Um torturador francês no Brasil: como foi o envolvimento do "carrasco de Argel" na ditadura
Documentação obtida por pesquisador na França traz detalhes sobre atividades de Paul Aussaresses nos anos 1970
Ninguém sabe por que o velho general resolveu abrir o jogo com a jornalista Florence Beaugé no início do milênio. Mas a entrevista, estampada na edição do Le Monde de 23 de novembro de 2000, caiu como uma bomba na França e na Argélia. Há tempos os historiadores e jornalistas buscavam o testemunho de um militar sobre os métodos atrozes utilizados pelos franceses contra os militantes da Frente de Libertação Nacional (FLN) durante a guerra de independência da Argélia (1955-1962).
Paul Aussaresses, à época com 82 anos, reconheceu a prática de torturas, os desaparecimentos para encobrir assassinatos, as execuções, os esquadrões da morte. Dizia não se arrepender de nada. “A tortura pode ser necessária contra o terrorismo”, declarou ao Le Monde. Mas até o seu falecimento, em dezembro do ano passado, não revelou a identidade dos homens de seus esquadrões da morte.
Não era o depoimento de qualquer militar. Aussaresses era considerado um dos oficiais franceses mais capacitados em contra-insurgência. “Um homem extremamente culto, fluente em seis idiomas, capaz de recitar poesia”, nas palavras da jornalista Beaugé. Formado em Londres durante a II Guerra Mundial na área de inteligência, tornou-se comandante da brigada de paraquedistas “El 11e Choc” , o braço armado dos serviços secretos franceses no exterior. Anos depois, em seu primeiro livro de memórias (“Serviços especiais – Argélia 1955-1957, meu testemunho sobre a tortura”) publicado em 2001, explicou claramente sua missão: “fazer o que chamávamos ‘guerra psicológica’, em todos os lugares que fosse necessário, como na Indochina. Preparava meus homens para realizar operações clandestinas, colocação de bombas, ações de sabotagem ou a eliminação de inimigos”.
A teoria da guerra “psicológica”, “revolucionária”, conhecida na linguagem militar como “doutrina francesa”, foi criada a partir de 1954, depois da derrota dos franceses na Indochina, atual Vietnã. Aussaresses fazia parte do grupo dos oficiais anti-comunistas ferozes, que vão ler o Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung, analisar as técnicas das guerrilhas vitoriosas, e criar métodos “não convencionais” para combatê-las. “Perder na Indochina foi um choque. Tínhamos que aprender a lição para não perder na Argélia”, disse o general em 2004, em uma entrevista para o documentário da jornalista francesa Marie Monique Robin, “Esquadrões da morte, a escola francesa em 2004”.
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Três anos depois da derrota no Vietnã, as tropas do general Jacques Massu venceram a Batalha de Argel, em um ano – entre 1957 e 1958. Aussaresses teve um papel capital para a vitória sangrenta dos paraquedistas franceses, divididos em zonas operacionais (por bairros) e atuando na “inteligência” – no cerco aos alvos, nos interrogatórios de qualquer “suspeito” de ter relações com os revolucionários, na tortura dos detidos, na execução, nos massacres, nos 4 mil desaparecimentos de pessoas, segundo o cálculo apresentado pelo jornalista Yves Courrière no livro “A Guerra da Argélia”.
A Argélia acabaria conquistando a independência em 1962, mas a experiência anti-guerrilha dos franceses os converteu em “especialistas” em “guerra revolucionária” no momento em que os Estados Unidos entravam no Vietnã. Sua doutrina militar foi difundida pelos aliados da guerra fria através de revistas, livros, cursos. A partir de 1963, Aussaresses será instrutor de cursos anti-guerrilha nas academias militares de forças especiais nos Estados Unidos, em Fort Benning – dos paraquedistas – e em Fort Bragg, o centro de treinamento dos boinas verdes. Sua influência perdurou.
A jornalista francesa Marie-Monique Robin, autora do documentário “Esquadrões da morte, a escola francesa” de 2003, que entrevistou militares americanos que tiveram aulas com Aussaresses, conta que durante as filmagens, que coincidiram com o início da guerra do Iraque, os generais entrevistados contaram que a teoria da Doutrina Francesa “iria de novo ser posta em prática”. O filme “A Batalha de Alger”, de 1966, em que Gillo Pontecorvo denuncia a matança, a tortura e as mentiras das tropas francesas – e que Aussaresses considerava “magnífico, muito próximo da realidade” – foi exibido no Pentágono, diz Robin.
