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Internet não é suficiente para reduzir monopólio
Em Mídia, poder e contrapoder, o pesquisador brasileiro Dênis
de Moraes reúne ensaios próprios com outros de Ignacio Ramonet e
Pascual Serrano. O trabalho coloca em questão a configuração atual dos
sistemas midiáticos na América Latina.
Por Natalia Aruguete, no Página/12*
O professor da Universidade Federal Fluminense Dênis de Moraes reuniu-se com o Página/12 por
ocasião da recente publicação na Argentina de Mídia, poder e
contrapoder (Boitempo, 2013). Na conversa, o pesquisador brasileiro
discorreu sobre os eixos de um trabalho em que confluem ensaios de sua
autoria com outros dos pesquisadores Ignacio Ramonet e Pascual Serrano.
Todos estes escritos estão atravessados por um denominador comum:
colocar em questão a configuração atual do sistema midiático – objeto de
uma forte concentração em mãos de um punhado de “megagrupos e dinastias
familiares” – e, como contrapartida, reconhecer a emergência de
mutações comunicacionais a partir da chegada da internet com efeitos
significativos nas práticas jornalísticas em rede com sentido
contra-hegemônico, confrontadas com lógicas dominantes que atravessam o
plano ideológico, cultural e econômico.
Eis a entrevista:
Página/12: Você menciona uma penetração do discurso neoliberal no sistema midiático. Como se vislumbra esse discurso na narração noticiosa?
Dênis de Moraes: Parece-me necessário fazer uma distinção sobre o
neoliberalismo contemporâneo. Por um lado, o neoliberalismo não para de
exibir rotundos fracassos nos países nos quais atualmente continua
vigente, ou nos quais já não está tão vigente por causa de sucessivas
crises. Por outro lado, o neoliberalismo permanece atuante, vigoroso,
incisivo, no plano ideológico e cultural. Esta distinção é importante
porque houve uma época, os anos 1980 e 1990, em que ambas as partes eram
exitosas. O triunfo do neoliberalismo era ao mesmo tempo ideológico,
cultural e econômico. Atualmente, está em crise do ponto de vista
econômico, sobretudo na América Latina e do Sul, onde se manifesta de
maneira mais forte apenas em três países do Pacífico. Embora por sorte, a
partir do dia 14 de março de 2014, no Chile haverá uma mudança
significativa para fragilizar a Aliança do Pacífico. Do ponto de vista
ideológico-cultural, lamentavelmente as ideias de celebração da vida
para o mercado seguem sendo hegemônicas.
A que se deve?
À potência das máquinas midiáticas, que se beneficiam muito do processo
de digitalização, da tecnologização da vida e que aumentam, além disso,
sua potência de irradiação nas sociedades contemporâneas.
Em que a digitalização as beneficia?
Beneficia-as porque há uma expansão exponencial dos produtos e serviços
de entretenimento culturais e de informação com as novas plataformas ou
multiplataformas integradas, como são chamadas pelos neoliberais. Há uma
explosão de novos produtos, serviços e canais digitais. Esta formidável
expansão digital está permitindo uma ampliação da mais-valia dos
grandes grupos monopólicos midiáticos, na medida em que os mesmos
produtos estão sendo produzidos e distribuídos em vários canais e meios
em todos os continentes com um baixo custo. Por outro lado, a variedade
de conteúdos multiplica-se exponencialmente nestas multiplataformas
digitais, razão pela qual a oferta de conteúdos cobre um horizonte amplo
e diversificado de necessidades e aspirações de audiências, em todas as
partes e ao mesmo tempo.
Que características têm a visão da realidade social que instala esta lógica de distribuição de conteúdos?
