Jango: notas para uma retificação histórica

O vilipêndio de João Goulart serve de esconderijo para o rosário de irresponsabilidades, erros de análise e bravatas retóricas das esquerdas de então. 

Wanderley Guilherme dos Santos

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Entre as retificações indispensáveis dessa história cinqüentenária encontra-se o papel atribuído a João Goulart que, primeiro vice-presidente foi, depois, presidente da República. Perseguido pela direita, e atropelado pelas esquerdas, em vida, tem sido vilipendiado, estando morto. A primeira linha de fogo atira em sua denunciada atração por mulheres e cavalos. Ora, bem, e daí? As pessoas são atraídas por certos prazeres e repelem outros. Não consta que consumisse drogas ou fosse submisso ao álcool, prazeres que outras personalidades usufruem habitualmente sem que tenham o juízo prejudicado.
Dizem que apreciava coristas, mas outros, mais recentes, preferiam as jornalistas. O que isso tem a ver com o Plano Real, por exemplo, ou com o Plano de Metas de Juscelino. François Mitterand, como se dizia no Nordeste, tinha casa montada para a amante e a família Kennedy fez da Casa Branca um romântico aconchego para belas atrizes, mas seria risível atribuir-se a essa particularidade o desastre kennedyano da Baía dos Porcos ou à vodka de Nikita Kruschev a crise dos mísseis em Cuba.

A incorreção metodológica de derivar atitudes públicas de preferências ou atributos privados é da essência do racismo, da discriminação. E confundir o tamanho da crise do período 61-64 com os hábitos peculiares de Janio Quadros ou com atribuídos traços psicológicos de João Goulart só passa em branco em período de histeria retrospectiva.

A permanente crítica da direita era redundante: Jango pretendia entregar o País aos comunistas, espelhando-se na Revolução Cubana. O desagradável fato de ser João Goulart um estancieiro se apagava, na propaganda direitista, diante de seu caráter supostamente influenciável e de sua incompetência. Que esta vulnerabilidade a pressões externas tenha sido negada por sua resistência a ordenar o bombardeio de tropas rebeladas, conforme consta dos depoimentos, também é coberta pela presumida e fatal hesitação do Presidente João Goulart.

Nesta toada juntam-se as vozes da atual direita, de parte das esquerdas do momento, e o que restou de ambas do passado. O intervalo temporal serve de cúmplice para a excomunhão do ex-presidente a ele se conferindo total responsabilidade pelo sucesso do golpe de 64. Se o presidente fosse outro, diz-se, a direita não teria vencido. O argumento é confortável, especialmente porque não se pode demonstrar que é falso. É impossível reescrever capítulos e substituir João Goulart por... por quem?

O vilipêndio de João Goulart serve de esconderijo para o rosário de irresponsabilidades, erros de análise e bravatas retóricas das esquerdas de então em alucinada competição para alcançar o pódio do radicalismo revolucionário. Siglas que não correspondiam a nenhuma força social efetivamente organizada como, entre várias, o Pacto de Unidade e Ação, a absoluta fraude em que se desagregaram as Ligas Camponesas, com reivindicações e ameaças que eram incapazes de sustentar, grifes revolucionárias de fantasia, tal como o Comando Geral dos Trabalhadores Intelectuais (CGTI), cópia de outra fantasia, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), tudo fica dissimulado pela repetida acusação de que Goulart manifestava a falta de conseqüência da burguesia brasileira. Bastaria pressioná-lo para, através dele, obrigar a burguesia a assumir seu papel hegemônico na pretensa revolução nacional-desenvolvimentista em curso. De nada adiantaram as advertências de que os conservadores podiam pagar para ver, como se diz no pôquer, e o único trunfo com que todos, no fundo, contavam, era o esquema de segurança dos militares nacionalistas comandados pelo Chefe da Casa Militar, General Assis Brasil.

A escalada de reivindicações do campo progressista adquiriu espantosa velocidade, obrigando o Presidente Goulart a sucessivas manobras ministeriais para aplacar as esquerdas sem perder totalmente o apoio do Congresso. Em menos de dois anos de governo, o País teve 6 ministros da Educação, 6 do Trabalho, 5 da Fazenda, 5 das Relações Exteriores, 4 da Marinha, 4 da Guerra e 3 da Aeronáutica. Foram, ao todo, 60 ministros contra 29 durante o período JK. O Congresso aprovava cada vez menor número de projetos apresentados e a coalizão governamental no Parlamento se desmanchava.

Indicador mais dramático da crise, desaparecia a viabilidade de uma coalizão alternativa dada a incapacidade da União Democrática Nacional (UDN), partido líder da oposição, de construir uma coalizão duradoura e sistemática. Sua bancada uniu-se à do PTB para derrotar uma proposta de reforma agrária apresentada pelo Partido Social Democrata (PSD), conservador e da base do governo. Em outra votação, parte da bancada da UDN uniu-se ao PTB e aos integralistas para aprovar projeto de limites à remessa de lucros de companhias estrangeiras para o exterior. Não havia mais consistência nem a favor nem contra o governo.

João Goulart não era um revolucionário. Tampouco era tolo ou tíbio. Ciente de que alguns pretendiam ir além do que seria possível legalmente, na verdade, tomar o poder com mão de gato, manteve o País dentro da legalidade, buscando alcançar seus propósitos de governo sem alterar, por meios ilícitos, as estruturas vigentes.

Em sua última mensagem ao Congresso pedia a alteração na cláusula constitucional dos alistáveis, acrescentado que seriam elegíveis todos os alistados. Ele e Leonel Brizola seriam, então, elegíveis, substituindo a legislação da época. Para a direita, essa era a senha que, no seu entender, prenunciava um golpe de Estado.

Os líderes retóricos da época procuraram as embaixadas e os aviões a partir de 2 de abril. Depois, e até hoje, e seus herdeiros, difamam João Goulart por não autorizar a resistência ao golpe, culpando sua fraqueza e titubeio pelo desenlace da crise. Com o apoio ao golpe de, no mínimo, quatro dos principais governadores estaduais – Minas Gerais, São Paulo, Rio de janeiro e Rio Grande do Sul – a resistência armada provocaria uma guerra civil e, aí sim, a quarta frota americana em passeio pelo Oceano Atlântico prestaria seus serviços. João Goulart rejeitou a proposta.

Como epílogo às 48 horas que submeteriam o Brasil a 21 anos de ditadura, os caluniadores de Jango vilipendiam sua memória ao insinuarem uma sombra de covardia em sua recusa a ordenar a movimentação das tropas. Estranho que os revolucionários de prontidão não tenham se apercebido que o general Mourão Filho não esperou ordem ou permissão para marchar de Juiz de Fora, que o comandante do IV Exército tenha prendido por conta própria o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, e que os tanques que deveriam defender a Vila Militar, no Rio de Janeiro, tenham se dirigido autonomamente ao Palácio Laranjeiras para proteger o governador Carlos Lacerda. Muito obedientes à hierarquia os nossos revolucionários...




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