O general francês escreveu em suas memórias e repetiu em entrevistas que nos Estados Unidos ensinava os métodos da batalha de Argel. “Quer dizer as prisões, os interrogatórios, a tortura”? pergunta Robin a Aussaresses no mesmo documentário. “Isso”, ele responde laconicamente. Seu ex aluno americano, o general John Johns, que depois se tornou um militante contra a tortura, diz mais: “os ensinamentos de Aussaresses tiveram um papel fundamental para todas as forças especiais que foram depois para o Vietnã”. E completa: “para Aussaresses era necessário executar os torturados”.
Brasília, 11 de setembro de 1973
Com esse perfil, o general parecia o homem certo para compor a missão diplomática do governo Pompidou no Brasil dos anos de chumbo. Em seus primeiros informes, Aussaresses conta ter reencontrado vários antigos alunos de seus cursos nos Estados Unidos; o que “resultou em contatos amigáveis do ponto de vista pessoal e úteis para os serviços”, escreveu.
Sentia-se em casa na companhia do amigo general e futuro presidente João Batista Figueiredo, prestes a assumir a chefia do SNI no governo Geisel (1974). Também era próximo do delegado Sérgio Fleury, torturador-símbolo da ditadura brasileira – chegou a mencioná-lo no seu segundo livro de memórias “Não falei de tudo” (“je n’ai pas tout dit”, em francês, 2008) como chefe do esquadrão da morte. De acordo com Aussaresses, o general e o delegado trabalham em parceria: “À essa época [Figueiredo] dirigia, com o comissário Sérgio Fleury, os esquadrões da morte brasileiros”, revelou também em entrevista ao documentário de Robin, ao comentar sua amizade com o então chefe do SNI.
À jornalista Leneide Duarte-Plon, que o entrevistou em 2008, logo depois da publicação do livro em que narra a experiência brasileira (Je N’Ai Past Tout Dit – Ultime Révelations au Service de la France), Aussaresses, com seu laconismo habitual, contou um episódio revelador sobre como o chefe da missão diplomática francesa, Michel Legendre, encarava as atividades de seu adido militar no Brasil: “Um dia o embaixador me disse: ‘Você tem amigos estranhos’. Eu respondi: ‘São eles que me permitem manter o senhor bem informado’. Ele não disse mais nada”.
Da estada de Aussaresses no Brasil pouco se sabia até pouco tempo, além do que o próprio general revelou em seu último livro e nas entrevistas. Do lado brasileiro, os arquivos continuam fechados como constatou o jornalista Lúcio Castro durante uma investigação para um especial da ESPN sobre a Operação Condor – o esquema de repressão conjunto das ditaduras do cone Sul. Castro não conseguiu obter nenhuma documentação oficial em resposta ao pedido de informações sobre Aussaresses que fez ao Itamaraty. Os únicos documentos enviados pelo órgão foram cartas da embaixada francesa pedindo visto para as filhas dele e outras coisas de menor interesse. Nem mesmo a data de chegada de Aussaresses consta desses papéis, que podem ser encontrados no site Documentos Revelados, do pesquisador brasileiro Aluízio Palmar.
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Coincidência? “Difícil acreditar em coincidência. Com a liberação dos documentos [sobre o golpe no Chile] nos últimos anos, não resta dúvida sobre o respaldo do Brasil ao golpe do Chile, e é impossível imaginar que um coronel paraquedista altamente especializado como ele, não haja dado ao menos sua opinião”, diz Nabuco.
O próprio Aussaresses, que escreveu em um de seus livros que o Brasil enviou armas, homens e aviões para ajudar os golpistas chilenos, não disfarçou a ironia quando questionado por Leneide Plon-Duarte se o Brasil havia participado “ativamente” do golpe no país vizinho: “Que pergunta! Você pensaria que sou um idiota se não estivesse a par. Claro que o Brasil participou!”, disse na já citada entrevista na Folha de São Paulo.
Golpistas recebem os parabéns
Nabuco também constatou que a participação francesa na ditadura militar brasileira, antes mesmo do golpe de 1964, foi maior do que se sabia. “A cooperação militar francesa com o Brasil é antiga e significativa desde os anos 1920, com as missões militares, o intercâmbio de oficiais em escolas militares, etc. Mas esta cooperação vai assumir um papel fundamental nos anos 1960, 1970, um papel nunca visto nem antes nem depois”, diz o historiador.
