DO IPM DA FEIJOADA A FEIJOADA DO RDD
Lei de Execuções Penais mostra que perseguição a Delúbio e a Dirceu pode revogar seus direitos
A feijoada permite um dos paralelos mais curiosos entre o Brasil de 1964 e a absurda situação de abuso contra presos da AP 470.
Vamos combinar: eles podem ter cometido todos os crimes que você acredita que cometeram – eu discordo e posso argumentar -- mas nem por isso devem ter seus direitos e garantias colocados sob ameaça. Uma das lições essenciais de 1964 foi a necessidade de respeitar os direitos humanos – que devem ser acessíveis a todos os bípedes que um dia desceram da árvore, não é mesmo?
Também queremos uma Justiça isenta, sem partidarismos e sem projetos eleitorais, certo?
Numa reportagem inesquecível sobre os primeiros anos do regime dos generais, Joel Silveira escreveu “A Feijoada que derrubou o governo.”
Cinquenta anos depois, com o nome de “alimentação inadequada”, a feijoada consta de um conjunto de itens reunidos pelo ministério público do Distrito Federal e pelo juiz Bruno Ribeiro com uma finalidade precisa e muito mais séria do que a maioria dos comensais deste blogue pode imaginar.
O célebre cardápio gastronômico da ala de 24 prisioneiros onde se Delubio se encontrava era um típico prato de cadeia: feijoada em lata. O jurídico é muito mais indigesto. Prepare o apetite para uma boa leitura – pois o assunto é suculento, mas bastante salgado.
A questão envolve direitos e liberdades de toda pessoa, inclusive presidiários, não custa repetir.
Começando pelo torresmo dessa discussão, pela caipirinha. Nós sabemos que quando se demonstra que determinados presos cometeram “faltas disciplinares”, é possível diminuir seus direitos, agravar sua condição e prolongar o encarceramento. Assim, em vez de avançar na progressão da pena, que o favorece, promove-se a regressão, que o prejudica.
A Lei de Execução Penal prevê sanções e benefícios dessa natureza. O artigo 53, que prevê punições, estabelece como falta grave “incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina.” Outra falta grave consiste em “utilizar ou fornecer aparelho telefônico que permita comunicar-se com outros presos, ou com o ambiente externo.”
Acho que dá para imaginar o que está por trás do esforço para apurar se Dirceu falou ou não pelo telefone celular. A polícia do presídio já concluiu que a denúncia não pode ser provada mas o Ministério Público insiste que é preciso seguir em busca de provas. Quem sabe uma delação premiada? Ou um inquérito secreto, como aqueles que ajudaram a esconder provas que poderiam favorecer os réus no julgamento da AP 470?
Na dúvida, contra o réu. Esta é a jurisprudência em vigor. Não é preciso de provas. Basta a dúvida.
Será que Delubio pode ser acusado de “incitar ou participar de movimento para subverter a ordem?” É óbvio que não.
Mas é isso que se busca demonstrar com a investigação da feijoada. Imagine que, entre os fatos levantados para suspender o direito ao trabalho de Delúbio, incluíram-se visitas do deputado Chico Vigilante (PT-DF) ao estabelecimento. Pergunto: o que o Delúbio tem a ver com isso? Nada. Em primeiro lugar: ele não tinha a chave de sua cela, muito menos da porta do presídio. Não poderia, portanto, ser acusado de permitir a entrada de qualquer pessoa no local. Nunca teve poderes sobre isso. Em segundo lugar: lei permite a um deputado do DF entrar em todo estabelecimento do Estado, sem aviso prévio, em horário de expediente. Se há algo de errado, os descontentes deveriam mudar a lei, convencendo a Assembleia Distrital, concorda?
Mas a feijoada – e aí voltamos ao imaginário de 1964 – ajuda a pintar um quadro de rebelião, desordem, subversão, anarquia. É sintomático, nesse delírio, que fatos administrativos e as demagógicas denúncias de “privilégios” que envolvem José Dirceu tenham sido arrolados para incriminar Delúbio Soares. Será que vamos tentar provar que o “ núcleo político” desenhado pelo PGR continua em atividade? Dirceu mantém o domínio do fato sobre o Delúbio?
Eu acho que essa é a tese. Ou você enxerga outro sentido nas suspeitas lançadas contra o governador Agnelo Queiroz, petista como os dois?
Puxa...nem Ubaldo, o Paranoico, seria capaz de pensar nisso.
Até então, a Vara de Execuções Penais multiplicava sinais de poderia considerar pleitos feitos pelos advogados dos réus.
