Quem vai mover as turbinas do Brasil?
No momento em que sábios tucanos apresentam a abertura do país como panaceia para o investimento, uma empresa brasileira sugere que o caminho é mais complexo.
por: Saul LeblonNo momento em que o declínio industrial do país se transformou em preocupação dominante da agenda econômica, uma reportagem publicada na Revista Exame, de 9 de março último e outra do dia 10 de março, na ‘Defesa Aérea e Naval’, revista on line especializada em assuntos de Defesa, criada pelos jornalistas Guilherme Wiltgen e Luiz Padilha, chamaram a atenção de Carta Maior.
As matérias davam conta de que a Polaris, empresa de ex-engenheiros do CTA/ITA , de São José dos Campos (SP), desenvolveu uma micro turbina para mísseis, que teria despertado o interesse de fabricantes internacionais de armamentos, graças às inovações que apresenta.
A tecnologia reúne, ademais, densidade de conhecimento suficiente para credenciar o Brasil no seleto clube dos fabricantes mundiais de turbinas aeronáuticas, dominado por um número muito reduzido de corporações gigantes.
A notícia transcende a aparência técnica.
Emoldurada pelos desafios que cercam a agenda do desenvolvimento, ela remete às escolhas que contrapõe projetos distintos, destinados a resgatar a eficiência e a competitividade da industrialização brasileira no século XXI.
O papel do Estado nesse resgate é um divisor de águas.
Em que medida a sua ausência é compatível com o financiamento e o ganho de escala reclamado por projetos com o potencial daqueles desenvolvidos pela Polaris, por exemplo?
A opinião do conservadorismo sobre o assunto ganhou uma importante síntese na entrevista concedida pelo economista Edmar Bacha, formulador do programa do candidato Aécio Neves, ao ‘Estadão’ do último domingo.
Na listagem dos ingredientes que compõe o problema há convergências entre o que diz o dirigente da Casa das Garças e a visão progressista.
A saber: a) o país enfrenta uma perigosa erosão de suas cadeias industriais; b) não é uma corrosão recente, mas remonta aos últimos 30 anos, sendo a defasagem cambial um elo comum ao período; c) sua persistência evidencia a dificuldade de se avançar de uma economia de renda média para um padrão de renda alta, capaz de associar eficiência e empregos de qualidade; d) não há mais como crescer pela expansão do emprego e do consumo, sem girar em falso numa engrenagem esgotada; e) o salto da produtividade industrial é o grande desafio de um novo ciclo de crescimento mais robusto; e) esse ganho não se dará sem uma integração maior da economia brasileira nas grandes cadeias globais de suprimento e inovação, nas quais predominam as trocas intraempresas e entre grandes empresas.
Até aí, estamos na descrição morfológica do enigma.
Vencida a fase alegre dos consensos, a polaridade se recoloca quando se trata de responder à questão: quem comandará o desbaste dos gargalos? Que forças podem e devem impulsioná-lo? Que diferença faz a escolha de um ou de outro protagonista?
Edmar Bacha é sincero na antecipação de seu olhar: ‘Não é segredo para ninguém que sou tucano", diz ao Estadão; em seguida, dispara a consequência disso na forma de uma diretriz schumpeteriana: um novo governo –tucano como ele-- vai impor um "desfazimento" da atual política macroeconômica e lançar as bases para uma abertura comercial contundente e de longo prazo, diz o interlocutor preferencial de Aécio Neves.
O ‘desfazimento’ e a nova abertura dos portos tem alvos e consequências apreciáveis.
Inclua-se aí o desmonte da tentativa de se construir uma política industrial com a participação ativa do Estado no financiamento à integração de grandes empresas nos mercados globais.
Entenda-se, ainda, a implosão da estratégia de integração sul-americana, em benefício de uma abertura comercial de pedigree assumidamente liberal, a exemplo do que pretendia a Alca.
E, finalmente, a pedra de toque desse tabuleiro: a redução do famigerado ‘Custo Brasil’ – panaceia negativa na qual cabem todos os males do país, mas que no fundo esconde o indisfarçável desejo de quebrar a espinha dorsal dos assalariados, com uma purga de arrocho nos holerites, a partir do salário mínimo, e cortes de direitos sociais expandidos pelos governos do PT.
O arrocho tem sentido funcional e político.
O objetivo é lubrificar a adesão das empresas à derrubada das tarifas externas, compensando-as duplamente com o corte nas folhas de pagamento e o ajuste no câmbio.
Fecha-se o círculo do ‘desfazimento’ neoliberal : de um lado, o barateamento das exportações; de outro, o encarecimento das importações. E o Brasil voltaria a deslizar como um corisco na pista do crescimento virtuoso.
Parece lógico.
A que custo?