Em um desses informes, em janeiro de 1964, Pierre Lallart, adido militar entre 1962 e 1964, comenta que o general Franco Pontes comandante da Força Pública de São Paulo pretendia “criar um estado maior operacional de prevenção de distúrbios sociais e políticos e um serviço de defesa contra a subversão” . O mesmo general havia lhe pedido para “organizar cursos especializados na França sobre luta contra a subversão para os seus homens”.
Em outro informe citado por Nabuco, o mesmo adido vai relatar com entusiasmo, o golpe de 1º de abril de 1964: “uma operação sumamente bem montada, executada em dois dias em um país 17 vezes maior do que a França, quase sem dificuldade nem derramamento de sangue, tecnicamente, como operação, um modelo do gênero”.
Elogios voltados para a edificante conclusão: “Muitos dos envolvidos no golpe são especialistas em doutrina francesa, ou antigos alunos das Escola de Superior de Guerra francesa”, como o já citado general João Figueiredo, que seria o último presidente da ditadura, e o então coronel Walter de Menezes Paes – comandante do IV Exército e depois chefe da ESG – Escola Superior de Guerra -, formado na 69a promoção da Escola Superior de Guerra de Paris e fluente em francês como destaca outro documento, o relatório mensal de maio de 1973, esse obtido pela Pública. O general Sílvio Frota também é citado por Lallart, bem antes de assumir o Ministério do Exército no governo Geisel, e se destacar como expoente da linha-dura do Exército.
A ditadura brasileira foi vista pelos franceses como uma oportunidade de recuperar a influência das missões militares francesas no país, perdida para os americanos. À medida que ela recrudesce, consolida-se o perfil dos adidos militares nomeados pela França: são “veteranos das guerra da Indochina e da Argélia, todos especialistas em guerra revolucionária”, que vão difundir essa doutrina a militares brasileiros, muitas vezes já formados pelas escolas francesas, explica Nabuco.
No livro “A Ditadura Escancarada”, o jornalista Elio Gaspari explica o outro lado da adesão dos militares brasileiras à doutrina de Argel. Quando “a hierarquia militar brasileira associou as Forças Armadas à tortura, dispunha de dois casos clássicos de ação antiinsurrecional”, diz Gaspari. O primeiro era o Vietnã, mas “não convinha”, observa, citando o julgamento do tenente William Calley, condenado pela Justiça americana pela execução de 175 civis no vilarejo My Lai. “O segundo exemplo, a ação francesa na Argélia, encontrava-se nas estantes da bibliotecas militares”, escreve o jornalista brasileiro.
O princípio central dessa doutrina, explica a jornalista francesa – além do documentário citado, Marie-Monique Robin publicou um livro homônimo com o resultado da enorme pesquisas que realizou – é o do “inimigo interno”: “Se na ‘guerra revolucionária’ qualquer pessoa é suspeita, o inimigo está em toda parte e se apoia na população civil, esta é o suspeito número 1. Daí o primado da informação militar. Quem diz interrogatório, diz tortura, a arma principal da ‘guerra anti-subversiva’. O que fazer dos torturados? Depois de torturados não podem ser jogados nas ruas, estão em frangalhos. É preciso fazê-los desaparecer. É o papel principal do general Aussaresses”.
O homem que o governo francês nomeou adido militar e foi recebido de braços abertos no Brasil de Médici havia comandado um massacre na Argélia que resultou na morte de 7.500 pessoas em dois dias – 2 mil delas executadas depois de presas e interrogadas em um estádio transformado em campo de concentração. Qualquer semelhança com o Estádio Nacional chileno que teve o mesmo destino em 1973 não é mera coincidência, apontam os fatos.
Exilados na França e na Argélia
Lallart deixou o Brasil tendo cumprindo sua principal missão oficial: havia obtido sucesso nas negociações preliminares da venda de aviões Mirage ao governo militar. A partir daí, a cooperação entre os serviços secretos franceses e brasileiros só vai se intensificar. De acordo com documentos dos Arquivos do Quai d’Orsay, ministério dos Assuntos Exteriores francês, analisados por Nabuco, oficiais ligados ao ex primeiro ministro Georges Pompidou, que substituiu De Gaulle na presidência em 1969, já se comunicavam com o SNI brasileiro desde 1968.
