Quando a Justiça tarda é porque já falhou

Da esq. para a dir., Walter Maierovitch, Fábio Konder Comparato, Marcio Moraes e Virgílio Afonso da Silva

Especialistas debatem por que, no Brasil, a "qualidade" do Judiciário funciona melhor para uns do que para outros
por Envolverde — publicado 19/03/2014 12:24
“Walter, eu não faço política. Faço meu trabalho e não tenho contatos. Assim mantenho a minha independência”. A frase proferida certa vez pelo desembargador federal Marcio Moraes ao jurista Walter Maierovitch foi relembrada pelo desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e colunista de CartaCapital durante o debate “Justiça – Agilidade e Qualidade”, na terça-feira 18. O encontro fez parte da programação do evento “Fórum Brasil – Diálogos para o Futuro”.

Marcio Moraes foi presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP-MS) e atua hoje como Ouvidor Geral de Justiça. A experiência de 38 anos de magistratura, especialmente na Justiça Federal, o leva a descrever a situação do Judiciário à época da ditadura civil-militar. “Sou do segundo exame de magistratura, em 1976, e tomei posse em pleno governo militar, quando a maioria dos colegas vinham indicados. Os mais jovens não tinham compromisso algum com o governo da ditadura, e estavam envolvidos com a divulgação dos feitos do Direito”.
A palestra do magistrado foi um resumo sobre a época de um grande paradoxo institucional – aquele que colocou lado a lado as emendas de cunho ditatorial com as que continham princípios liberais, herdados da Constituição de 1946. Foi essa característica híbrida que obrigou os militares a lançarem mão de tantos atos constitucionais para implantarem sua doutrina. O Judiciário se apoiava nos princípios do Direito para minimizar os atos arbitrários.
“Houve um processo de resistência em prol da cidadania e dos direitos civis”, rememorou o jurista. Este foi o caminho que magistrados da primeira instância percorreram para exercer um controle regulador do Executivo. A relativa vitória do Judiciário vinha do fato de o Brasil viver o “milagre econômico”, embutindo uma certa tolerância por parte do governo e das empresas para esse controle jurisdicional.
Em 1978, Marcio Moraes foi o juiz que deu a primeira sentença responsabilizando o Estado pela morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-Codi em São Paulo, ocorrida três anos antes. Por sua caneta passou também parte do controle da Justiça sobre o Plano Collor, que devolveu parte dos recursos da poupança confiscados.
“O Tribunal manteve a unanimidade da sentença que declarava inconstitucional as medidas do Plano Collor. Ao julgar, fiz uma declaração de voto oral, argumentando que o fato aviltava não apenas o direito, mas a Constituição. E hoje me pergunto: o que teria havido com o Plano Collor se não houvesse esse controle naquela época? Tratava-se de um presidente eleito com 50 milhões de votos.”
Uma nova justiça - Moraes disse valorizar a primeira instância do Judiciário por ser composta por magistrados jovens, bem preparados e sem compromissos políticos devido ao processo de seleção. A defesa desses juízes, afirmou, é a defesa do concurso público, inclusive para o Supremo Tribunal Federal, para o qual os ministros são indicados pela Presidência da República. Ele defende uma reforma do Judiciário para erradicar este sistema e simplificar o processo de recursos atualmente em vigor, que muitas vezes adia por um longo tempo a decisão de um processo.
Fábio Konder Comparato, advogado e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), disse concordar com o pensamento do desembargador do TRF-3. Para ele, a questão não é apenas técnica: uma mudança que agilize o Judiciário envolve mudanças profundas na sociedade. Para Comparato, o “nó” é o poder político estar, desde sempre, nas mãos dos grandes proprietários de terras e empresários, aliados aos principais agentes estatais. “No momento em que esses laços não puderam ser resolvidos pela conciliação à brasileira, veio o golpe de 1964”.
Segundo Comparato, há diferenças no tratamento sobre questões como as causas agrárias – de um lado, a celeridade para os processos de reintegração de posse de terras para o agronegócio; de outro, a letargia para a demarcação de terras indígenas ou para a reforma agrária.
O mesmo raciocínio se aplica ao julgamento do massacre do Carandiru, ocorrido em 1992. O julgamento de 10 policiais demorou porque poderia responsabilizar não apenas o secretário de Segurança (Pedro Campos), mas também o próprio governador à época (Luis Antonio Fleury Filho).
Fábio Konder concluiu sua fala perguntando em que caminho está a solução: “Ela é política. É preciso que nos encaminhemos para uma Justiça de fato republicana, a “res publica” dos romanos, que trabalhe mesmo para o bem comum do povo.”
Desequilíbrio - No mesmo debate, o professor titular da Faculdade de Direito da USP Virgílio Afonso da Silva afirmou que os conceitos de agilidade e qualidade da Justiça nem sempre são invariáveis. “No Brasil, a qualidade funciona melhor para uns do que para outros. E suas razões são as que já foram explanadas – varia de acordo com o cliente”, ironiza.
Ele citou estudos a demonstrar que a falta de agilidade da Justiça brasileira não tem apenas uma causa, mas várias. E, por isso, se torna muito mais difícil pensar em um remédio para o problema. Ao lado da quantidade de recursos que protelam a resolução de um acaso, há os interesses dos poderes econômicos e políticos para que a justiça demore décadas para solucionar muitos casos. Uma pilha de processos abarrota varas e cartórios, sendo o governo o principal litigante, um grande “cliente”, responsável pela demora e falta de agilidade do sistema judiciário. Os cartórios judiciais, por sua vez, são outro entrave.
Os especialistas citaram ainda a questão do ensino jurídico. Existem hoje no País mais de 1.000 faculdades a enfrentar dois grandes desafios: 1) a mentalidade litigiosa corrente no ensino do Direito, segundo o qual não se aprende a resolver um conflito de maneiras alternativas; e 2) a falta de atenção com o aprendizado sobre direitos fundamentais da pessoa humana, mas tão somente sobre os direitos privados.
“Quando um juiz é solicitado para dar uma sentença sobre um problema de Direito Urbano, ele não tem ferramentas para avaliar a questão do ponto de vista do direito constitucional de moradia. Sem contar o problema de estilo das decisões dos juízes brasileiros, segundo Afonso da Silva. “Para demonstrar erudição, existem decisões do Supremo de até 600 páginas!”
Para o professor, agilidade sem qualidade não é possível; mas também não é possível qualidade sem agilidade. “Dizem que a justiça tarda, mas não falha; mas quando ela tarda é porque já falhou."

Isabel Gnaccarini, da Envolverde, especial para CartaCapital

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