Esses conteúdos estão todos matizados por visões de mundo, por
concepções, por pontos de vista e medidas de valor muito semelhantes que
consagram a economia de mercado, a rentabilidade, o lucro e os mantras
da era digital de maneira obsessiva e neurótica. Então, há uma variedade
enorme de conteúdos em circulação social em todas as partes, mas as
orientações, as interpretações que presidem a elaboração e a divulgação
desses conteúdos, são muito parecidas. Há uma prevalência desmesurada de
valores como individualismo, competência, sucesso..., tudo parece estar
vinculado à necessidade de triunfo, de vitória e a uma disputa por
ganhar posições na sociedade, que são difundidas pelas máquinas
midiáticas globais.
Segundo se coloca no livro, o avanço da digitalização permite
consolidar o discurso hegemônico e a desterritorialização, mas, ao mesmo
tempo, é considerado uma espécie de ameaça, de resquício para um
discurso “contra-hegemônico”. Como compatibilizar estas duas visões?
Isso tem a ver com o título do livro, Mídia, poder e contrapoder.
Creio que este diagnóstico comum dos três autores tem a ver, por um
lado, com a explosão digital e, por outro, com o momento de crise que
vive o chamado quarto poder: a imprensa. É muito interessante observar o
cenário contemporâneo da mídia monopólica.
Por quê?
Porque de um lado se vê esta possibilidade quase infinita de
rentabilidade, de multiplicação de conteúdos, canais e meios, de buscar
sempre mais lucro pelo menor custo possível. Simultaneamente, as grandes
empresas enfrentam um momento de crise, que tem – na nossa opinião –
dois pontos chaves: a perda de credibilidade dos meios de informação na
opinião pública em graus e intensidades diferentes em função de cada
contexto histórico e social. Esta perda tem a ver com os processos de
controle da informação, da opinião e com uma percepção cada vez mais
generalizada em amplos setores sociais de que a mídia é agente político e
ideológico que trata, quase todo o tempo, de escolher e interpretar a
realidade social de acordo com seus interesses próprios e com seus
interesses econômicos e financeiros.
Por que acredita que se dá esta crise?
Tem a ver com o segundo ponto chave ao qual me referi antes. Nós
compartilhamos a ideia de que o quarto poder já não é o quarto poder,
porque se imbricou de tal maneira com os poderes econômicos e políticos
que não tem mais a possibilidade de ser um contrapeso, uma espécie de
promotoria dos abusos ou erros dos outros poderes, o Executivo, o
Legislativo e o Judiciário. Os vínculos econômicos e políticos da grande
mídia com o bloco hegemônico na sociedade fragilizaram seu processo de
avaliação mais racional e sensato dos outros três poderes, pelo que há
uma perda de credibilidade, fruto dos processos de manipulação e
mistificação de controle quase absoluto dos conteúdos que são
difundidos. Por outro lado, porque a mídia não é mais essa espécie de
poder que tinha a capacidade de criticar os abusos dos outros poderes.
Na nossa opinião, a percepção social desta situação é cada vez mais
evidente e, por isso, os grandes jornais da América Latina neste momento
apresentam quedas expressivas em suas tiragens: Clarín na Argentina, O Globo no Brasil.
A queda da tiragem destes grandes jornais explica-se pela crise de
credibilidade, como você afirma, ou trata-se de mudanças nos hábitos de
consumo de informação, que se deram com o advento da internet?
Na minha opinião, justifica-se pelas duas versões. Uma versão interna: o
quarto poder está em crise; os grupos com toda a sua sofisticação
estratégica e gerencial, com as multiplataformas e a grande mídia, não
conseguem ampliar sua base de audiência, sobretudo a imprensa
tradicional: jornais e revistas. E também pelo fato de que há
efetivamente uma crise de atenção motivada por uma explosão de mídias e
uma possibilidade descentralizada e diversificada dos leitores de tomar
contato com o mundo através das informações em vários veículos e canais,
sobretudo a internet.
É verdade que há uma disponibilidade de informação multiplicada,
proveniente de uma maior diversificação de fontes de informação. Mas em
que medida se pode colocar como uma ideia estável o fato de que a mídia
tradicional tenha perdido o controle da produção de informação e do
estabelecimento da agenda pública em relação às novas mídias?
