TEATRO DE RUA PARA 31 DE MARÇO DE 64
Cinquenta anos depois, balanço fatalista do golpe militar ajuda a adormecer e confortar consciencias diante de um ataque a democracia
Cinquenta anos depois, fico espantado ao reparar que o golpe de 64 chega a ser visto como seja fatalidade.
Só não farei aqui a lista de meus erros e enganos porque dizem que deve-se evitar textos longos na internet. Pelo tamanho, prefiro este aqui. .
Esta noite sonhei com teatros políticos que se fazia sob a ditadura militar, quando havia censura, cadeia, tortura – mas tinha uma turma que insistia em ficar dizendo o que era proibido e mostrar o que deveria ser escondido. Tudo mambembe, tão inevitavelmente esculachado porque parecia até que era de propósito. Claro que são cenas de ficção.
Você chegava na assembleia na faculdade, eles estava lá. Chegava no sindicato, também. Às vezes iam para a rua, imagine.
Era divertido – apesar de meio pobre e, no fundo, um pouco triste. O Brecht possível, vamos combinar. Brecht, portanto.
O inevitável fala tanto que Arraes desconfia, coçando o bigode: o golpe está em andamento mas a tese de doutorado já tinha fica pronta, murmura.
Os argumentos do inevitável parecem bonitos, até lindos, de gente que tem vários exemplos na ponta da língua mas o homem de chapéu não tira o chapéu para eles. Pergunta como assim, quem mandou aquelas tropas para meu palácio, que no fundo é do povo que me elegeu?
-- Como sabemos que uma coisa é inevitável antes de tentar evitar?
Em seguida, Arraes faz menção de iniciar seu discurso onde condena o golpe e o "inevitável" faz um gesto inconcluso. Será que tentaria impedir que fizesse um pronunciamento inútil, segundo sua análise? Não sabemos.
Ele também tenta convencer o homem de chapéu. Mas este se mantém irredutível e eles desistem. A tropa não desiste, é claro, e mantem o palácio do homem de chapéu cercado.
Aparece um repórter tomando notas. De repente, ele entra num armário e sái vestido de general. Discursa:
-- A culpa pelo golpe foi do Jango! A culpa foi do Jango!
É o mesmo jornal que, em 1961, não queria nem permitir a posse de Goulart após a renuncia de Jânio. Imagine o que fez no 31 de março: saudou a “inevitável porrada necessária.” Lamentou que fosse porrada, mas disse que era necessária e, portanto, inevitável.
Mas em agosto de 2013 ele publicou um pedido de desculpas. O cidadão comum lê para a plateia o editorial onde o jornal pede desculpas pelo apoio ao golpe:
O cidadão comum se vira para o porrada e o inevitável e diz:
Vamos ler o Globo, meninos! O porrada e o inevitàvel vão para o canto, de castigo.
O personagem entra num aviãozinho de papelão e passa por cima de um grupo de soldados que avançam pela estrada – em sua maioria recrutas que na peça se vestem como formiguinhas – e todos se dispersaram. Estavam desorganizados, sem comando, sem treinamento. Cumpriam ordens de ir para lá.
Podiam cumprir ordens de ir para cá.
Moreira Lima volta a base aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, esperando pela ordem de resistir. A ordem não veio.
Na mesma região, avista-se um jipe militar correndo pela mesma estrada que o coronel aviador tinha sobrevoado.
Naquele dia, Castelo Branco estava tão convencido de que o golpe de 31 de março poderia dar errado – ou seja, era “evitável” -- que tentou convencer o general Mourão a desistir assim que soube que ele havia deslocado tanques de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro.
Olha só: Castelo, o chefe supremo, articulado com Vernon Walthers e o Exército americano, que iria trazer a IV Frota com víveres e armas para ajudar numa eventual guerra civil, mandou um conspirador, o general Muricy, encontrar-se com Mourão para lhe dar o recado de que deveria retornar aos quartéis para não colocar tudo a perder.
Por via das dúvidas, Castelo resolveu esconder-se. Estava em companhia de outro oficial, Ernesto Geisel.
O golpe “inevitável,” a “porrada necessária” começou assim. O primeiro presidente militar se escondeu. O quarto presidente também foi para a clandestinidade.
O coro de vozes alerta: isso é uma denúncia que não foi inteiramente confirmada. Havia muita corrupção naquela época, a CIA havia mandado, por ordem do presidente John Kennedy, pacotes e pacotes de dólares para ajudar a oposição contra Goulart.
Conforme um oficial que seguiu os movimentos de Kruel de perto, o lance decisivo ocorreu quando ele recebeu uma mala de dólares – e mudou de lado. Isso aí. Dólares!
Verdade? Mentira? O coro pergunta e responde:
Ninguém sabe. Mas a mala de dólares está lá, no armário dos mistérios de um golpe que queria acabar com a subversão e a corrupção, dando um conteúdo surrealista a história inteira. Precisa ser apurada, investigada, explicada.
O cidadão comum pega uma página do New York Times, na edição de 7 de abril de 1964. Lê:
"-- É difícil saber quem está mais satisfeito com a queda do Goulart. Os brasileiros ou o Departamento de Estado do governo americano.”
Os atores se juntam a beira do palco e declamam um texto assim:
Palavras como “inevitável”, “ou porrada necessária”, adormecem, é conformam, pacificam, confortam.
Num pedaço chatíssimo, um dos atores fala direto no microfone:
Vamos verter lágrimas pelos valores absolutos da democracia?, pergunta o ator.
Fecham-se as cortinas que, por sinal, não existem. Quando parece que tudo terminou, uma atriz adolescente entra correndo no palco carregando um cartaz com letras escritas a mão. Aquelas peças as vezes davam a impressão de tratar a plateia como burra mas as vezes isso parecia necessário. O cartaz diz:
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