As faltas graves permitem recolher o preso em cela individual – a solitária --, diminuir visitas, banhos e sol e outras medidas mais duras. A remissão da pena, que o preso obtém com dias de leitura e de trabalho, por ser anulada. Sabe aquelas continhas que os jornais andaram publicando, num esforço para deixar o leitor menos avisado boquiaberto com o “país da impunidade?” Esquece.
A punição inclui até a transferência para o Regime Disciplinar Diferenciado, o RDD, num isolamento a que estão submetidos chefes nacionais do tráfico de drogas e de facções criminosas, pode ser feita, também.
Necessita apenas “prévio e fundamentado despacho do juiz competente.” Sim, meus amigos. Bruno Ribeiro.
Já se ventilou a possibilidades dos presos da AP 470 serem transferidos para um presídio federal. O argumento é que no Distrito Federal não há a ordem necessária, nem eles se submetem a disciplina. Nesses presídios federais funciona o RDD. Quem sabe a turma não vai cumprir pena no mesmo estabelecimento que Marcola, Fernandinho Beira-Mar? Não é isso o que ser quer? Não é esta a lógica que produziu – confessadamente – penas mais graves e inadequadas?
Estamos forçando a barra, selecionando indícios, torturando dados. Depois que se define feijoada como “alimentação inadequada” tudo é possível, embora este mesmo prato tenha sido servida aos 1600 presos da Papuda durante o carnaval e todos os seus ingredientes – todos – estejam a venda na cantina do Centro de Progressão Provisória, para serem cozidos num fogão de uma só boca a disposição dos detentos. Como se pode falar de um prato inadequado depois que se oferece o fogão e os ingredientes?
Agora, como sobremesa, depois da Feijoada do RDD, voltamos ao IPM da Feijoada.
Se você procurar aqueles episódios pequenos, vexaminosos, em que determinados seres humanos se comportam como insetos, com frequência irá descobrir que eles têm uma desconfiança terrível em relação a pessoas que se encontram numa feijoada. Talvez seja porque muitos acreditam que a feijoada foi criada pelos escravos e, para baratas de Franz Kafka, isso é motivo de suspeita e mesmo desprezo, embora permita hipocrisias em horas de desespero.
Logo depois do golpe de 64, apareceu um problema para o governo militar. O governador de Pernambuco, Miguel Arraes, não parava de dar trabalho aos golpistas. Recusou-se a renunciar ao posto, com o argumento de que seu mandato pertencia ao povo. Mais tarde, Arraes refugiou-se na Embaixada da Argélia, onde passou a aguardar pelo salvo-conduto para deixar o país.
Inconformado com a situação, que expunha com fatos desagradáveis um regime que pretendia ter salvo a democracia contra o comunismo, a ditadura escalou um coronel do Exército, Gerson de Pina, para investigar o que aconteceu. Depois de muito conversar e interrogar, naquele clima cordial que você pode imaginar, o coronel concluiu que a fuga de Arraes e tudo mais fazia parte de um plano tramado durante uma feijoada intelectuais e políticos de esquerda.
Jornalistas que cumpriram seu dever de narrar os fatos deixaram um registro – com fotos – para a história. Através de uma edição de março de 1965, na Última Hora, jornal que os militares ainda não haviam conseguido fechar, podemos saber que membros da Academia Brasileira de Letras foram ouvidos naquilo que, como o próprio jornal revela, havia se transformado no IPM da Feijoada. Nomes como Barbosa Lima Sobrinho, uma das referencias de democracia e interesses nacionais, foi interrogado. O editor Álvaro Lins também. Perguntado sobre o evento, Álvaro Lins esclareceu que, por recomendação médica, estava proibido de comer feijão. Cada vez mais zangado numa situação em que os modos truculentos da investigação ajudavam a sublinhar seu caráter ridículo, o coronel responsável pelo IPM limitava-se a ameaçar Arraes. Dizia que se ele deixasse a embaixada da Argélia seria preso imediatamente, esclarecendo que as provas de seus “antecedentes criminais” já se encontravam em poder do governo de Pernambuco.
Meio século depois, quando o próprio João Goulart recebeu as honras da pátria e os insetos de 1964 fogem até dos advogados e professoras infatigáveis da Comissão da Verdade, era de se imaginar que os direitos e garantias do regime democrático fossem uma realidade permanente em nossa paisagem como o Pão de Açúcar ao mar do Rio de Janeiro. Engano. O escândalo em torno da feijoada de Delúbio mostra um esforço deliberado para contestar garantias que a lei prevê.
É isso que deveria ser investigado – e não a feijoada, a que todos temos direitos. Afinal, como dizia um poeta, hoje é sábado.
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