ao relativo equilíbrio nas transações correntes.
Exigirá, também, dos empresários a superação do entendimento que o legítimo objetivo governamental de “modicidade tarifária” não é um desejo de “lucro zero e do governo que respeite os sinais alocativos do mercado em lugar de tentar substituí-los pelo voluntarismo”.
De qualquer forma é um pouco ridícula a disputa quase infantil a que estamos assistindo sobre quem foi “melhor”: os oito anos de FHC, os oito de Lula ou os três de Dilma. Cada um teve seus méritos e sua herança. O primeiro estabilizou, os segundos distribuíram.

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