O objetivo principal era monitorar os exilados em Paris e na Argélia, destino tomado em 1965 pelo governador de Pernambuco cassado, Miguel Arraes, ao ter seu pedido de asilo negado pela França. Em novembro de 1969, com o surgimento da Frente Brasileira de Informações (FBI) em Paris, formada por exilados que denunciavam os crimes da ditadura brasileira, o intercâmbio dos serviços se torna imprescindível. No livro “O exílio brasileiro na França”, a historiadora francesa Maud Chirio, estima em 10 mil o número de exilados brasileiros na França durante a ditadura e observa: “a DST (divisão de serviços secretos no interior) ocupou um papel central no monitoramento dos brasileiros no exílio”.
Foi nesse momento que o general Aurelio de Lyra Tavares assumiu a embaixada na França, como parte do arranjo feito entre os militares para encerrar o governo da Junta Militar, da qual o general, ministro do Exército de Costa e Silva, era um dos três regentes. A Junta governou o Brasil entre agosto de 1968 – quando Costa e Silva adoeceu – e a escolha do novo presidente, o general Garrastazu Médici, em outubro de 1969. Lyra Tavares chegou animado em Paris. Em uma carta ao governo francês,reproduzida na tese , o general embaixador pede que a DST impeça qualquer atividade de Arraes na França e informa os agentes franceses de que o político brasileiro está sempre viajando com seu passaporte argelino.
Deve ter sido atendido, a julgar pela acolhida das missões diplomáticas francesas no Brasil na década seguinte. Parte da influência dos adidos militares franceses nos anos 1970, porém, também deve ser atribuída aos conselhos do coronel Wartel, o sucessor de Lallart, que permaneceu como adido militar até 1969. De acordo com a documentação analisada pelo professor Rodrigo Nabuco, Wartel sugeriu nomear para o cargo oficiais que tivessem sido instrutores em escolas superiores militares, principalmente nos Estados Unidos, Brasil ou Argentina.
Seus sucessores, Yves Boulnois, Jean-Louis Guillot e o próprio Aussaresses, adidos militares franceses no Brasil entre 1969 e 1975, eram especialistas renomados em guerra anti-subversiva e já haviam ministrado cursos para militares sul americanos na Argentina (Boulnois), na França (Guillot) e nos Estados Unidos (Aussaresses). No Brasil, participaram de reuniões do Estado Maior brasileiro, acompanharam e informaram os aspectos militares da luta anti-guerrilha e, no mínimo, opinaram sobre a estrutura e operações da repressão junto a autoridades brasileiras, como concluiu Rodrigo Nabuco depois de analisar mais de 2 mil documentos nos arquivos franceses do Ministério de Defesa e de Relações Exteriores.
“A documentação acessível nos arquivos franceses não permite levantar hipóteses sobre o papel de conselheiro exercido pelos adidos militares durante os anos de chumbo. Por enquanto, não podemos deixar de sublinhar a semelhança chocante entre a contra-guerrilha em São Paulo e Alger. Por outro lado, os documentos comprovam o aumento significativo da cooperação militar entre os anos 1969-1975. Além disso, à medida que o modelo da batalha de Alger se estende pelo país, o Estado Maior do Exército Brasileiro apela aos conselheiros franceses para formar os novos quadros do dispositivo de defesa interior, o Destacamento de Operações e Informações (DOI)”, escreveu Nabuco em sua tese.
Operação Bandeirantes: a doutrina francesa na prática
Em junho de 1970, já com a Operação Bandeirantes (Oban) em andamento em São Paulo, inaugurando a criação dos DOI-Codi em todo o país, Yves Boulnois diz em seu informe: “a preparação de todas as unidades do exército na luta contra a subversão está bem avançada e dando bons resultados”. Boulnois se aproxima ainda mais dos militares do Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) do Rio de Janeiro depois de uma suposta ameaça de sequestro, por parte da ALN, ao embaixador francês, como escreve o adido no relatório mensal de agosto de 1970, conforme documento citado na tese de dutorado de Nabuco (Rapport mensuel, Yves Boulnois, août 1970, SHD, Service Historique de Défense). A essa altura, a guerrilha urbana já havia sequestrado os embaixadores dos Estados Unidos e da Alemanha, trocados por prisioneiros; em dezembro seria a vez do embaixador suíço.