O conservadorismo é perito no manejo de variáveis descarnadas da dimensão histórica que lhes é indissociável .
Embaralhados os ingredientes assim, higienizados de sua dimensão temporal, salta-se com ligeireza das preliminares para se atribuir aos ‘livres mercados’ a tarefa de conduzir a transição da economia para uma nova quadra de expansão e competitividade.
A narrativa tecnocrática subtrai o papel e o contrapeso do Estado na delicada ordenação de ganhos, perdas e prazos ensejados nessa transição ; engole, ademais, a alternativa histórica de substituir a carta branca aos mercados pela negociação política de um novo pacto para o desenvolvimento.
Não por acaso, a formalidade lógica de Edmar Bacha assenta-se em uma omissão ainda mais grave e abrangente: sua explanação ignora a ação devastadora dos ditos mercados racionais na origem da crise mais grave do capitalismo desde 1929.
Ou não terá sido o colapso de 2008 um filho legítimo da mesma cepa a que pertencem as propostas tucanas destinadas a salvar a economia do ‘anacronismo’ lulopetismo e dos ‘desenvolvimentistas’ da Unicamp –como alfineta Bacha ao desdenhar de ‘uma certa universidade do interior paulista’?
Conviria ao PSDB esclarecer por que a crise não aparece –ou não cabe—no modelo de ‘desfazimento’ do Brasil.
Um pedaço da resposta talvez esteja na predileção dos sábios de bico longo pelo universo fabular dos mercados regidos por leis isonômicas, a salvo das manipulações de interesses e isentos da rapinagem gananciosa dos circuitos financeiros.
A realidade é um pouco mais adversa.
Um dado resume todos os demais: 25% dos recursos do sistema financeiro mundial flutuam hoje à margem de qualquer regulação do Estado e dos organismos internacionais.
Estamos falando de um volume de capital fictício equivalente ao PIB mundial, autoinvestido de poderes para acuar governos, interditar debates (com a ajuda dos esquadrões midiáticos aliados), atropelar políticas de desenvolvimento e esfarelar programas consagrados nas urnas.
O fato adicional de que se vive sob as rédeas de um sistema monetário em estado de decomposição, mas ainda arbitrado pela supremacia do interesse norte-americano, parece alterar muito pouco a disposição tucana de atribuir à abertura dos portos um papel multiuso na superação dos desafios brasileiros.
Tudo se passa como se o objetivo ao qual se busca integrar o país fosse uma equação perfeita, dotada de poder curativo de largo espectro e geométrica harmonia entre as partes.
Um lego amigável, feito de peças complementares.
Somente um devaneio desse calibre justificaria a intenção expressa de renunciar ao papel do Estado no acirramento da guerra de posições em curso no ambiente belicoso dos mercados globais.
Se quiser avaliar a realidade concreta da pressão na caldeira, a inteligência abrigada na Casa das Garças deveria, por exemplo, atentar para a disputa fraticida entre grandes corporações globais, subjacente a um episódio que lhe é familiar: o propinoduto no metrô de São Paulo.
Um olhar isento chegaria facilmente à conclusão de que, ademais dos apetites de bolso , existe uma compulsão estrutural a exigir da indústria um desempenho lucrativo equivalente ao do mercado financeiro, de resto dificilmente realizável sem um mergulho no vale tudo que teria marcado duas décadas de licitações do PSDB em São Paulo. E isso, de fato, é apenas um exemplo.
Nenhuma macroeconomia determinada a resgatar o papel irradiador da produtividade industrial pode ignorar o peso adquirido pela condicionalidade financeira na luta pelo desenvolvimento no século XXI.
Mais que isso.
Não pode prescindir do amparo estatal no superlativo esforço de disciplinar os fluxos de capitais para induzir a composição das grandes massas de recursos produtivos demandadas pela escala competitiva global.
O que seria do Brasil se as turbinas tucanas alçassem o poder novamente impulsionadas pelo menosprezo olímpico a esses parâmetros de voo do nosso tempo?
Que destino amargaria uma empresa brasileira como a Polaris, embarcada nesse comboio?
No dia 13 de março, fruto da repercussão das matérias da Exame, mas principalmente da Revista Defesa Aérea & Naval, os sócios da Polaris, ex-engenheiros do CTA/ITA, receberam em suas instalações, na cidade de São José dos campos, São Paulo, uma comitiva do Ministério da Defesa para conhecer a audaciosa aposta de quem pode credenciar o Brasil ao seleto clube dos cinco ou seis fabricantes mundiais de turbinas aeronáuticas.
O passaporte dessa travessia, a TJ-1000, uma turbina utilizável em mísseis de longo alcance e drones, reúne conhecimento e tecnologias suficientes para, em pouco tempo, com verbas adequadas, desdobrar-se em uma versão de grande porte para uso em aeronaves comerciais e inúmeras outras finalidades civis, inclusive geração de energia, como informa o site da empresa.
