Por que o governo do Rio, prefeitura e Globo zombam da Constituição?

 Autor: Miguel do Rosário
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A foto, de Silvia Izquierdo, da Associated Press, publicada na capa da Folha deste sábado, mostra um grupo de pessoas muito assustadas, tentando se proteger atrás de uma kombi. São moradores sem-teto que ocupavam um terreno abandonado da OI no Engenho Novo, Rio de Janeiro.
Em primeiro plano, destaca-se uma jovem negra de coxas grossas. A expressão algo dura em seu rosto esconde seu medo e confusão. É pelos pés, todavia, que podemos ter uma ideia da tensão extrema a que as pessoas na foto foram submetidas. O chinelo verde da jovem de coxas grossas está virado, revelando que ela fez movimentos bruscos. A senhora a seu lado, com o rosto contraído num ríctus de desespero, tem um pé descalço.

A bem da verdade, a desocupação desastrosa, que gerou saques, depredações e incêndios, espalhando pânico e terror nos bairros de Maria da Graça, Jacaré, Rocha, Cachambi e Riachuelo, não começou ontem.  Como tudo que acontece no Rio, a ação teve início há algumas semanas, com uma matéria publicada no jornal O Globo, com viés fortemente negativo, sobre a ocupação do terreno por milhares de sem-teto.
Entretanto, nada disso precisava ter acontecido. A cidade poderia ser poupada destas cenas dantescas. As mulheres, idosos e crianças que vemos nas fotos poderiam ser poupados da violência a que foram submetidos. Em 2012, o governo federal já havia se comprometido a financiar, naquele mesmo lugar, um programa habitacional. A presidenta Dilma Rousseff esteve no Rio e assinou um documento, ao lado do prefeito Eduardo Paes.
Trecho de matéria publicada hoje no jornal O DIA, lembrando a assinatura do acordo:
O acordo foi assinado, em 6 de julho de 2012, diante da presidenta Dilma Rousseff, na inauguração do Bairro Carioca. Em seu discurso, ela comemorou o fato: “E agora, eu fico ainda mais feliz de saber que foi assinado um acordo com a Oi. (…) Hoje, a prefeitura, através do Eduardo Paes, obteve um terreno com a Oi que vai permitir que nós construamos mais 2.240 residências.” A presidenta ainda afirmou que essa era “a melhor notícia” que tinha recebido durante a viagem.
Algum tempo depois, porém, o negócio desandou. O prefeito alegou que a Telemar Norte, proprietária do terreno, cobrou um preço “muito alto”. A empresa cobrava, ao que parece, algo em torno de R$ 20 milhões. Segundo um especialista ouvido pelo jornal O DIA, “se não concordasse com o preço pedido pela Oi, a prefeitura poderia desapropriar o terreno e discutir, na Justiça, o valor que deveria ser pago”.
E agora, alguém vai calcular o prejuízo causado pela desocupação? O que a cidade ganhou com tanta violência? Cinco mil pessoas foram expulsas de um terreno abandonado há anos, sem que houvesse a mínima preocupação com seu conforto e segurança. Lojas, mercados, ônibus, escolas e postos de saúde fechados, quase 2 mil policiais mobilizados, quanto tudo isso custou? Não seria mais barato comprar o terreno, já que havia acordo e disposição do governo federal para alocar recursos para um projeto de habitação? Por que, prefeito?
E aí novamente nos deparamos, estarrecidos, com o racismo chocante do Estado e da mídia, aqui mancomunados. Em editorial deste sábado, O Globo capricha no cinismo ao afirmar, já no título, que “É preciso punir quem manipula e lucra com a invasão”.
Quem lucra? Certamente não são aquelas pessoas expulsas brutalmente de um lugar para o qual foram empurradas, naturalmente, pelas dificuldades econômicas. A empresa proprietária, a Oi, adquiriu aqueles imóveis através de um processo de privatização viciado, contestado. Quanto, efetivamente, a Oi pagou por aquele terreno?
Se o Rio não fosse mais o feudo de um só jornal, se tivéssemos ao menos uma parte da imprensa que tínhamos até a década de 70, quando a ditadura terminou de aniquilar qualquer resquício de jornalismo minimamente comprometido com valores humanistas e democráticos, poderíamos ser melhor informados sobre as razões reais por trás dessa operação. A pergunta cínica do Globo seria prontamente respondida, mas não na direção pretendida pelo jornal.
O Globo acusa a  ”manipulação política” por trás da invasão assim como, por ocasião do golpe de 64, dizia que vivíamos a “volta da democracia”. E ataca não a violência contra as pessoas, mas a contra o “princípio da propriedade privada, consagrado na Constituição por se constituir em alicerce do estado democrático”.
Propriedade privada? Um enorme terreno abandonado há anos numa área densamente povoada? Um terreno pertencente a Telerj, empresa pública de telefonia, vendida na bacia das almas num processo de privatização repleto de denúncias?
O Globo nunca ouviu falar em função social da propriedade?
Está lá, na Constituição, no capítulo que trata dos direitos e garantias fundamentais:
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
Essa é a herança da ditadura: uma polícia racista e violenta, uma elite indiferente aos problemas sociais, monopólio da mídia em mãos de uma família reacionária, uma interpretação facciosa da Constituição.
A OAB denuncia as violências, mas timidamente. As associações de jornalistas denunciam as agressões contra seus profissionais. Mas tudo fica por isso mesmo.
O vilão da história fica sendo um líder sem-teto de São Paulo. Nenhum morador é entrevistado. Não haverá “cadernos especiais” sobre a ocupação do terreno da OI, nem sobre sua desocupação.  O batalhão de jornalistas e diagramadores escalados para escrever matérias sobre os 50 anos de ditadura agora estão de férias.
Um editor sarcástico poderia fazer um paralelo entre as manchetes dos primeiros dias de abril de 1964 e a operação de ontem no Engenho Novo, inventando a seguinte manchete:
“Democratas dominam a favela da Oi”.

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