A arte de cultivar incertezas



Boa parte do que acontece hoje na economia brasileira tem raízes na piora da situação externa
por Delfim Netto 
As coisas não caminham bem no mundo, não é só no Brasil. Nós cultivamos nossos pecados próprios, mas uma boa parte do que acontece na economia tem raízes na piora da situação externa, ajudando a nutrir um pessimismo exagerado, quando nossa situação não tem nada de dramática como se imagina. Temos, sim, algumas tensões no comportamento da inflação, de um lado, próximas da taxa de “tolerância” da meta de 6,5% e a projeção de um déficit em conta corrente muito grande, de outro, que precisamos enfrentar sem contar com ventos externos nem simpatia, como acaba de demonstrar o FMI ao reduzir a “projeção” do nosso crescimento a 1,8% do PIB para 2014.

O fato é que o mundo está se recuperando muito mais lentamente do que os organismos internacionais acreditavam: sete anos depois do início da crise, o mundo desenvolvido está apenas voltando ao nível de atividade que tinha em 2007, com uma situação fiscal muito mais difícil. Nos Estados Unidos já se tem um desenvolvimento um pouco mais robusto, mas não suficiente. Na Europa, a situação está ainda muito complicada, ameaçada por um processo monetário extremamente difícil que pode terminar numa deflação – o que seria uma tragédia humana muito pior que a inflação –, sem contar com as conflagrações sangrentas em suas bordas. No chamado mundo “emergente” tem a China – que terá de “trocar os pneus com o caminhão rodando”, como tenho insistido – e toda a área asiática que sofre a sua influência.
E tem o Brasil, que está se defendendo melhor que muita gente boa nesse processo de crise financeira, enfrentando o longo período de baixo crescimento que acontece globalmente. Para os nossos padrões, estamos crescendo muito pouco – 2,2% ou 2,3% do PIB –, o que não é, porém, um crescimento desastroso diante do que vem acontecendo no resto do globo. Infelizmente, é menos do que estão crescendo as outras economias emergentes.
Desde o início do ano estamos tendo de conviver com alguns fenômenos climáticos que produziram um aumento das incertezas sobre o crescimento: a seca que nos castiga pode prejudicar a produção agrícola, perturbar o abastecimento de água de grandes cidades e criar dúvidas sobre a oferta de energia, o que angustia nossa população e assusta o “mercado”. Estamos diante de fatos que podem levar a um choque de “oferta” que se somará à inflação reprimida pelo controle dos preços e aos estímulos fiscais que a fizeram namorar o limite superior de tolerância da “meta” (6,5%). Essa existe exatamente para acomodar os efeitos secundários de tais choques quando eles ocorrem. Não estamos, entretanto, sob a ameaça de uma perda de controle da taxa de inflação. 
Apesar de termos uma situação desconfortável, não se deve confundir os anúncios da correção da alíquota do Imposto de Renda ou do reajuste dos valores do Bolsa Família, no dia 1º de maio, como sendo demonstrações de “gastança irresponsável” do governo Dilma, fruto da contaminação do “clima eleitoral”, como clama a oposição. Primeiro, porque é absolutamente correto o ajuste anual da tabela do IR: se o governo não faz a correção, ele está cometendo uma violação constitucional, pois estará cobrando um imposto sem amparo na lei. A correção da alíquota, aliás, devia estar na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de todos os anos, pois, se o governo deixa de corrigir a tabela, estará tributando o cidadão sem autorização legal, o que é absolutamente inconstitucional.
Em segundo lugar, no Bolsa Família, o que o governo fez foi simplesmente corrigir a inflação, o que é absolutamente justo. Não é nenhum pecado capital: não existe no mundo um programa mais eficiente de redução da pobreza do que o brasileiro e a prova disso é que está sendo imitado em vários países. Já citei antes, como exemplo, a presença no Brasil do candidato de oposição nas eleições presidenciais do Egito, que trouxe seus assessores para estudar o nosso programa. O Bolsa Família é um sistema que dá liberdade à mulher, ajuda a mãe de família, mas cobra a obrigatoriedade de que ela cuide da educação e mantenha o filho na escola. Então, essas coisas não têm nada de “gastança irresponsável” ou “contaminação eleitoral”, embora, obviamente, tenham efeito nas eleições.

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