Em 1972, é a vez do novo adido, Jean-Louis Guillot, também em informe citado na tese, observar que depois da criação dos DOI-Codi, “a luta contra o terrorismo urbano foi muito dura e muito eficaz”. Guillot, que visitou o Brasil duas vezes antes de assumir o posto, entre 1968 e 1971, como instrutor do Estado Maior de IHEDN (Instituto de Altos Estudos sobre Defesa Nacional), conhecia oficiais brasileiros diplomados na instituição francesa e circulava com desenvoltura entre os militares no poder. Depois definiria seu papel de adido em seu informe final, obtido pela Pública, como de “um conselheiro de defesa no sentido pleno da palavra”.
Como em Argel, a coleta de informações e as ações da Oban, que se repetem nos DOI-Codi, “se dão de maneira clandestina”, observa Nabuco, referindo-se às incursões noturnas, desaparecimentos, operações de vigilância, torturas em centros clandestinos. Além disso, destaca o historiador, “a Operação Bandeirantes é a primeira experiência da estrutura de coleta de informações e de ações de comando, concebida segundo a doutrina francesa. O comando se reúne em uma estrutura única, o II Exército, composta de policiais e oficiais superiores, capacitados em Paris e Fort Bragg”.
Há outras semelhanças aterradoras. Em seu primeiro livro (“Serviços especiais-Argélia 1955-1957”) Aussaresses confessa que dois heróis nacionais da Argélia, Mohamed Larbi Ben M’hidi e Ali Boumendjel, foram torturados e executados, embora o comando francês tenha informado suas mortes como suicídios: o primeiro por enforcamento, de maneira similar à utilizada pelo DOI-Codi de São Paulo, em 1975, para encobrir o assassinato do jornalista Vladimir Herzog; e o segundo atirado pela janela. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, no Brasil houve pelo menos 44 casos de “suicídios” para encobrir execuções e mortes sob torturas durante a ditadura militar.
No documentário de Robin, vários militares argentinos e chilenos contaram que os franceses lhes ensinaram os mesmos métodos. Entre os entrevistados está Manuel Contreras, chefe da abominável DINA, a polícia militar de Pinochet. Ressalvando não ter conhecido Aussaresses pessoalmente, Contreras diz que “ele treinou muitos chilenos no Brasil”. “Eu mandava gente a cada dois meses para a escola de Manaus”, afirma.
“Essa escola vai se converter no epicentro do ensino da luta contra a subversão para as forças especiais na América Latina”, diz Rodrigo Nabuco. “Aussaresses disse públicamente que deu seus cursos ali mas é muito provável que Boulnois e Guillot tenham feito o mesmo. Boulnois escreveu vários manuais sobre a guerra revolucionária e antes de chegar ao Brasil, quando era adido em Buenos Aires, foi professor na Escola de Guerra da Argentina. Guillot ensinava na IHEDN (Instituto de Altos Estudos de Defesa Nacional), uma das maiores escolas de guerra francesa”, detalha Nabuco.
Operação Condor
Aussaresses superou os antecessores em influência e domínio da informação. Em Brasília, redigiu mais de 200 páginas de informes durante seus dois anos de serviço – ele deixou o país em novembro de 1975 – onde, segundo Nabuco, se revela um fino analista da situação, até por ser muito bem informado.
Em nível internacional, Aussaresses, que foi eleito presidente da Associação dos Adidos Militares no Brasil, confirma que ele e seus pares desempenhavam papel central no intercâmbio de informações do Condor – a operação entre as ditaduras do Cone Sul para vigiar, prender e assassinar exilados -, embora esse nome nunca fosse mencionado. “O SNI mantém um relacionamento estreito e cordial com a Argentina, o Uruguai e o Chile. Do mesmo modo, não descuida de seus intercâmbios com a França, onde os exilados são os mais numerosos. E da Suiça onde os bancos guardam dinheiro da subversão”, diz em um informe de 1974.
No Brasil do final do governo Médici, quando a maioria dos guerrilheiros já estavam presos, mortos ou exilados, Aussaresses nota que há menos operações convencionais do Exército, mas “algumas ações são verdadeiras operações conduzidas por polícias ou forças armadas”. Mesmo se considerando um homem bem informado, acrescenta: “O volume de operações é difícil determinar porque estão rodeadas de sigilo, severamente guardado”.
Em outro informe, com uma pitada de ironia, escreve: “no balanço dos excessos e dos desaparecimentos, o II Exército (o comando do DOI-Codi) não tem a consciência tranquila”. Mas no relatório mensal de dezembro de 1973, elogia Orlando Geisel, ministro do Exército e coordenador do aparelho repressivo no governo Médici, “homem de tradição militar francesa que inspira a Escola de Guerra brasileira”.
