Johnny Cash: o profeta não morreu

Com forte conteúdo social, o vídeo elaborado pelo diretor de "A Estrada" é um dos grandes acontecimentos da música pop do ano
por Eduardo Graça


De Nova York

A anunciação de um dos discos mais aguardados da primavera na zona norte do planeta é um vídeo criado por um diretor de cinema australiano para uma faixa abandonada de um trabalho jamais lançado por Johnny Cash (1932-2003).
Em meados dos anos 1980, Cash amargava o ostracismo. Seus discos não vendiam. A saúde começava a meter medo. Quando olhava paratrás, sua produção mais elaborada e digna de nota era uma coleção de covers lançada no já distante 1974, com releituras de Randy Newman, Tim Hardin e Robbie Robertson. Não é preciso saber nada disso para saborear, os olhos arregalados, os ouvidos atentos,
o acompanhamento visual criado pelo diretor australiano John Hillcoat (responsável pela adaptação cinematográfica do livro “A Estrada”, de Cormac McCarthy, com Viggo Mortensen no papel principal) para o single “She Used to Love Me A Lot”. O lado B do disquinho, aliás, disponível na rede, traz uma versão remixada de Elvis Costello para a mesma música. A grande sacada de Hillcoat foi decidir que o “She” da letra é a América Profunda enrugada pelas sequelas da crise financeira global. Ideia que casa de forma perfeita com a história por trás das 12 faixas de “Out Among the Stars”, a partir do dia 25 nas boas lojas – digitais também, é claro – do gênero, digna da mitologia criada em torno de “The Man in Black”.
Filho de Cash com sua companheira June Carter (1929-2003), John Carter Cash encontrou as gravações originais dadas como perdidas em 2012 e, com a ajuda da meio-irmã Carlene, filha de June com seu primeiro marido, Carl Smith, convenceu a Columbia a finalmente lançar o disco imaginado por seu pai.
  passagem de tempo se torna personagem da narrativa e o vídeo de Hillcoat ora aproxima, ora acentua o distanciamento entre os dois momentos históricos. Não feche os olhos e volte para os anos Reagan, parece sussurrar o diretor. Lá está Cash, no estúdio da gravadora, em Nashville, ao lado do produtor Billy Sherrill, com objetivo nada modesto: ressuscitar sua carreira.
Passados três anos – e com um projeto mal-resolvido de título macabro no meio, “The Survivors”, ao lado dos parceiros dos anos de ouro do rock’n’roll Carl Perkins e Jerry Lee Lewis – os dois ainda tentavam convencer os executivos de que aquele material, com duas composições do próprio cantor, representariam a desejada redenção, uma década antes do reencontro com críticos e público finalmente promovido por Rick Rubin na festejada série “American Recordings”.
“Ora, sou fã de Johnny Cash desde sempre. A verdade atemporal de sua voz sempre me ajudou no trabalho com os atores”, disse Hillcoat durante a semana ao “Guardian”.
O diretor abraçou em sua filmografia, com precisão cirúrgica, a estética do homem que cantava como poucos a dor dos encarcerados. “Folsom Prison Blues” – aquela da letra na primeira pessoa, cujo trecho mais notório confessa “eu atirei em um homem em Reno/apenas para vê-lo morrer” – foi uma inspiração direta para seu primeiro longa-metragem, no fim dos mesmos anos 80, “Ghosts...of the Civil Dead”, em torno de uma rebelião em uma prisão de segurança máxima na Austrália. O drama foi baseado em fato histórico e leva no roteiro a assinatura de outro fã assumido de Cash, colaborador constante de Hillcoat, Nick Cave.
Cave gravou “The Singer”, de Cash, em 1986, quando "ele era considerado relíquia do passado". Por indicação de Rubin, Cash retornou o favor com uma interpretação avassaladora de “The Mercy Seat”, de Cave, não por acaso igualmente envolta no tema dos condenados ao xilindró, em 2000. Dois anos depois, uma vez mais sob a batuta de Rubin, os dois gravaram, lado a lado, pela primeira vez. Foi Warren Ellis, parceiro de Cave nos Bad Seeds, no Grinderman e em uma sucessão de belíssimas trilhas sonoras, quem sugeriu o clássico country “I’m so Lonesome I Could Cry”, de Hank Williams.
Cave até hoje não teve coragem de perguntar a Ellis se este sabia que aquela era a canção favorita de Cash. Os dois acabaram cantando também a balada folk britânica “Cindy Cindy”, esta última lançada somente após a morte do marido de dona June Carter.