É uma excelente pergunta. Esta diversificação informativa e de
entretenimento permitida e disponível pela internet e outras formas de
comunicação instantânea não tem a ver diretamente com a internet, embora
haja uma convergência com a internet cada vez maior. Efetivamente, há
uma diversificação imprevista e crescente. Contudo, há duas questões
relevantes para não perder de vista o poder da mídia.
Quais?
As agendas informativas continuam sendo definidas pela mídia
corporativa. Um dos problemas mais sensíveis da comunicação alternativa é
que, tanto agências como blogs e portais críticos e contra-hegemônicos,
continuam dependendo – de maneira geral, embora com exceções que devem
ser resgatadas – das agendas midiáticas. Claro, há fatos e
acontecimentos que são obrigatórios nos noticiários, mas muitos outros
são definidos pelas intensidades, ênfases e escolhas da mídia
corporativa. O segundo ponto que não podemos perder de vista é que a
penetração social da grande mídia continua intocável. Isto tem a ver com
uma expressão que utilizamos no livro: “a colonização do imaginário
social por parte da mídia corporativa”. Este é um processo histórico e
social longo que não para de se aprofundar. Tem a ver com hábitos de
leitura, com hábitos de audiência, tem a ver com o poder tecnológico das
máquinas midiáticas e com a capacidade de influência em termos de
valores, mentalidades, pontos de vista, concepções de mundo que a mídia
corporativa segue mantendo de maneira incisiva.
No livro também se fala do “fim do monopólio informativo”, mas não
devemos desconhecer a brecha digital existente: o acesso às novas mídias
não é uma prática generalizada. E o tipo de informação que se troca
entre a mídia cidadã segue concentrada em um setor certamente pequeno e
elitista.
Há uma diferença entre o fim do monopólio informativo e o fim do
monopólio da audiência, que certos setores da esquerda – na minha
opinião, mal informados e sem capacidade de entendimento mais
consistente – não entendem: não se trata apenas de apontar que hoje há
mais possibilidades de acesso, de produção e difusão de informação. Não
têm uma visão clara e nítida de que o monopólio da audiência continua
vigente. Diante disso é necessário fragilizar esses monopólios, é uma
luta política fundamental. Não basta desenvolver as possibilidades de
produção, difusão e intercâmbio de sociabilidade na rede. A internet não
é suficiente para reduzir o monopólio; é apenas um meio complementar
que enfrenta problemas que são próprios e externos.
Como definiria uns e outros?
Próprios porque há necessidade de habilidades técnicas, de acesso a
programas informáticos, de padrões culturais e educativos diferentes. Os
acessos e usufrutos são desiguais, diante disso as tecnologias não têm a
capacidade de dissolver as desigualdades que são graves, provocadas
quase sempre por um modo de produção que é, por definição, excludente; o
capitalismo é uma fábrica de desigualdades. Assim, imaginar que a
internet é suficiente para debilitar o monopólio da audiência, da
formação das mentalidades e dos valores é acreditar em um sonho
impossível. Devemos utilizar a internet como meio complementar,
suplementar, de diversificação, descentralização, de circulação de maior
quantidade de opiniões e de vozes sociais. Mas isso também não basta
porque a mídia monopólica está presente na internet de maneira
hegemônica. Os principais portais da internet, em termos de audiência,
são da mídia monopólica. No livro há um estudo de minha autoria sobre as
agendas alternativas em rede, um fenômeno espetacular na América
Latina, de descentralização de fontes, de práticas, de modalidades
colaborativas não lucrativas, e isso é uma novidade que vai do México à
Patagônia. São quase uma centena de agências jornalísticas,
contra-hegemônicas, alternativas, que se expressam através da internet;
um fenômeno espetacular mas não suficiente para colocar em risco o
monopólio midiático. Para consegui-lo na América Latina são necessárias
várias leis de Serviços de Comunicação Audiovisual, uma ação firme,
permanente e prolongada do Estado, no sentido de transformar os marcos
regulatórios, de permitir que outras vozes sociais tenham acesso à
radiodifusão pública.
