O constrangimento da Folha com o “esquerdismo” de Garcia Marquez


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por Miguel do Rosário

Clovis Rossi, em “análise” para a Folha sobre Garcia Marquez, faz um servicinho mais que sujo: é antes pueril, desnecessário e incoerente. Observe o título e, sobretudo, o subtítulo, de seu texto:

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Colaborou com presidentes colombianos conservadores e liberais?

Aí vamos ler, no texto, os trechos em que Rossi explica sua “acusação”:

Uma demonstração de que García Márquez se dava bem com outros mandatários não-marxistas é o fato de que colaborou com diferentes presidentes colombianos, conservadores ou liberais, nos diferentes processos de paz tentados no seu país de origem.

Ele próprio se definia como “um conspirador pela paz”. Desse seu empenho escreveu Alejo Vargas, cientista político da Universidade Nacional da Colômbia: “Quiçá uma contribuição importante de Gabo tenha sido ajudar a criar um ambiente internacional favorável a apoiar os esforços de paz de diferentes governos”.


Outro exemplo de seu envolvimento com os que fazem história, de que também fui testemunha ocular: na posse de Carlos Andrés Pérez na Venezuela, em 1992, Gabo era um dos convidados de honra, ao qual foi reservada a primeira pergunta, na entrevista coletiva que se sucedeu à posse.

Ou seja, a “colaboração” de Marquez foi ajudar no processo de paz da Colômbia. Ora, Chávez também ajudou. Fidel também ajudou. Lula também ajudou. Qualquer pessoa minimamente humanista, de esquerda ou direita, com amor pela América Latina e pela paz, tinha interesse em ajudar a Colômbia a superar a guerra civil e encontrar uma solução pacífica para uma guerra civil que vitimou milhares de inocentes. Isso não tem nada a ver com ideologia!

A outra “colaboração” de Marquez, segundo Rossi, foi participar da posse de um presidente eleito pelo povo colombiano. Ora, a posse de um presidente eleito num processo democrático limpo e pacífico, seja de esquerda ou direita, é sempre motivo de comemoração para qualquer pessoa interessada nos destinos de uma América Latina traumatizada por golpes e turbulências políticas de todo o tipo. As diferenças são postas de lado. Há uma trégua. Não por outra razão, todo presidente eleito, na América Latina, costuma fazer um discurso conciliador, para avisar que governará para todos os cidadãos, incluindo os que não votaram nele.

Por que Rossi escreveu um texto tão ridículo?

É simples: para aliviar a confusão dos coxinhas. Afinal, morreu um dos maiores escritores da história da América Latina, ganhador do prêmio Nobel, um dos autores latinos de maior sucesso de todos os tempos. E o sujeito era amigo de Fidel e esquerdista! Ou seja, se viesse ao Brasil, apoiaria Lula, Dilma e o PT. Durma-se com um barulho desses!

Rossi tenta transformar a admiração de Marquez por Fidel num amor puramente personalista, como se um escritor como Marquez fosse um idiota babão.

Ora, o escritor colombiano admirava Fidel, evidentemente, pela maior qualidade deste: líder de uma revolução popular socialista vitoriosa, e que, apesar de todos os obstáculos, conseguiu libertar seu povo da miséria e do estado de humilhação em que até hoje todos os outros países centro-americanos vivem. Um país que, ao invés de exportar bananas, café cru e minério de ferro, como é o caso de outras nações do continente, incluindo o Brasil, hoje exporta médicos e escritores!

Agora, deixando Rossi de lado, falemos do escritor. Cem Anos de Solidão traz um dos finais mais bem escritos, na opinião de muitos, da história da literatura moderna:

“Macondo já era um pavoroso redemoinho de poeira e escombros centrifugados pela cólera do furacão bíblico quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo em fatos demasiado conhecidos e começou a decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse se vendo num espelho falado. Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Porém, antes de chegar ao verso final já havia compreendido que não sairia jamais daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra.”

Façamos uma exegese rápida desse trecho. O que significa? Na minha opinião, Marquez trouxe mais uma metáfora sobre os destinos da América Latina, esse pedaço do mundo onde os sonhos de liberdade ganharam o status de utopia fantástica, mas nem por isso menos desejada, nem por isso menos perseguida com paixão e valentia. Um continente destruído não por guerras, mas por golpes, traições e mentiras, e que por isso mesmo entendeu que a solução de seus problemas passa pelo domínio da narrativa.

Na América Latina, mais do que em qualquer outro lugar, a mentira foi transformada em política de dominação imperialista. Criaram-se ditaduras para destruir opiniões divergentes, e conseguiram. Encerrado o ciclo autoritário, o que vimos? Um deserto de ideias regido pelos gigantes midiáticos que se consolidaram durante as ditaduras. Gigantes que contaram antes e contam hoje com apoio de interesses econômicos e políticos estranhos e hostis aos ideais de soberania de seus próprios povos. Os escritores latinos, como Marquez, tiveram que apelar para o fantástico para externarem suas ideias. Muitos foram exilados, perseguidos, mortos. O próprio Marquez teve que viver, a maior parte de sua vida, fora de seu país.

Tive o privilégio de ler quase todos os livros e contos de Marquez. Um de seus romances que mais me impressionou foi O General em Seu Labirinto, uma criação dos últimos dias de Simon Bolívar.

A importância da alta literatura, a meu ver, é combater o coxinismo. São livros nos deixam menos vulneráveis ao maniqueísmo rasteiro que a mídia tenta nos impor, com seus editoriais, novelas e pesquisas de opinião. Aprendemos que os heróis tem defeitos, e nem por isso são menos admiráveis. E que os bandidos tem qualidades, e nem por isso deixam de ser bandidos. A literatura nos torna, ao mesmo tempo, mais humildes e mais orgulhosos. Envolve nossa consciência com um manto protetor, tecido com ironia, desconfiança, altivez, desencanto e utopia.

Descanse em paz, querido Garcia Marquez. A história te defenderá das calúnias, das simplificações, das mentiras.

O início de Cem Anos de Solidão também é um dos melhores que já li.

“MUITOS anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.”

Numa só frase, há violência, arbítrio, nostalgia e descoberta. O instante do fuzilamento é congelado, e a história se abre, se desdobra e se aprofunda por um século. A literatura vence a morte através da imaginação. Para vencer o arbítrio, a América Latina terá de resgatar, como fez Marquez, a sua história. É nela que encontraremos a sua dignidade, a sua beleza, sua redenção.

Só aí, quando encontrarmos a nós mesmos, e sentirmos orgulho do que somos,  superaremos estes últimos cem tristes anos de solidão, violências, misérias, que marcaram nossa querida América Latina.
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