Além dessa, outra turbina já se transformou em realidade na Polaris: a TJ200, que pesa menos de 10 Kg e tem apenas 16cm de diâmetro. Mas pode impulsionar um míssil de 230 Kg, num voo de 250 km de distância, com apenas 39 litros de combustível.
O Engenheiro Alberto Carlos Pereira Filho, Presidente da Polaris, explica que todo o processo de desenvolvimento e certificação internacional de uma turbina para aviões comerciais custa dezenas de milhões de dólares. O projeto leva anos; é impensável sem um apoio efetivo do setor estatal.
Foi por isso que a Polaris optou, inicialmente, por uma versão de menor complexidade, com investimentos de R$ 4,5 milhões, via Finep (Financiadora de Estudos e Projetos).
Vencida a barreira do conhecimento e, com dois anos de testes, a TJ200 é a primeira turbina aeronáutica de pequeno porte a entrar em produção num mundo cada vez mais receptivo ao seu uso civil.
’A disseminação de drones para serviços de correio’, exemplifica Klein, ‘vai acelerar a adequação desses equipamentos a esse uso -- a exemplo do que deve ocorrer também na agricultura, nas operações de pulverização e controle’.
Só há uma empresa, a francesa Turbomeca, que fabrica um produto similar ao desenvolvido pela Polaris.
Mesmo com esses trunfos, o Estado brasileiro demorou a prestar atenção no potencial de um projeto que já acumula contratos preliminares para a exportação de 100 unidades para a Europa.
O salto para disputar o mercado de aviões comerciais está nas mãos do governo, insiste Klein.
‘Recentemente’, exemplifica, ‘o Brasil assinou um contrato para o primeiro avião a ser fabricado 100% dentro da Unasul; a turbina prevista é de origem russa.
Poderíamos ter acoplado ao projeto o desenvolvimento de uma tecnologia própria’, lamenta.
O mesmo pode ser dito em relação à tecnologia desenvolvida pela empresa para turbinas à gás, destinadas à geração de energia. ‘Seu desempenho’, assegura Alberto, ‘é superior aos modelos existentes no mercado mundial, impróprios para combustíveis de baixo poder calorífico’.
A tecnologia brasileira, ao contrário, utilizaria gases que hoje são desperdiçados, queimados e lançados diretamente na atmosfera, a exemplo das emissões liberadas nos aterros. ‘São apenas dois exemplos de oportunidades à espera de uma política estratégica de Estado’, diz o dirigente.
A visita do Coronel Fábio Eduardo Madioli e do Comandante Eduardo Pinto Urbano, representantes do Ministério da Defesa, à Polaris, na semana passada, pode ser um sinal de que esses equívocos começam a ser retificados por uma nova disposição dentro do governo.
Se assim for, será uma auspiciosa ruptura com a lógica embutida nos planos na candidatura tucana, mas não com a receita de adensamento tecnológico adotada pelas maiores economias industriais do planeta.
Caso dos EUA, por exemplo, cuja bilionária política de encomendas do setor militar constitui a principal alavanca de impulsão tecnológica do país.
Ainda hoje, o orçamento militar norte-americano figura como o maior sistema de encomendas públicas e de incentivo à inovação do mundo.
A tal ponto que Estado autoriza margens de preferência de até 50% nas compras do Exército --ou seja, as compras bilionárias das Forças Armadas dos EUA privilegiam empresas locais, mesmo que o seu preço seja até 50% superior ao similar importado.
Pelo menos até a crise de 2008, mais de 30% dos gastos dos EUA com pesquisas correspondiam a recursos canalizados a empresas inovadoras recurso para o desenvolvimento de novas tecnologias e uma escala de compras compatível com a sua sustentação comercial.
Uma dessas linhas de fomento, a Small Business Innovation Research Program, foi a estufa onde floresceu a Microsoft.
A centralidade de uma política industrial soberana, portanto, não é um mero fetiche da esquerda. Tampouco um anacronismo ideológico da Unicamp , como quer a soberba tucana.
Trata-se de um trunfo indispensável à irradiação da produtividade sistêmica, sem a qual não haverá excedente econômico para ampliar direitos sociais, empregos de qualidade e salários dignos.
Para que cumpra essa função ela terá que ser tutelada pelo interesse público.
A indução estatal não esgota o duplo desafio de conciliar a construção de uma democracia social no Brasil com a inserção de sua economia nas grandes cadeias globais.
Mas figura, por assim dizer, como a chave-mestra das escolhas que vão decidir se o país logrará se reposicionar no século XXI como uma economia dotada de turbinas próprias, ou como figurante caudatário, a turbinar interesses alheios.
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