O descalabro da USP

Marcelo Camargo/Agência Brasil
USP

Estudantes e funcionários da Universidade passaram os últimos quatro anos protestando contra a administração dos campi

A gestão do último reitor está marcada por gastos equivocados e delirantes, entre eles escritórios requintados em Londres, Cingapura e Boston
por Vladimir Safatle
Durante quatro anos, a Universidade de São Paulo viveu uma situação de quase guerra civil. De um lado, um reitor escolhido de maneira a desconsiderar a decisão da maioria da comunidade acadêmica, por ter sido o segundo colocado em uma lista tríplice encaminhada ao então governador de São Paulo, José Serra, reconhecido internacionalmente por sua sensibilidade ao diálogo. De outro, estudantes e funcionários em contínua revolta com a falta de transparência nas decisões e de democracia nas instâncias dirigentes desta que é a mais importante universidade da América Latina.
Ao longo destes anos, o tom duro da relação entre a reitoria, os estudantes e sindicatos foi muitas vezes saudado por setores da mídia como expressão da necessidade de uma autoridade forte para comandar nossa universidade. Alguns nem sequer temeram em saudar o então reitor como um “xerife” capaz de trazer eficiência e ordem para a instituição. Como se sabe, era disto que a USP precisava, de um xerife.

Agora, com a troca de administração, descobrimos que a situação financeira da USP é um verdadeiro descalabro, o que nos leva a ter de suportar um corte de orçamento da ordem de 35% e à suspensão de novas contratações por um período de dois anos. Isso significa cortes em pesquisas, em convênios, intercâmbios e a limitação da expansão do quadro docente. A razão de tal descalabro encontra-se nos gastos equivocados e dispendiosos de uma universidade que, em seus momentos de maior delírio, resolveu, entre outras coisas, abrir escritórios requintados em Cingapura, Londres e Boston. Escritórios cuja função até hoje não foi desvendada.
Isso sem falar em equívocos ainda maiores, como gastar mais de 35 milhões de reais (só na FFLCH, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) com intercâmbios de alunos de graduação em nome da internacionalização, apesar de qualquer pesquisador saber que a prioridade neste caso deve ser dada à pós-graduação, pois é aí que estão a pesquisa e nossos alunos mais preparados.
Seria fácil colocar a culpa no antigo reitor pelas condições em que a universidade atualmente se encontra. Ela é, no entanto, a maior expressão da irracionalidade e da opacidade da estrutura administrativa da USP. Há de se perguntar, por exemplo, como o conselho universitário (ao qual o reitor estaria, em tese, submetido) permitiu chegarmos a tal situação. Ou o conselho é fraco diante das decisões autárquicas do reitor (o que demonstraria a completa inadequação do modelo de gestão), ou não é composto por integrantes capazes de defender os reais interesses da universidade. Ou seja, não é possível tratar um acontecimento desse porte como um ponto fora da curva. Ele é simplesmente o sintoma mais bem acabado de como custa caro continuar a agir como se graves problemas estruturais não estivessem a pesar no interior de nossa universidade.
Nesse ponto, há de se reconhecer: a única instância realmente racional em todo esse processo foram os estudantes. Exatamente os mesmos estudantes retratados, na maioria das vezes, como nefelibatas, incendiários e exploradores dos recursos públicos para fins próprios. Ao exigir “democracia na USP”, eles estavam, entre outras coisas, a reivindicar uma universidade onde não haveria espaço para situações como a que nos encontramos atualmente. Pois democracia universitária significa uma universidade em que processos são completamente transparentes e passíveis de serem fiscalizados, a qualquer momento, por qualquer um. Democracia universitária significa também ser capaz de discutir prioridades com todo o corpo docente e discente, o que evitaria a proliferação de escolhas equivocadas e de retorno, no mínimo, completamente incerto.
Vale lembrar o quanto a universidade investiu em internacionalização e quão pouco se conseguiu, ao menos segundo os rankings internacionais que a própria burocracia acadêmica tanto valoriza. Mas só há discussão de prioridades com aqueles que sabem muito bem o preço a pagar quando não se discute nada. São esses indivíduos que nos lembram como a democracia real não é apenas o sistema mais justo. Ela é também o sistema mais barato.

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