“A June era uma figuraça. Jamais vou me esquecer daquele dia. Os dois ficaram cantando versos de ‘Cindy Cindy’ que eu nem sabia que existiam. Quando eles chegaram no estúdio, em Los Angeles, duas horas depois do combinado, Johnny não conseguia enxergar nada, por conta do diabetes. Ele permanecia uns dez minutos, depois de mudar de um ambiente externo para um interno, em completa cegueira e só então começava, aos poucos, a enxergar, mas eu não sabia disso. Ele logo foi perguntando, os olhos fechados: ‘Nick, você está aí? Está, né?’. Vi aquela cena e pensei, do meu canto: ‘mas como é que ele vai ser capaz de cantar?’. Fiquei mesmo em estado de choque. Aí ele sentou, começou a conversar, a visão voltou e ele iniciou a melodia sozinho, lá de onde estava, com a banda imediatamente seguindo, de longe. Foi aí que fiquei de fato aterrorizado, por outro motivo: será que EU vou conseguir cantar com ele? Que tom era aquele que ele escolhera, meu Deus? Será que EU iria estragar tudo?”, contou o músico à revista “Uncut”, em uma edição especial dedicada a Cash.
Nick Cave passou duas horas no estúdio com Johnny Cash. E não destruiu coisa alguma. O resultado foi belíssimo. Ele contaria depois que passou o restante daquele dia refletindo sobre a maneira peculiaríssima do outro de cantar. Cash quase entoava as palavras, trazia para a música popular o eco dos sermões religiosos, mas com um resultado mais épico hollywoodiano do que gospel batista. Foi Cash, jura Cave, quem lhe deu licença para ‘cantar grosso’. Quem o libertou, após a fase “Birthday Party”, para que “eu parasse de gritar em minhas gravações”.
A conexão Nashville-Sydney segue agora com a interpretação de Hillcoat para os versos de “She Used to Love Me a Lot” e a melodia centrada no bandolim de Marty Stuart. A letra é um Cash clássico, uma história de amor sofrido, pessimamente resolvido, um desencontro do passado relembrado por conta de um esbarrão fortuito em um mafuá de beira de estrada. Mas quando o vídeo começa, vê-se apenas uma caverna e ouve-se a voz de Cash, recitando versos de “Bury Me Not on the Lonely Prayer”, canção folclórica de homens do mar da Carolina do Norte, imortalizada nos primeiros anos do século passado, transformada em hino cowboy, destaque do sensacional “Johnny Cash Sings the Ballads of the True West”, lançado em 1965. É de se arrepiar a reinvenção da pregação, com a evocação de uma Wall(er) Street da qual o cantor proclama, altaneiro, não ser jamais prisioneiro.
Vê-se então sua face e a cerca que impõe a ‘grande divisão’, a desigualdade social da Era Obama. O profeta vive nas imagens em preto e branco do diretor australiano, uma ode à resiliência e à resistência do povo americano. Em determinado momento, uma pichação ecoa o defensor ardoroso dos direitos das populações indígenas: “Meus heróis foram sempre aqueles que mataram os cowboys”. Em outra, uma cruz na estrada impõe uma quase pausa: “Para sempre Johnny”.
“Filmamos em Los Angeles, Santa Fé, Nova York e em várias prisões em Albuquerque e no Tennessee. No sul, íamos encontrando acampamentos de pessoas mais pobres um atrás do outro, quarteirão após quarteirão”, conta Hillcoat. Rapidamente, a América que deu as costas a Cash nos anos 80 reaparece olhando de esguelha seus sem-teto, sem-dinheiro, sem-prestígio. Quando passeia por Nashville, a câmera registra imagens do que restou da velha casa de lago dos Cash, cenário da tentativa de suicídio do cantor, motivada tanto pela dependência das drogas quanto pelo prenúncio de seu calvário público. Mas há, ao fim, uma insinuação de redenção, bem ao gosto velho sertanejo ianque.
“She Used to Love Me a Lot”, o vídeo, chega ao fim com invasão súbita da luz e um Lázaro sem rosto emerge da caverna, convite para a audição do disco por inteiro, que inclui duetos inéditos com a parceira-mor June e também com Waylon Jennings. E para uma vez mais se encontrar com aquele que, na tradução visual de Hillcoat, foi amado tanto pela América. Uma mãe quiçá relapsa, mas ainda, ele crê, ciosa dos que teimam em “dar voz aos homens comuns de sua terra”.

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