No mesmo relatório reproduz uma conversa com Orlando Geisel e outros generais, fazendo menção a um assunto que aparece repetidamente nos informes dos adidos diplomáticos franceses desde Lallart: a perda de influência dos militares franceses para os americanos. “Orlando Geisel”, diz Aussaresses, “declarou-se em dívida com a escola francesa pela formação política que prepara os estagiários para exercer um papel significativo em seus países”. Mas, destacou, que o general “rende sua homenagem aos americanos pelo papel essencial na “recente crise política” [o golpe do Chile] “para manter a paz”.
Depois, Aussaresses anota a sugestão do general para recuperar a influência perdida: “Ele acha desejável a cooperação entre as Forças Armadas francesas e brasileiras. E diz que a melhor forma de colaboração é através da troca de estagiários de escolas militares”, pedindo, inclusive, que um oficial francês seja enviado à Escola de Estado Maior brasileira em 1974.
A respeito dessa cooperação fala em outro informe sobre o intercâmbio com a PM brasileira em que “5 a 6 oficiais por ano vão seguir cursos na França”, acrescentando o seguinte comentário: “esses cursos são muito procurados pelos brasileiros, que descobrem, às vezes surpresos, que se pode obter informações sem usar tortura. Pode ser que um dia a polícia francesa ajude a PM brasileira a ser menos bruta”.
Uma observação que soa absurdamente irônica diante das próprias memórias de Aussaresses, não apenas pelos crimes confessos em Argel como pelos cursos que deu nos Estados Unidos e no Brasil – ele declarou ter sido professor na EsNI (Escola Nacional de Informações em Brasília), e no CIGS, a escola de guerra da selva de Manaus. Sobre essa última, escreve em um de seus informes sem mencionar seu papel como instrutor, comemorando: “a direção da escola segue dando o currículo da “guerra revolucionária”. E acrescenta: “os coronéis instrutores da escola foram alunos da ESG de Paris”.
Vendedor de armas
A leitura do conjunto dos documentos dos adidos franceses traz ainda mais uma impressão: a disputa diplomática com os Estados Unidos era ainda mais acirrada no aspecto comercial, o que era sempre destacado nos informes, assim como estratégias para ganhar terreno. Nomes de militares encarregados das compras das Forças Armadas, ou com influência para decidir, são seguidamente citados e não raro Aussaresses menciona que os militares brasileiros não dão mostras de se desinteressar nem do poder, nem do combate feroz aos oponentes internos, uma importante condição do “mercado”.
Nesse sentido, os cursos e conselhos dos criadores da doutrina francesa, às vezes soam como moeda de troca para as transações comerciais, como deixa transparecer o informe final de Aussaresses: “Graças em parte aos serviços militares e comerciais da embaixada, a França se tornou o segundo provedor de armas terrestres ao Brasil, depois dos Estados Unidos”.
Depois, observa, em relação às vantagens competitivas do rival: “Todos os comandantes das grandes unidades militares fizeram algum curso nos Estados Unidos, pelo menos na escola do Canal de Panamá, onde estão de maneira permanente os instrutores brasileiros”.
De sua parte, Aussaresses tenta compensar a desvantagem indicando generais influentes nas decisões comerciais para receber condecorações como a Legião de Honra francesa, caso por exemplo do general Moacyr Barcellos Potiguara, comandante do IV Exército – em 1976 ele seria chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Entre as qualidades do general Barcellos, Aussaresses destaca sua atuação à frente da divisão Material Bélico, quando trabalhou pela escolha do míssil francês Roland que concorria com similares (britânico e americano). “Se a França conseguir participar da reestruturação das indústrias brasileiras de armas e munições será grandemente pela ajuda dele”, detalha em um dos documentos obtidos por Rodrigo Nabuco.
Seja como for, assim como aconteceu com as relações feitas em seus cursos de Batalha de Argel nos Estados Unidos, Aussaresses aproveitará a rede construída na América do Sul para se tornar comerciante de armas. Depois de deixar o cargo de adido militar no Brasil, passa a trabalhar como representante da companhia francesa Thomson-Brant na América Latina, reencontrando antigos oficiais amigos no Brasil, no Chile, na Argentina, cada vez em postos mais elevados na hierarquia militar. Como sempre, interessados no que o velho general tinha a oferecer.
* Originalmente publicada na Agência Pública
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