Acredita que as leis são uma ferramenta suficiente para que se consiga isso?
Claro que as leis não são suficientes. Precisa-se de uma espécie de
aliança entre todos os setores, entre todas as ferramentas que lutam
pela comunicação como direito humano. Porque se necessita de
financiamento e sustentabilidade, que é um problema grave. Eu diria que
este é um momento no qual não temos direito de escolher uma forma de
atuação para democratizar a mídia.
E como se enfrenta este obstáculo?
Nós temos o dever de buscar associar tudo junto ao mesmo tempo. De um
lado, mobilizar a sociedade e pressionar o Estado para alcançar novas
legislações, marcos regulatórios, ações do poder púbico de defesa da
comunicação como direito humano. Ao mesmo tempo, necessitamos aprofundar
estas experiências de comunicação alternativa em rede, necessitamos
multiplicar mais ainda os portais, os blogs, as agências informativas,
ocupar as redes sociais com o sentido de criticar, formar novas ideias,
outros valores. Uma espécie de bloco no campo da sociedade civil. Esse
bloco tem possibilidades de produzir, editar e difundir mais, mas não
será suficiente somente explorar o mundo da internet, a comunicação
móvel, a comunicação instantânea. Então, não tenho a ilusão de que mais
leis de mídia vão resolver tudo, de maneira alguma. Creio que são
indispensáveis, mas não sem uma ação cada vez mais organizada,
consequente, permanente, de novas experiências jornalísticas e
comunicacionais no campo da sociedade civil, que trabalhem de maneira
independente e autônoma para ocupar as redes sociais com conteúdos mais
cidadãos. Ali haveria uma espécie de frente, creio que esse é o sentido
que Ignacio Ramonet, Pascual Serrano e eu encontramos.
Qual é o diagnóstico dessa frente que formaram?
Há uma explosão do jornalismo e é plenamente possível que ocorram duas
coisas: um jornalismo mais ético, mais plural, mais cidadão, mais
independente, mais autônomo, mais participativo. Por outro lado, é
possível um tipo de comunicação de maneira geral, que na nossa opinião
depende de duas coisas: da ação cidadã e também da pressão e mobilização
das sociedades com a ideia da comunicação como direito humano.
Parece-me que a chave é que nós, neste momento, não temos o direito de
escolher um único caminho para a luta pela democratização. A necessidade
de contrapoder, de contra-informação e de contra-opinião deve estar
presente em todas as áreas, em todos os lugares de ação possível.
Você mencionou que a mídia é agente político e ideológico. Qual é a
definição de mídia como ator político que subjaz aos ensaios que compõem
o livro?
Entendemos que a mídia é ator político de primeira linha. Ela elabora,
unifica e divulga valores e concepções de mundo que influem na
conformação do imaginário social. Cada qual com seus estilos, linguagens
e formatos, agem de maneira incisiva nas disputas de sentido e poder na
sociedade contemporânea, priorizando temas e difundindo determinados
enfoques sobre a realidade, a partir de óticas sintonizadas quase sempre
com os interesses de grupos e classes mais ou menos homogêneos e
preponderantes. Sem delegação social para isso, assumem posições e
orientam seus noticiários como se fossem “intérpretes da opinião
pública”. Em tal perspectiva, a mídia opera como verdadeiros partidos
políticos.
Em que se expressa essa lógica de operar como partidos políticos?
Em que interferem, com ênfases específicas, nos modos de conhecimento,
interpretação e entendimento dos fatos e situações. Eles demonstram
exata noção de seu papel chave na batalha das ideias pela hegemonia
cultural e política, inclusive quando procuram reduzir ao mínimo o
espaço de circulação de visões alternativas e expressões de dissenso,
por mais que estas continuem manifestando-se e resistindo. A meta é
neutralizar pautas informativas e análises críticas geralmente
contrárias à lógica econômica e às concepções políticas dominantes.
*André Langer
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